A
minha amiga é muito drástica nas considerações que faz a respeito das coisas,
muito levada por exaltações próprias de uma sensibilidade transbordante, embora
a minha irmã também não lhe fique atrás nas contestações, quando os coisas não
andam de feição, o que até é norma por cá. No meio das duas, amigas de há longa
data, numa Quelimane de recordação gloriosa, eu limito-me ao papel de expressora
de fungadelas ou interjeições, pois o
rabiscar por vezes os ditos, no acaso das conversas, me reduz a um esbatimento
que condiz, aliás, com a minha timidez natural, embora nos tempos passados o
epíteto “natural” surgisse mais a qualificar a descontração e a estupidez,
condições sine qua non das nossas necessidades naturais. Dizia-se muito,
após um desaire, que sempre os houve, afinal, “o que é preciso é
descontracção e estupidez natural”, para anular os efeitos do desaire. Quando
falámos nos “Antónios”, a propósito de um artigo do Alberto Gonçalves que eu
lera nessa manhã no DN, antes de partir para o nosso encontro na esplanada do
café, a minha irmã referiu o Público que me trazia, com o artigo do Vasco
Pulido Valente, mas a minha amiga, muito desdenhosa, não nos quis acompanhar no
nosso “Olh’ó António”:
-Eu
com esses dois já não me meto, não lhes ligo. Deviam ir para um lar de idosos.
Ora isto não se diz, e até fiquei enxofrada, mesmo
porque os acho jovens e bem parecidos, mas a verdade é que a minha amiga estava
preocupada era com as histórias do seu Bobas, e por isso nos despachou a
conversa em favor do seu caso, que é como quem diz, do do Bobas. As aventuras
romanescas deste com as cadelas da vizinhança, têm-lhe valido telefonemas de
pessoas idosas avisando sobre os espectáculos degradantes que este oferece
perto das esplanadas, e ameaçando mesmo com a carroça, caso não se execute a castração do Bobas, que,
para melhor efeito de sedução, e não só das cadelas mas de todas as senhoras
que o olham sorridentes, usa uns lenços vaporosos da minha amiga com que o
filho da minha amiga lhe enfeita o pescoço, no qual gravou o telefone da casa,
tanto é o receio de que se perca, o que aliás já lhe tem valido boas
caminhadas, após aviso de que está em tal parte, perdido nos seus devaneios.
Foi por isso que, quando cheguei à esplanada, onde as duas já se encontravam,
ao invés das graças com que a minha amiga me costuma acolher, fazendo inspecção
à minha roupagem exterior que geralmente combina pouco e nem mete lenço a tapar
as engelhas do pescoço, a não ser no Inverno, de lã, a nossa amiga estava ao
telefone a responder brandamente a um sujeito irado que a avisava do mau
comportamento do Bobas e ameaçando com a polícia. A minha amiga telefonou logo
ao filho que ainda dormia o sono dos justos, para ir amansar o senhor em tal
parte e levar dali o Bobas.
E
logo a minha amiga, depois de desligar, falou nos apartamentos que não têm
direito a cão, embora estes sejam de uma dedicação aos donos como a não têm os
humanos, e não só com os cegos.
-
Já viu que os portugueses não têm paciência nenhuma para cães? Logo tinham que
ser abatidos! Toda a gente sabe que esses animais vão ser abatidos, porque o
Governo não dá ajuda, com tratamentos e vacinas mais baratos. Alguns, coitados,
são postos fora das casas, abandonados das casas sobretudo nas férias. Então,
quer dizer! Agora tenho o meu problema! Mas o meu Bobas! Temos que lhe dar um
curso de bom comportamento.
Eu
também tive que trazer o meu Fox para o novo apartamento, que era da minha Mãe,
e explicar da adaptação do Fox à sua nova realidade, entre quatro paredes, mas
a minha amiga falou nos 13 anos gastos do Fox, contrariamente à pujança física
do Bobas, correspondendo a uma juventude mais
ansiosa e nem me deixou desenvolver o comentário sobre o meu Fox.
Mas
a minha irmã achou que a protecção do Estado aos cães proposta pela minha amiga
ultrapassava as competências do Governo a debater-se nos problemas económicos da
nossa catástrofe, e cada um tinha que tomar as suas próprias providências, sem
esperar tanto do Estado, e regressámos à canção do “Olh’ó António!” Não era sem
tempo!
Mas
Vasco Pulido Valente e Alberto Gonçalves o fizeram, com a classe de sempre, que
não resisto a transcrever:
Primarismos
Vasco Pulido Valente
O
jovem José Seguro tem um génio quase miraculoso para fazer asneiras sem
remédio. Explicar, por exemplo, num debate de televisão que se demitiria se
tivesse de aumentar impostos não passava pela cabeça de ninguém, excepto talvez
pela cabeça de uma criança de 8 anos, um pouco atrasada. Promover este
extraordinário indivíduo a secretário-geral do PS ou a primeiro-ministro seria
uma rematada loucura e poria rapidamente Portugal inteiro numa crise de nervos.
As coisas que ele pode dizer, capazes de meter o país num indescritível
sarilho, achando que está a exibir a sua grande virtude ou beneficiar o PS e a
Pátria. Não tem equilíbrio, nem prudência, nem sensatez. Como, de resto, provou
à primeira oportunidade quando Costa o desafiou. Viu tudo mal e decidiu pior:
para ele e para o partido.
O
resultado da eleição para as federações, que de certa maneira o beneficia, e o
abrandamento do entusiasmo por Costa criaram ao PS um problema quase
irresolúvel. Seguro conseguiu por um cabelo a legitimidade do “aparelho”;
Costa, se ganhar as “primárias” conseguirá a legitimidade dos “simpatizantes”.
Qual deve prevalecer sobre a outra? Se Costa ganhasse por uma esmagadora margem
(imaginemos por 70 contra 30, ou 80 contra 20) provavelmente acabaria por
impor a sua autoridade. Mas se não ganhar? Se não ganhar, o PS fica
limpamente dividido em dois: o PS do “aparelho”, invocando a sua origem e a
legalidade interna, e o PS do “eleitorado”, onde em princípio está a força que
o levará ao governo. Na guerra entre estas duas legitimidades não há
compromisso possível.
A
cada incidente, a cada vexame, a cada derrota, a velha pergunta voltará: de
quem é a culpa? De Seguro porque deixou deslizar o partido para a irrelevância
e porque inventou as “primárias”, sem medir as consequências do exercício? De
Costa porque afastou ou enfraqueceu Seguro e porque se apoiou em “estranhos”,
cuja “simpatia” (mesmo supondo que é autêntica) não vale o zelo, a fidelidade e
os sacrifícios dos militantes? As “primárias” foram copiadas, como sempre
sucede em Portugal. Só que na sociedade doméstica e pequena de Portugal não
resolvem nada; e servirão quase de certeza para envenenar e aumentar o ódio
fraternal a que ela já hoje se dedica. Esta querela do PS é muito mais
dramática e muito mais perigosa do que se pensa.»
Dois zeros à esquerda
Alberto Gonçalves
DN,
14/9/14
Com a sobrancelha
vibrante de angústia, o António acusa o António de deslealdade e traição. O
António, com o lábio inferior trémulo de mágoa, reage e lamenta que o António
recorra a ataques pessoais. O António sente-se. O António choraminga. O António
faz queixinhas. O António corre para a mãe. Antes do debate na TVI, José
Alberto Carvalho anunciou que iríamos testemunhar uma coisa nunca vista. Estava
certíssimo.
Por mim, nunca vi
demonstração tão cabal de vazio quanto o primeiro confronto directo entre os
Antónios do PS. E esperava não voltar a ver, até que no dia seguinte o
confronto se mudou para a SIC e os Antónios mudaram o registo. Depois da
pieguice, passaram alegadamente a discutir ideias. Dado que não possuem uma
única, além da peculiar noção de que a crise é facultativa e o crescimento
decretável, o vazio foi ainda mais evidente.
Não significa isto
que o António e o António sejam os maiores embaraços da história da democracia,
embora essa hipótese não deva ser desprezada. Significa apenas que não há
memória de os embaraços se exporem assim ao olhar do público. Por regra, quando
uma organização de poder quer colocar uma nulidade na liderança, convoca um
congresso e procede em relativo recato. Por razões que me escapam, o PS decidiu
autopsiar as respectivas nulidades em horário nobre. E o resultado é este.
Misteriosamente, a
opinião publicada consegue tomar partido na contenda, e quase sempre do lado do
António, nascido e criado nas "jotas", contra o António, nascido e
criado nas "jotas". A mera capacidade de se distinguir entre ambos os
Antónios já é notável (no máximo, distinguem-se pelos que os rodeiam: um
António é visto na companhia de relíquias socialistas e de vultos do que aqui
passa por "cultura", e o outro António não). Mas verdadeiramente
espantosa é a tendência de comentadores, colunistas, cartomantes e
"politólogos" para se entusiasmarem com os desabafos dos Antónios,
fundamentados em coisa nenhuma excepto na convicção de que um deles acabará a
mandar no País.
A acontecer tamanho
flagelo, de resto plausível, importa é perceber se o País sobreviverá a
qualquer dos Antónios. Sabe Deus e sabem os contribuintes alemães que Portugal
tem resistido a muito. A desesperada situação em curso sugere que não resistirá
a tanto. Será azar, ou será talvez o justo castigo para quem leva a sério pelo
menos um de dois zeros à esquerda. Os Antónios nem a brincar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário