terça-feira, 24 de dezembro de 2013

O império dos sentidos, ou quando um Nuno Crato é derrotado por um Mário Nogueira


Sou das pessoas que admira Nuno Crato desde que li o seu livro «O “Eduquês” em discurso directo» que me mostrou uma figura intelectualmente séria, ao lançar várias pedradas no charco de um ensino de mediocridade, politizado e dogmático, criador de insucesso, um ensino que descambara numa formação teórica de lugares comuns vazios de conteúdo e de rigor intelectual - como os tais slogans do “ensino centrado no aluno”, da “aprendizagem em contexto”, dos “saberes paralelos” do professor e do aluno, desrespeitadores do conhecimento verdadeiramente científico, um ensino piegas e redutor, responsável pelo caos escolar em que se transformou o ensino em Portugal, com as sucessivas políticas pedagógicas despidas de seriedade, favorecedoras do laxismo, da indisciplina, do desrespeito, da arrogância pueril.

O livro de Nuno Crato, bastamente documentado, volta a frisar a necessidade de avaliações finais em vários momentos da frequência escolar – 4º, 6º, 9º, 12º anos – acentua a impreparação de muitos alunos universitários, faz afirmações de escrúpulo intelectual reveladoras de preocupação pedagógica num país indecorosamente desleixado na formação escolar. Como a seguinte: “É preciso centrar forças nos aspectos essenciais do ensino, ou seja, na formação científica de professores, no ensino das matérias básicas, na avaliação constante e na valorização do conhecimento, da disciplina e do esforço.”

São verdades de autenticidade, libertas da demagogia mentirosa e soez de arengadores como Mário Nogueira, verdades de um espírito cultivado em países de produção e cultura, como os Estados Unidos, onde trabalhou, e que pretende impor no seu país de arengadores e batoteiros. Mas não o consegue, que “os eduquês” estão enraizados em nós, seguindo no rasto de Rousseau e dos teóricos simplistas de uma educação de “escola aberta”, que queda ao nosso comodismo e desinteresse intelectuais.

Mas um país que aceitou subscrever um Acordo Ortográfico de um absurdo sem paralelo, e até com admissão facultativa de casos de dupla grafia, não deve preocupar-se tanto com os erros ortográficos e a falta de bases dos professores saídos da universidade. Por isso, os esforços de Nuno Crato em exigir mais rigor e mais competência, por meio de exames definidores de saberes, está condenado à partida. Que importam os erros ortográficos, se a minha língua me permite escrever o pretérito perfeito “chamámos”, “amámos”, … com acento ou sem ele, à escolha do freguês? Se outro slogan usámos do nosso “eduquês”, o da “pedagogia do erro” que, mais do que punitivo ou exigente de correcção imediata, parte do velho princípio do “errare humanum est” e o torna permissivo no “ensino-aprendizagem” (novo slogan do eduquês) até o aluno se decidir a eliminá-lo, segundo o princípio do “aprender errando”, (mais um).

Eis o motivo por que subscrevo – com mágoa – o artigo “O chumbo de Nuno Crato” de João Miguel Tavares, saído no Público de 17 de Dezembro, com o sobretítulo “O respeitinho não é bonito”:

«Em Portugal, existem 160 mil professores que constituem a corporação mais poderosa do país: são muitos, prestam um serviço fundamental e constitucionalmente protegido, têm uma formação académica elevada, estão bem organizados, possuem acesso privilegiado aos meios de comunicação e os efeitos das suas greves têm um enorme impacto social.

Isto significa que o poder que possuem não é fruto do acaso, mas de um conjunto de atributos únicos, característicos da sua profissão e dificilmente amovíveis, que faz com que tocar nos seus direitos adquiridos seja sempre uma actividade arriscada para qualquer Governo e uma tarefa penosa para quem está à frente do Ministério da Educação.

Em simultâneo, o sindicato todo poderoso do sector só concorda com a mais microscópica alteração no “statu quo” quando o cometa Halley é visível da Terra. Estou certo, aliás, que Mário Nogueira partilha com os pilotos-aviadores da Segunda Guerra Mundial o hábito de colocar uma marca na fuselagem de cada vez que consegue abater um ministro da Educação. Nuno Crato, o homem que um dia sugeriu a implosão do edifício da 5 de Outubro, com certeza conhecia tudo isto de cor e salteado quando aceitou ser ministro. E, em 2011, já depois da sua nomeação, não poderia ter sido mais claro no Parlamento: “O ministério é uma máquina gigantesca que se acha dona da educação em Portugal. Eu quero acabar com isso.” Alguns milhões de portugueses assinariam essa frase por baixo. Incluindo muitos professores.

Mas se Nuno Crato não poderia ter sido mais claro, poderia – e deveria – ter sido muita outra coisa que até agora, espantosamente, não foi: um ministro prudente, inteligente, ponderado e justo. De facto, aquilo que ele tem vindo a implodir nos últimos anos não é o Ministério da Educação, mas sim o seu capital de prestígio junto dos professores – muitos dos quais o admiravam. E pouca coisa é mais exemplar desse desnorte do que esta malfadada prova de avaliação para docentes, que amanhã promete vir a dar confusão um pouco por todo o pais. Pior do que ser ministro e não mudar nada, só mesmo ser ministro e mudar o que não interessa: apanha-se pancada na mesma e as coisas não melhoram.

Não está em questão o direito de criar uma prova exigente, de acesso à profissão. Simplesmente, a solução encontrada é um triplo escândalo: 1) é uma prova com efeitos retroativos, humilhando quem já exerce há anos a profissão; 2) apenas abrange os docentes com a situação contratual mais frágil, acentuando a sua discriminação em relação a quem está no quadro, esse eterno oásis do funcionalismo público; 3) o acordo assinado com a FNE, que dispensa da prova (ou talvez não dispense, a teoria divide-se e os legisladores têm dificuldades com o português) quem já tem mais de cinco anos de serviço, é um vergonhoso tributo à máxima “a antiguidade é um posto”, que reduz o mérito do exercício de uma profissão à contagem de folhas de calendário.

É preciso ser-se mesmo muito mau ministro para, numa discussão com Mário Nogueira, perder a razão para Mário Nogueira. Mas foi precisamente isso que Nuno “Implosão” Crato conseguiu com esta prova moralmente injusta – porque atinge apenas os mais fracos – e politicamente idiota – porque humilha os professores sem necessidade. Deus nos livre, pois, dos iluminados, que, por acharem que sabem perfeitamente para onde vão, fecham os olhos a todas as injustiças que lhes aparecem pelo caminho.»

 Realmente, não basta ser-se intelectualmente bem artilhado e desejar criar caminhos de elevação cultural no país. Eça e a chamada “Geração de Setenta” também se esforçaram nesse papel de modernização que trouxe mudança e vitalidade, o mesmo tentariam os poetas do Primeiro Modernismo, mas são “missões” individuais, esporádicas, que, dando prestígio ao país, não conseguem forçar a deprimente crosta de miserabilismo intelectual e físico que os governos ajudam a criar, quer por aperto e restrição quer por esbanjamento, neste último caso, do que não nos pertence.

A escola pós 25 de Abril, falseando o seu papel de orientação com medidas de desorientação, como as que Nuno Crato aponta no seu livro «O “Eduquês” em discurso directo», não vai mudar um percurso em que a maioria dos professores foi educado. Vivemos em democracia  e o papel da liberdade  é bem superior ao da compostura, segundo a reflexão.

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