«Os “gatunos”» de Vasco Pulido Valente
(Público, 7/9/14) faz uma síntese dum dos processos em que saíram finalmente
castigados pela Justiça uns que fizeram parte de uma profunda injustiça
(qualquer fraude é necessariamente injusta, como coisa crapulosa que defrauda
tudo e todos), mas que se consideram injustiçados e por isso vão recorrer.
Vasco Pulido Valente acha que não há recurso que lhes valha, mas parece-me isso
pueril, fruto de disposição de bonomia, mais do que de uma exactidão matemática
de tipo quod erat demonstrandum, depois de se ter chegado ao resultado
que se pretendia. Não costuma ser assim neste país, há muito que se fala em
corrupção da Justiça, que ainda por cima corre hoje o risco de se atrasar sine
die neste e noutros casos e até baralhar os processos por conta de um
sistema electrónico que falhou, em mudança monstruosamente apressada, o que dará boa
oportunidade para os prazos prescreverem e possibilitarem basto tempo para os
condenados se escaparem ou até – quem sabe? – para fabricarem mais uns estratagemas
dolosos, as faces sempre ocultas ou mesmo outras partes dos respectivos corpos e
das próprias almas, habituadas à dissimulação, à lisonja, à falcatrua e a
outros esquemas do carácter que o filósofo Teofrasto tão excelsamente tipificou
há um montão de séculos, para elucidação dos vindouros. Não, não creio que a
condenação vá passar. “No pasará” é fórmula protectora da virtude, fórmula com
que a Justiça portuguesa define as condenações dos barões. Que, para os Jean
Valjean esfomeados, as galés são sempre a sentença. Vem nos livros:
Os
“gatunos”
07/09/2014
O país ficou espantado com as penas aplicadas aos réus do
processo Face Oculta: mais de 17 anos de prisão efectiva para Manuel Godinho (o
dono da sucateira), cinco anos para Armando Vara (grande personagem do PS,
antigo ministro e antigo vice-presidente do BCP), cinco para José Penedos (que
mandava na REN) e quatro para o filho e cadeia também para mais sete criaturas
pouco conhecidas do público informado. Este operoso grupo, segundo o tribunal,
é condenado por crimes vários, frequentemente cometidos com a ajuda de uma
velha figura jurídica a que se chama por amabilidade “tráfego de influências”,
em vez de honesta e francamente “roubo ao Estado”. Os condenados ficaram
assombrados com a “severidade” dos juízes, porque a história pregressa desta
espécie de aventuras tinha até agora acabado bem: os responsáveis pelo BPN, por
exemplo, andam por aí à solta.
Mas
seria absurdo que, no empobrecimento geral dos portugueses, Godinho, Vara e
companhia se conseguissem salvar em nome da sua póstuma importância. Basta sair
de casa para ouvir o que a grande maioria do país pensa realmente deles. Pensa
que são “gatunos”. E não vale a pena argumentar: um político ou um homem de
negócios é sempre “gatuno”. Como explicar, se não por isso, a miséria
envergonhada e quase salazarista em que vivemos? Só pelos “gatunos” que nos
vigarizaram e roubaram no Governo, nos bancos, nos milhares de burlas do
dia-a-dia. A explicação tem uma parte de verdade. Mas não conta que no pequeno
universo indígena, em almoços, em jantares, em conversinhas de escritório, em
visitas ao “camarada” ou “companheiro” de partido, de repente promovido a
ministro, a fraude continua numa enorme inocência.
Advogados
dos réus saíram do tribunal prometendo recorrer. Erro deles. Os juízes não têm
a miraculosa imunidade dos santos ao ambiente que é o deles. Partilham em maior
ou menor grau os sentimentos, os preconceitos, as fúrias do cidadão comum. Isto
não quer dizer que atropelem ou adaptem a lei à sua vontade. Mas quer dizer que
a sua benevolência varia. Um tribunal que hoje resolva diminuir ou mitigar as
penas de “gatunos” desafia a opinião universal, que de resto ele mesmo aprova.
É muito difícil resistir às tendências de massa, até quando se tem razão e não
há dúvidas. Num caso ambíguo, o que anda no ar invariavelmente prevalece.
Enquanto durar o empobrecimento português, as maquinações jurídicas não irão
longe.
Quanto
ao artigo do dia 5/9 – Dois compadres – seja embora uma repetição de
tema, o brilho do descritivo faz que o admire e releia. Por isso o guardo,
para me recrear com a análise panorâmica
de mais uns “Caractères” da nossa praça, que os próprios visados
desdenharão como convém, Seguro porque o não lê, Costa porque prepara a resposta
para mais tarde, quando tirar os coelhos todos da cartola. Ou os lenços de
muitas cores, para as lágrimas dos “ai dos lusíadas, coitados!”:
Dois
compadres
05/09/2014
Costa
e Seguro, ou Seguro e Costa, acreditam sinceramente que, a seguir a esta
fantochada, os portugueses ainda votarão neles?
Em
última análise, o que está no fundo das “primárias” do PS é muito simples:
António Costa “sai” bem na televisão e António José Seguro não “sai”. Isto já
se sabia antes da presente balbúrdia. Na Quadratura do Círculo, e fora
dela, Costa adoptou uma pose de “homem de Estado”: sereno, informado,
cuidadoso. Nos soundbytes que distribuía
pacientemente pelo país, Seguro falava sempre como um seminarista em férias,
com medo de se esquecer da lição: despachava à pressa o recado, com a hesitação
e as repetições do aprendiz e, quando fazia um esforço para se dar uma sombra
de autoridade, tudo soava falso e frequentemente ridículo. Seguro de cara séria
e em tom de ameaça parecia um adjunto de gabinete a representar um papel que
não era o seu. Ninguém desde o princípio acreditou nele.
De
qualquer maneira, Portugal continua na suave ignorância do que estas duas
personagens pensam ou querem. Costa tem um plano perfeito para conservar o seu
halo de génio e mistério. Agora, não dirá coisa nenhuma, porque o seu papel é
angariar votos. No congresso, perante os “camaradas” apresentará um “documento”
com as tarefas da Pátria para a próxima “década”. E, no fim, quando for
primeiro-ministro anunciará o programa do Governo. Até lá quer sossego e
principalmente não se misturar com a gentinha que o rodeia e rodeia Seguro. O
chefe precisa de uma certa gravidade, que a berraria impede. Será levado de
andor para S. Bento ou voltará à câmara, abençoado pela “inteligência” e pela
ralé. O “culto” de Costa, se não servir para o dia 28, como é de esperar,
servirá para dividir o PS e para Belém.
Seguro
não pode nada contra isto. Não calou a boca, mesmo quando vinha a propósito,
durante três anos de secretário-geral e hoje é tarde para se desdizer ou para
tapar o chorrilho de asneiras que serviu aos portugueses. As suas credenciais
no partido não são particularmente distintas e parecem menores comparadas ao
beatífico currículo de Costa, nascido para a fé (como ele não se cansa de
lembrar) na tenra idade dos 14 anos, e esta semana abençoado pelas mais
veneráveis “figuras” do PS num pequeno-almoço “histórico” no venerável e também
“histórico” Hotel Altis. Pena que a natureza anticlerical da seita não permita
o Te Deum que o episódio pedia. Falta
uma pergunta: Costa e Seguro, ou Seguro e Costa, acreditam sinceramente que, a
seguir a esta fantochada, os portugueses ainda votarão neles?
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