Releio – e ouço, recitado pelo seu autor, Ary dos Santos
(1937/1984), na Internet, o vasto poema
«As portas que Abril abriu», que conclui:
….De tudo o que Abril abriu
ainda pouco se disse
e só nos faltava agora
que este Abril não se cumprisse.
Só nos faltava que os cães
viessem ferrar o dente
na carne dos capitães
que se arriscaram na frente.
ainda pouco se disse
e só nos faltava agora
que este Abril não se cumprisse.
Só nos faltava que os cães
viessem ferrar o dente
na carne dos capitães
que se arriscaram na frente.
Na frente de todos nós
povo soberano e total
que ao mesmo tempo é a voz
e o braço de Portugal.
povo soberano e total
que ao mesmo tempo é a voz
e o braço de Portugal.
Ouvi banqueiros fascistas
agiotas do lazer
latifundiários machistas
balofos verbos de encher
e outras coisas em istas
que não cabe dizer aqui
que aos capitães progressistas
o povo deu o poder!
E se esse poder um dia
o quiser roubar alguém
não fica na burguesia
volta à barriga da mãe!
Volta à barriga da terra
que em boa hora o pariu
agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu!
agiotas do lazer
latifundiários machistas
balofos verbos de encher
e outras coisas em istas
que não cabe dizer aqui
que aos capitães progressistas
o povo deu o poder!
E se esse poder um dia
o quiser roubar alguém
não fica na burguesia
volta à barriga da mãe!
Volta à barriga da terra
que em boa hora o pariu
agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu!
Lisboa : Ed. Comunicação, 1975
Também eu publiquei, em 1981, (no livro «Cravos
Roxos – Croniquetas verde-rubras»), uma pequena peça - Exercício
Escolar (modesta homenagem aos dramaturgos que eventualmente leccionava
ao acaso das turmas que me cabiam em sorte, e que hoje mais identificaria com
azar) - em que mostrei idênticas afeições sobre as ditas portas abertas uns
anos antes, como prova o seguinte desenlace:
CORO DO
PARTIDO:
Neste país transformado
Por revolução de flores
Que aniquilou
prepotências
E irmanou ricos e
pobres
Trabalhadores e
gestores
Num ideal renovado
De comum realização
Só se escuta o martelar
Dos malhos dos
ferradores
Dos maços dos
calceteiros
E os gritos dos
operários
E os olés dos boieiros
E o chocalhar das
ovelhas
E os protestos dos
doutores
E os risos dos
proletários
E os discursos
partidários
E o gorjear dos
cantores.
Pelas ruas transformadas
Em caminhos pedregosos
Onde as flores são
espontâneas
E os frutos tão
saborosos,
Brotam as almas mais
cândidas
E os sentimentos mais
soltos.
Eis a mensagem,
senhores,
Da nossa festa das
flores.»
(Assim
fenece a farsa)
Ora, as imagens e os sons que nos chegam em catadupa pela
imprensa falada e escrita, é que me fizeram lembrar o poema de Ary dos
Santos de entusiasmo e libertação ditadas pelo ódio a um regime opressor. Ary
dos Santos faleceu em 1984, a tal minha peça, foi de 1981, mas ele não foi
informado disso, doutra forma teria explodido em nova mensagem de veemência democrática,
por ter encontrado uma alma gémea, embora não do mesmo calibre de genialidade
criativa como foi o seu, e que se limitava a imaginar um postigozito de
abertura abrilina.
Mas na questão de portas abertas, agora é que ele teria pano
para mangas para se regozijar plenamente. Não podemos, é certo, implicar o
nosso rubro Abril em tudo o que foi trazido por um mundo já aberto de par em
par, em traições, corrupção, incestos, pedofilia, destruição, violência, sexo,
crime, discrepâncias sociais, e tais…
E o que está a dar
agora, perfeitamente escancarado, não por portas mas por ondas de natureza
vária, entre as quais as da fibra óptica, são essas imagens vindas do deserto de gente
encapuçada e de faca em punho, por trás de jornalistas ajoelhados que vão
morrer.
Um comentário:
Ainda nos sobra o futebol https://www.youtube.com/watch?v=Yu4QGW8Tm-o
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