Mais uma “Conversa de Esplanada” de Henrique Salles da Fonseca, desta
vez sobre prodigalidades, poupanças, formas de governar, expectativas de soluções
para desgovernos, com o habitual sentido crítico e o pão-pão, queijo-queijo da
simplicidade e da frontalidade sem ilusões:
A BOMBEIRA VOLUNTÁRIA
Ele – Bom
dia! Também cheguei agora mesmo, há um ou dois minutos.
Eu – Bom
dia! Rico dia, este. Os tipos da vela não devem achar graça à falta de vento
mas a nós não faz falta nenhuma.
Ele – Fiquei
a pensar naquilo que me disse ontem sobre a crise. De facto, com tantos barcos
de recreio aqui no Tejo, há muito mais gente a viver confortavelmente do que os
jornalistas dão a entender.
Eu – Nada
melhor do que vermos por nós mesmos. E se for ao Douro, à Ria de Aveiro ou ao
Guadiana há-de ver outros tantos ou mais. Fora os que já navegam a sério, no
mar.
Ele – De
qualquer modo, não podemos generalizar.
Eu – Claro
que não! Sugiro-lhe que passe à noite pelo Bairro Alto para ver a facilidade
com que os jovens gastam numa noite o equivalente às propinas que não querem
pagar.
Ele – Mas
esses são os «meninos ricos».
Eu – Então,
feliz país que tem tantos ricos.
Ele – Então
como se explicam as manifestações de protesto?
Eu –
Manipulação pura. Veja como essas manifestações são sempre encabeçadas por
membros do Comité Central do PCP ou por dirigentes do Bloco. Teatro puro e
manipulação de telejornais. Mais uma vez, jornalismo do pior que se pode
imaginar. A TVI deu há dias mais de meia hora de tempo de antena a um cantor de
óculos escuros que só falou de política para dizer que isto está uma desgraça;
um dia destes é o Dr. Mário Soares que também lá vai cantar uma modinha, das de
protesto, claro! A comunicação social não perde uma oportunidade para dizer que
tudo são desgraças. Concordo: a começar por eles próprios.
Ele – Mas por
que é que os donos das televisões privadas deixam que isso aconteça?
Eu –
Pergunte-lhes. Mas eu dou-lhe já duas pistas: têm medo de que se diga que há
censura interna ou concordam com essa destabilização. Portanto, escolha entre
considerá-los medrosos ou terroristas.
Ele – Não acha
isso um pouco forte?
Eu – Procure
outras hipóteses mais benignas e diga-mas se e quando as encontrar. Ficarei
muito satisfeito se me convencer de algo mais favorável do que a alternativa
que lhe sugiro.
Ele – O
empregado de mesa deve estar esquecido desta zona da esplanada.
Eu – Oh
Senhor empregado! Quando puder, passe aqui, por favor.
Empregado de mesa – Vou já,
vou já!
...
Empregado de mesa – Peço
desculpa pela demora mas estou sozinho para todas as mesas. Era para ter
entrado hoje ao serviço mais um empregado mas parece que não há quem queira
trabalhar.
Ele – É
porque o patrão paga pouco.
Empregado de mesa – Para
que é que eles hão-de querer trabalhar se é muito melhor estar em casa a
receber o subsídio de desemprego ou o rendimento garantido?
Ele – Acha
que é isso?
Empregado de mesa – Pode
ter a certeza, Cavalheiro. Já me chamaram parvo por vir trabalhar em vez de
estar no Desemprego. Mas então, o que vai ser hoje?
Eu – Para
mim, um café normal, um queque e uma garrafinha de água lisa, fresca.
Ele – Hoje
vou querer o Favaios porque o de ontem soube-me muito bem.
Empregado de mesa – Muito
bem, volto já.
Ele – Ontem
ficámos no Bill Clinton, o tal «mau da fita» que entornou o balde das finanças.
Eu – Exacto!
Ele – Porque
é que atira as culpas para cima do Clinton e não da Merkel?
Eu –
Lembra-se da presidência do Clinton?
Ele –
Lembro-me da Mónica Lewinski.
Eu – Bem...
sim! Mas acredite que houve outras «coisas» durante a presidência dele com mais
interesse para a nossa conversa.
Ele – Quero
acreditar que sim mas não me lembro de nada em especial.
Eu – O
Clinton, democrata, tem mais preocupações sociais do que os republicanos e uma
das iniciativas políticas que ele teve foi a de declarar que todos os
americanos deviam passar a ter casa própria. E mexeu os cordelinhos de tal
maneira que a banca não teve outro remédio se não avançar para o crédito à
habitação com um ímpeto que nunca tivera na sua já longa vida.
Ele – Ah,
sim, estou a lembrar-me disso.
Eu – Os
bancos passaram a dar crédito à habitação de um modo muito liberal. Apetece
dizer que todo o «bicho careta» comprou casa mesmo sem merecer crédito.
Ele – Mas as
casas ficavam hipotecadas ao Banco.
Eu – Claro!
Ele – E há
melhor garantia do que essa?
Eu – Há!
Ele – Qual?
Eu – Uma
casa que valha efectivamente o valor por que foi financiada.
Ele – E não
era esse o caso?
Eu – Quando
os devedores começaram a faltar ao serviço da dívida revelando que não mereciam
o crédito a que tinham tido acesso, os bancos começaram a ficar com montanhas
de créditos mal parados e a receber as casas em pagamento. E quando já tinham
ruas e bairros completos de volta, começaram a tentar vender. E o que sucede
numa situação dessas?
Ele – Os
preços vêm por aí a baixo.
Eu – E o que
é que entretanto os bancos tinham feito?
Ele – Já não
me lembro.
Eu – Tinham
vendido esses créditos (tóxicos) como se fossem «filet mignon» a uns quantos
papalvos que se esqueceram de verificar a qualidade do «produto». E Você não
precisa que eu lhe recorde o que foi o efeito multiplicador da vigarice, pois
não?
Ele – Estou a
lembrar-me, sim: a Reserva Federal puxou os cordões à bolsa e injectou uma pipa
de massa para safar aquelas empresas que tinham nomes de actores de cinema...
Eu – Sim,
sim, a Fanny Mae e a Freddie Mac. Duas grandes emissoras de
títulos tuteladas pelo Governo americano, o federal. Mas tudo isto aconteceu já
em pleno reinado de Bush II se bem que a origem do problema tenha um nome.
Ele – Bill
Clinton.
Eu – Não há
dúvida, o crédito não é um direito. Merece-se e tem-se; não se merece e não se
tem. Tê-lo por decisão política, dá asneira.
Ele – E por
que é que não fazemos o mesmo que os americanos?
Eu – Para
além de que as rotativas americanas são muito mais pródigas que as da
Eurolândia, o Clinton pôs a banca a fazer a demagogia política dele enquanto os
políticos europeus não tiveram pejo em a fazerem sem intermediários e foi com
dinheiros públicos que compraram os votos que os poderiam eternizar no Poder.
Mas Deus escreve direito por linhas tortas e quando Clinton chegou ao fim do
segundo e último mandato foi substituído por um republicano e na Europa os
gastadores também não têm tido grandes motivos para risotas.
Ele – Na
Europa estamos em austeridade por causa da Merkel.
Eu – Estamos
em austeridade por várias razões e não vale a pena chamar-lhes nomes diferentes
dos que elas têm. Começamos por não ter um pacto que dê corpo ao Petro-Euro
enquanto os americanos têm o Petro-Dólar muito bem oleado. Na sociedade da
informação em que o grosso da população está sobre-informada, não faz sentido a
política das desvalorizações monetárias, discretas ou constantes (lembra-se do crawling
peg do Vítor Constâncio quando era Ministro das Finanças?) pois os preços
adaptam-se instantaneamente ao novo valor da moeda anulando quaisquer efeitos
sobre a competitividade que a diferença cambial pudesse proporcionar; eis por
que a política da moeda fraca não passa hoje de um bluff total que traz
muitos inconvenientes (inflação, perda de poder de compra) e nenhuma vantagem.
É por este tipo de realidades que a Eurolândia não optou por uma moeda fraca e,
pelo contrário, quer um Euro que se dê ao respeito e que possa servir o entesouramento,
ou seja, os capitais de origem terceira têm que continuar a afluir à Europa
porque o Euro inspira confiança, é fiável. Isto obsta ab initio a
injecções monetárias como o Fed fez para salvar os falidos americanos. A
procura permanente de Dólares para pagar o petróleo urbi et orbe
salva-lhe o câmbio. Mas há mais: já reparou quem são os mercados que financiam
os défices públicos e obtêm juros por esses empréstimos?
Ele – São os
ricos, os banqueiros.
Eu – São os
bancos, não necessariamente os banqueiros, mas são também os pequenos
aforradores, são os fundos de pensões que pagam as pensões a tantos velhinhos
por aí além, são milhares e milhares de pessoas perfeitamente anónimas que
pouparam umas maçarocas e compram e vendem títulos da dívida dos países que
pedem emprestado. Portanto, os mercados somos todos nós que temos as nossas
poupanças num banco qualquer e que não queremos que dê com os burrinhos na água
para que possamos continuar a dormir tranquilos, sem pesadelos e muito menos
termos insónias de preocupações. E também lhe digo que mais vale que os bancos
vão ganhando alguma coisa para que não se vejam obrigados a debitar-nos ainda
mais taxas para nos guardarem o dinheiro que lá pusemos.
Ele – Então
eu sou mercado?
Eu –
Indirectamente, é! Você é credor do seu banco, o seu banco trabalha com o seu
dinheiro. Mas se não quiser ser mercado, ponha o dinheiro no colchão, deite-se
em cima dele e não saia de lá nem para ir à missa.
Ele – E a
Merkel?
Eu – A
Merkel é a bombeira voluntária que anda a apagar o fogo a que os demagogos
chamam redistribuição. Redistribuição da riqueza que não produzem, que procuram
nos mercados e que, quando estes se baldam por falta de confiança e não
necessariamente por falta de liquidez, estendem a mão à troika de quem não cessam
de maldizer. E dizem mal dos mercados e da troika porque alguém lhes disse que
os ricos é que têm que pagar a crise. Afinal, esses ricalhaços são Você e eu.
Ele – Vou
daqui mais satisfeito com essa do ricalhaço. Até amanhã.
Eu – Até
amanhã, colega ricalhaço.
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