domingo, 14 de setembro de 2014

Eu não sei se será assim



«Os “gatunos”» de Vasco Pulido Valente (Público, 7/9/14) faz uma síntese dum dos processos em que saíram finalmente castigados pela Justiça uns que fizeram parte de uma profunda injustiça (qualquer fraude é necessariamente injusta, como coisa crapulosa que defrauda tudo e todos), mas que se consideram injustiçados e por isso vão recorrer. Vasco Pulido Valente acha que não há recurso que lhes valha, mas parece-me isso pueril, fruto de disposição de bonomia, mais do que de uma exactidão matemática de tipo quod erat demonstrandum, depois de se ter chegado ao resultado que se pretendia. Não costuma ser assim neste país, há muito que se fala em corrupção da Justiça, que ainda por cima corre hoje o risco de se atrasar sine die neste e noutros casos e até baralhar os processos por conta de um sistema electrónico que falhou, em mudança  monstruosamente apressada, o que dará boa oportunidade para os prazos prescreverem e possibilitarem basto tempo para os condenados se escaparem ou até – quem sabe? – para fabricarem mais uns estratagemas dolosos, as faces sempre ocultas ou mesmo outras partes dos respectivos corpos e das próprias almas, habituadas à dissimulação, à lisonja, à falcatrua e a outros esquemas do carácter que o filósofo Teofrasto tão excelsamente tipificou há um montão de séculos, para elucidação dos vindouros. Não, não creio que a condenação vá passar. “No pasará” é fórmula protectora da virtude, fórmula com que a Justiça portuguesa define as condenações dos barões. Que, para os Jean Valjean esfomeados, as galés são sempre a sentença. Vem nos livros:

Os “gatunos”
07/09/2014
O país ficou espantado com as penas aplicadas aos réus do processo Face Oculta: mais de 17 anos de prisão efectiva para Manuel Godinho (o dono da sucateira), cinco anos para Armando Vara (grande personagem do PS, antigo ministro e antigo vice-presidente do BCP), cinco para José Penedos (que mandava na REN) e quatro para o filho e cadeia também para mais sete criaturas pouco conhecidas do público informado. Este operoso grupo, segundo o tribunal, é condenado por crimes vários, frequentemente cometidos com a ajuda de uma velha figura jurídica a que se chama por amabilidade “tráfego de influências”, em vez de honesta e francamente “roubo ao Estado”. Os condenados ficaram assombrados com a “severidade” dos juízes, porque a história pregressa desta espécie de aventuras tinha até agora acabado bem: os responsáveis pelo BPN, por exemplo, andam por aí à solta.
Mas seria absurdo que, no empobrecimento geral dos portugueses, Godinho, Vara e companhia se conseguissem salvar em nome da sua póstuma importância. Basta sair de casa para ouvir o que a grande maioria do país pensa realmente deles. Pensa que são “gatunos”. E não vale a pena argumentar: um político ou um homem de negócios é sempre “gatuno”. Como explicar, se não por isso, a miséria envergonhada e quase salazarista em que vivemos? Só pelos “gatunos” que nos vigarizaram e roubaram no Governo, nos bancos, nos milhares de burlas do dia-a-dia. A explicação tem uma parte de verdade. Mas não conta que no pequeno universo indígena, em almoços, em jantares, em conversinhas de escritório, em visitas ao “camarada” ou “companheiro” de partido, de repente promovido a ministro, a fraude continua numa enorme inocência.
Advogados dos réus saíram do tribunal prometendo recorrer. Erro deles. Os juízes não têm a miraculosa imunidade dos santos ao ambiente que é o deles. Partilham em maior ou menor grau os sentimentos, os preconceitos, as fúrias do cidadão comum. Isto não quer dizer que atropelem ou adaptem a lei à sua vontade. Mas quer dizer que a sua benevolência varia. Um tribunal que hoje resolva diminuir ou mitigar as penas de “gatunos” desafia a opinião universal, que de resto ele mesmo aprova. É muito difícil resistir às tendências de massa, até quando se tem razão e não há dúvidas. Num caso ambíguo, o que anda no ar invariavelmente prevalece. Enquanto durar o empobrecimento português, as maquinações jurídicas não irão longe.

Quanto ao artigo do dia 5/9 – Dois compadres – seja embora uma repetição de tema, o brilho do descritivo faz que o admire e releia. Por isso o guardo, para me recrear com a análise panorâmica  de mais uns “Caractères” da nossa praça, que os próprios visados desdenharão como convém, Seguro porque o não lê, Costa porque prepara a resposta para mais tarde, quando tirar os coelhos todos da cartola. Ou os lenços de muitas cores, para as lágrimas dos “ai dos lusíadas, coitados!”:

Dois compadres
05/09/2014
Costa e Seguro, ou Seguro e Costa, acreditam sinceramente que, a seguir a esta fantochada, os portugueses ainda votarão neles?
Em última análise, o que está no fundo das “primárias” do PS é muito simples: António Costa “sai” bem na televisão e António José Seguro não “sai”. Isto já se sabia antes da presente balbúrdia. Na Quadratura do Círculo, e fora dela, Costa adoptou uma pose de “homem de Estado”: sereno, informado, cuidadoso. Nos soundbytes que distribuía pacientemente pelo país, Seguro falava sempre como um seminarista em férias, com medo de se esquecer da lição: despachava à pressa o recado, com a hesitação e as repetições do aprendiz e, quando fazia um esforço para se dar uma sombra de autoridade, tudo soava falso e frequentemente ridículo. Seguro de cara séria e em tom de ameaça parecia um adjunto de gabinete a representar um papel que não era o seu. Ninguém desde o princípio acreditou nele.
De qualquer maneira, Portugal continua na suave ignorância do que estas duas personagens pensam ou querem. Costa tem um plano perfeito para conservar o seu halo de génio e mistério. Agora, não dirá coisa nenhuma, porque o seu papel é angariar votos. No congresso, perante os “camaradas” apresentará um “documento” com as tarefas da Pátria para a próxima “década”. E, no fim, quando for primeiro-ministro anunciará o programa do Governo. Até lá quer sossego e principalmente não se misturar com a gentinha que o rodeia e rodeia Seguro. O chefe precisa de uma certa gravidade, que a berraria impede. Será levado de andor para S. Bento ou voltará à câmara, abençoado pela “inteligência” e pela ralé. O “culto” de Costa, se não servir para o dia 28, como é de esperar, servirá para dividir o PS e para Belém.
Seguro não pode nada contra isto. Não calou a boca, mesmo quando vinha a propósito, durante três anos de secretário-geral e hoje é tarde para se desdizer ou para tapar o chorrilho de asneiras que serviu aos portugueses. As suas credenciais no partido não são particularmente distintas e parecem menores comparadas ao beatífico currículo de Costa, nascido para a fé (como ele não se cansa de lembrar) na tenra idade dos 14 anos, e esta semana abençoado pelas mais veneráveis “figuras” do PS num pequeno-almoço “histórico” no venerável e também “histórico” Hotel Altis. Pena que a natureza anticlerical da seita não permita o Te Deum que o episódio pedia. Falta uma pergunta: Costa e Seguro, ou Seguro e Costa, acreditam sinceramente que, a seguir a esta fantochada, os portugueses ainda votarão neles?

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