quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Paralelo

Saramago escreveu um livro com este título que me parece uma experiência doentia proveniente de um espírito doente e banhado de gozo, que se alcandora a um posto de demiurgo poderoso e impoluto, para criar de um universo de latrinária onde todos chafurdam sob o seu óculo malignamente atento, e maldosamente deprimente e punitivo.
O “Ensaio sobre a Cegueira”, de João César das Neves, não pretende amarfanhar, mas instruir. As verdades que diz são reais, não são ficção mentecapta. Infelizmente não são assimiláveis pela maioria. Queremos acreditar nas informações do Governo de que podemos ter esperança, mas logo lhes saltam em cima com idênticos discursos de ataque e derrotismo, sem vontade de desenterrar o país do caos criado por todos, com maior responsabilidade de alguns. Por isso o texto de João César das Neves deprime mais do que o de Saramago, que é ficção de mente doentia, para ignorar. O de César das Neves é para meditar.\Afinal, fede mais do que o primeiro. Porque é real.

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA

Um povo ama intensamente as suas ilusões.
Poucos querem saber a verdade acerca do que repetem com convicção sabendo, no fundo, ser falso. A sociedade moderna é aberta e tolerante, aceitando com bonomia multidões de heterodoxos e rebeldes. Mas revelar a realidade é intolerável, merecendo insulto e agressão, pois nada é tão repudiado como a voz da consciência.
A triste situação dos últimos anos é disso prova evidente. Portugal viveu décadas de grandezas a crédito, que só podia acabar numa crise terrível. Agora, quando a inelutabilidade da dívida nos apanhou, inventamos novas ilusões para nos eximirmos às responsabilidades e justificarmos a raiva contra os cortes inevitáveis. E ai de quem desmascarar essas tolices!
A perversa ilusão dos últimos vinte anos é hoje evidente. Qualquer observação honesta revela que um buraco deste tamanho só podia existir com cumplicidade de todos. Os gastos ruinosos foram repetida e democraticamente sufragados pelos eleitores. Todos beneficiámos e aplaudimos com vigor. Os avisos de insustentabilidade dos défices eram crescentes, de organizações internacionais e especialistas domésticos. Até ao último momento ninguém quis saber. Dias antes do fatídico 6 de Abril de 2011, a todos os níveis da sociedade, cada um ainda negava a exigência de mudar a sua vida.
Quando o choque rebentou e a primeira ilusão morreu, houve duas reacções. O povo em geral abriu os olhos e mudou mesmo de vida. Tem sido espantoso ver a atitude de famílias e pequenas empresas, que no meio de enormes sofrimentos, se desembrulham da terrível situação. Mas nas elites foi urgente construir novo mito que permitisse depositar a culpa em porta alheia, justificando os protestos. Afinal éramos todos inocentes e a maldade vinha de um punhado de corruptos incompetentes e da troika que nos ajudava. Esta segunda fantasia, em que todo o aparelho político-mediático anda apostado desde então, constitui uma magna operação de desinformação. E que se livrem de a contrariar!
O Estado, câmaras e instituições fazem o mínimo de reformas possível, esperando que tudo passe para se voltar ao mesmo. Grandes empresas, próximas do poder, gravemente atingidas pelas tolices antigas, aparentam uma normalidade oca. Em particular a banca, óbvia protagonista da crise financeira, assobia para o lado, empurrando o buraco com a barriga. A oposição, grande responsável da crise, grita indignada como se lhe fosse alheia, sem realmente apresentar uma verdadeira alternativa à austeridade. Apesar dos disfarces, a patente incapacidade de todas estas entidades em cumprir as suas funções sociais mostra a gravidade da situação.
Funcionários, médicos, professores e muitos outros grupos profissionais, que tanto ganharam nos anos fáceis, tinham de conhecer a trajectória ruinosa que os seus sistemas seguiam. Só com enorme cegueira voluntária podem agora indignar-se perante os cortes de despesas insustentáveis que acumularam diariamente sem denunciar. Pensionistas, subsidiados, munícipes e utentes quiseram acreditar nas benesses que políticos irresponsáveis lhes concediam, apesar de os défices funcionais mostrarem a evidência do embuste. Não só os aceitaram mas erigiram-nos em direitos inalienáveis, apesar de muito superiores às receitas e liquidados por dívida externa. Agora, dizer-lhes que os seus descontos não garantem os níveis prometidos gera fúrias incontroláveis. Os realistas têm de ser corruptos, neoliberais, hipócritas ou mentecaptos, pois nada é mais negativo do que a sinceridade num povo embevecido pela ilusão. A verdade é crime de lesa-pátria.
Neste mito colectivo a explicação comum para os cortes indispensáveis é que o Governo é perverso e incompetente e os parceiros europeus oportunistas. Estes, que nos emprestam uma fortuna no fundo do nosso buraco, são criticados pela sua solidariedade, pois exigem-nos aquilo que tínhamos de fazer de qualquer maneira. Deste modo um país de inocentes busca explicações mirabolantes para o mal que criou. Pois não há maior cego do que o que não quer ver.
25 de Novembro de 2013
JOÃO CÉSAR DAS NEVES

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