De Tiago Moreira de Sá e Diana Soller, “O
Hino de Leonard Cohen ao Mundo” , artigo saído no Público
de 24/8, apologia da importância da “hegemonia
americana” para o estabelecimento da paz no mundo.
E reescreve a história desse mundo de conflitos que,
ao pretender tomar as rédeas de um maior poder sobre a momentânea perda de
poder dessa potência maior, em várias ocasiões – durante a Guerra Fria, com
Eisenhower, após a Guerra do Vietnam com Nixon - torna o mundo joguete de novos
valores desestabilizadores, levando ao caos em que estamos de novo mergulhados,
a partir do 11 de Setembro e da Grande
Recessão. Daí que o “retraimento estratégico” dos Estados Unidos sob a
presidência de Obama seja absolutamente negativo para essa paz ansiada.
A foto com que a página do Público ilustra o
artigo em foco – de Obama e Putin – é bem explícita da simbologia
a ele aplicável. Uma foto de Obama e Putin, sentados em iguais cadeiras, sob o
pano protector das respectivas bandeiras alternando em duplicado, ambos os
rostos fechados - de preocupação nos lábios contraídos de Obama, mas olhando
frontalmente a objectiva; de indiferença e seriedade - aborrecimento? astúcia? –
o rosto de Putin, olhando as próprias mãos, em desprezo pelo mundo que cinicamente
engana e atropela.
São expressivas as mãos de ambos, tal como os seus
rostos: as de Obama, fincados os cotovelos nos braços da cadeira, formam um tecto
protector – talvez do mundo que o necessita; as de Putin, apoiados os braços suavemente
nos braços da cadeira, estão viradas maciamente para o próprio ventre, em jeito
de voracidade.
Conseguirão as mãos em forma de templo desfazer o
efeito de posse, específica das macias mãos?
“O Hino de Leonard Cohen ao Mundo”
Tiago Moreira de Sá e Diana Soller
«17
de Julho de 2008. Pavilhão O2 Arena. Londres. Tocam os primeiros sons do
célebre "hino" (Anthem) de Leonard Cohen. Em frente a cerca de 20 mil
pessoas, o músico canadiano, regressado aos palcos após longa ausência,
introduz a canção: "É um privilégio estarmos reunidos aqui esta noite
quando grande parte do mundo esta mergulhado na escuridão e no caos". Aplausos e breve silêncio, seguidos
dos seus mais conhecidos versos: "Ring the bells that still can ring/
Forget you perfect offering/ There is a crack in everything/ That’s how the
light gets in".
O
mundo está de facto a passar por uma fase de crescente instabilidade. Estamos a
assistir à criação de um grande arco de violência e de conflito que passa por
várias regiões – da Europa de Leste ao Médio Oriente, da Ásia Central a África
do Norte, do Sahel ao Corno de África – atingindo muitos países, como a
Ucrânia, Israel, Síria, Iraque, Líbia, e Afeganistão, para referir apenas
alguns exemplos muito actuais.
O
que é que todos estes desenvolvimentos coincidentes no tempo têm em comum,
independentemente das diferenças entre eles e das suas causas e características
próprias? A atenuação da hegemonia dos EUA. Dito de uma forma simples: goste-se
ou não, apenas a enorme superioridade de poder de Washington foi capaz de
manter a ordem internacional no pós-Guerra Fria. Qualquer diminuição desta
significa um mundo mais instável.
Normalmente,
o termo usado para designar o vasto poder dos Estados Unidos é “hegemonia
americana”. Usa-se para descrever o alcance de poder que permite influenciar,
de uma forma mais ou menos directa, as decisões e os acontecimentos em várias
regiões do mundo. Mas hegemonia não é só isso. É uma espécie de troca tácita
entre uma grande potência e um grupo de Estados do sistema internacional: o
grande poder providencia uma série de bens comuns, sendo o mais importante a
estabilidade política e comercial, e em troca ganha a possibilidade de
organizar as instituições internacionais e escrever o “manual de instruções”
sobre o que é legítimo ou não nas relações entre Estados. Enquanto a hegemonia
não é verdadeiramente questionada – ou pela emergência de outras grandes
potências excluídas da ordem internacional e que entendem que chegou a sua vez
de determinar as regras e os valores do mundo, ou por um rotundo falhanço das
políticas da grande potência que torna a defesa das regras do jogo impossível –
a ordem vai-se mantendo, sofrendo pequenos ajustes, consoante os novos
acontecimentos e necessidades.
No
Ocidente tem sido assim desde o fim de Segunda Guerra Mundial. A partir de
1945, os Estados Unidos assumiram o seu papel de estabilizador hegemónico,
construindo com a ajuda dos aliados um número sem precedentes de organizações
internacionais de regulação das políticas de segurança, bem como da economia
globalizada. Determinaram interesses estratégicos – fortemente ligados às
rivalidades da Guerra Fria e à segurança energética –, cunharam a ordem com
valores liberais e estenderam a sua influência no mundo em conjunto com os
amigos europeus e japoneses.
Quando
a Guerra-Fria acabou, a ordem tornou-se global e parecia à prova de bala. Os
apoiantes saudavam o momento de estabilidade unipolar e os críticos
preocupavam-se com a concentração de poder da “hiperpotência”. Mas o tom
dominante era o do triunfalismo do Fim da História, de Francis Fukuyama,
materializada durante a administração Clinton na doutrina do “Alargamento”
(Enlargement) e traduzida na expansão da comunidade mundial das democracias de
mercado e no alargamento da NATO, bem como da União Europeia com o apoio de
Washington, a vários países do antigo bloco soviético, aspecto decisivo da
ordem europeia no pós-colapso do comunismo.
O
11 de Setembro veio pôr a claro as vulnerabilidades americanas e as
intervenções no Afeganistão e no Iraque, sobretudo esta, puseram em causa a
legitimidade da hegemonia dos EUA e lançaram dúvidas sobre a extensão do seu
poder militar. A “Grande Recessão” de 2008 (que os Estados Unidos iniciaram,
mas da qual, convém dizer, já saíram), que desencadeou debates internos
difíceis e divisores sobre o modelo económico americano (esses ainda a
decorrer), foi a gota de água, lançando a ordem e a legitimidade de Washington
numa crise que não está ultrapassada e que tem sido reforçada pela percepção
generalizada da ascensão da China e pela adopção de políticas externas cada vez
mais assertivas por parte da Rússia, Índia e Brasil.
A
administração Obama respondeu à crise com retraimento estratégico. O retraimento
consiste numa retirada parcial e temporária da hegemonia para terrenos mais
resguardados. Não significa que os Estados Unidos tenham abdicado de seu papel
de liderança, mas antes que, por falta de recursos, os interesses, as causas, o
número e a intensidade das intervenções diplomáticas ou militares do país serão
mais delimitados e alvo de uma escolha mais cuidada.
O
retraimento estratégico não é necessariamente uma escolha dramática. Aliás, é
uma estratégia de que os EUA fizeram uso pelo menos duas vezes durante a Guerra
Fria com grande sucesso: na administração Eisenhower, para respirar do início
abrupto da Guerra Fira; na administração Nixon, para fazer face ao trauma do
Vietname e à crise energética e económica de 1973. O retraimento permitiu a
reorganização material da hegemonia e o seu regresso em termos reforçados.
Mas
o resultado positivo de uma estratégia no passado não significa o seu sucesso
no presente. Além disso, ela tem consequências completamente diferentes em
bipolaridade e em unipolaridade. Acresce que o retraimento tem dois riscos
interligados, como sejam, uma abrupta perda de influência que pode contribuir
para um declínio real – que não seria desejável para Estados que organizaram a
sua política externa em torno da hegemonia Americana (como é o caso de
Portugal) – e a criação de vazios de poder que permitem que tenham lugar
acontecimentos internacionais trágicos, que seriam contidos caso a hegemonia
tivesse uma presença mais activa.
Claro
que a importância e a incidência desta hegemonia variam entre os vários casos
aqui referidos. É marginal no Sahel, mas essencial na Europa de Leste e no
Médio Oriente. Por exemplo, a abdicação de uma posição dura relativamente à
questão da Ucrânia tem permitido a Moscovo violar as regras e leis básicas do
direito internacional, como o respeito pela soberania e integridade territorial
dos Estados. O mesmo no Iraque e Síria, onde os mais extremistas dos radicais
islâmicos, como o ISIS, levam a cabo práticas que pensávamos que já não eram
possíveis, muito menos admissíveis, perante a passividade da chamada comunidade
internacional, liderada pelos Estados Unidos.
Na
nossa opinião há três grandes conclusões a tirar. Primeiro, o retraimento
estratégico não enfraqueceu apenas os Estados Unidos: deixou um vazio de poder
que está a ser preenchido pela desordem, em muitos casos violenta, em vez de
estabilidade. Segundo, a hegemonia americana, como contrato social global, está
longe de estar esgotada. Apesar das inúmeras críticas que tem sofrido nos
últimos anos, não existe uma fonte alternativa de estabilidade internacional.
Terceiro, a alternativa é, pelo menos por agora, uma maior generalização do
caos e da guerra.
Leonard
Cohen quase certamente discordaria, mas nos nossos dias a fenda por onde pode
entrar a luz continua a estar na América e na sua disponibilidade para voltar a
exercer o poder no sistema internacional.»
E porque de Hino se fala, de sinos que tocam
enquanto ainda conseguem tocar, num mundo a desfazer-se, lembro outros sinos,
os nossos, de simplicidade e modéstia, que Villaret interpretou, do poema de António Lopes
Ribeiro, não hino mas marcha de outros tempos, embora não sirvam de apoio ao
apelo implícito no texto de Tiago Sá e de Diana Soller para a continuidade americana como “estabilizadora
hegemónica”:
Procissão
Tocam os sinos da torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.
De fardas novas, vem o solidó.
Quando o regente lhe acena com o braço,
Logo o trombone faz popó, popó.
Olha os bombeiros, tão bem alinhados!
Que se houver fogo vai tudo num fole.
Trazem ao ombro brilhantes machados,
E os capacetes rebrilham ao sol.
Tocam os sinos na torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.
Olha os irmãos da nossa confraria!
Muito solenes nas opas vermelhas!
Ninguém supôs que nesta aldeia havia
Tantos bigodes e tais sobrancelhas!
Ai, que bonitos que vão os anjinhos!
Com que cuidado os vestiram em casa!
Um deles leva a coroa de espinhos.
E o mais pequeno perdeu uma asa!
Tocam os sinos na torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.
Pelas janelas, as mães e as filhas,
As colchas ricas, formando troféu.
E os lindos rostos, por trás das mantilhas,
Parecem anjos que vieram do Céu!
Com o calor, o Prior aflito.
E o povo ajoelha ao passar o andor.
Não há na aldeia nada mais bonito
Que estes passeios de Nosso Senhor!
Tocam os sinos na torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Já passou a procissão.
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