Há
mais de doze anos – perdi-lhe a conta e o cartão identificador - ainda a minha
Mãe era uma mulher válida, que subia as escadas para o seu quarto, no primeiro
andar, como os outros, e podia tomar conta da casa, caso eu precisasse de sair
por algum tempo, embora comedidamente, que a minha Mãe sempre foi soberana e
cobrava em exigência de docilidade posterior. Mas tratava-se de uma catarata, a
do meu olho esquerdo, e o meu marido sempre me acompanhara nessas tardes a
Lisboa, no comboio e metro, aos serviços da CGD, e até no dia da operação não
arredou pé, facto que nunca esqueci, nem o gesto do João que nos levou nesse
dia, e ali esteve, dia de terror que toda a gente afirmava que se fazia com uma
perna às costas, do que sempre discordei.
Por isso levei doze ou mais anos a ignorar a catarata do olho direito,
até que a minha “qualidade de vida” definitivamente impôs o inevitável, a minha
Paula encarregando-se do caso, ali no Hospital onde treinavam e muitas vezes
apresentavam o seu coral “Vox Maris”. A minha Mãe já não estava, mas está
o Fox a impedir a camaradagem do meu marido, pretexto hábil de recusa do
anterior companheirismo, que me fez sentir-me só e abandonada no deserto da
vida, disposta a tudo conseguir sozinha, entregue “à bicharada”, sem dar parte
de fraca, mas com muita compaixão de mim. Por isso, quando o Ricardo me
telefonou nessa manhã, a voz embargou-se-me e confessei que estava apavorada,
mas ele não se comoveu e para me fazer rir, ditou que depois eu faria um artigo
sobre o caso. E assim fiquei, pois, com o meu ego, lembrando a “Lágrima”
da nossa Amália, a desejar um xaile para me deitar no chão e só acordar no dia
seguinte, reduzida ao “Não sou nada. Nunca serei nada” de autopiedade, do
Álvaro de Campos, mas ficando-me por aí, sem mais dimensão com que ele
continuou essa sua “Tabacaria”
universal.
É
claro que a minha irmã não me abandonou e também não arredou pé, nessa tarde,
levando-me ao Hospital e esperando
comigo, no confortável quarto onde eu iria pernoitar. Mas quando os enfermeiros
me vieram buscar, soçobrei em lágrimas sem poesia, o que não facilitou as
coisas. As enfermeiras eram simpáticas, e quando uma delas me assegurou,
sorridente, que o medo era próprio das pessoas inteligentes, embora assim fortalecida na auto-estima que contrariava as
convicções expressas no poema “Tabacaria” com que me enovelara há muito
tempo já, na previsão do acto, apertei as mãos a suster-me, para cumprir com
valentia, esvaziando na força destas as energias que suavizariam o caminho da
operação entregue ao oftalmologista
excelente. A verdade é que o médico ainda teve umas exclamações de impaciência,
porque me mexi, apesar da força das minhas mãos a aparar o choque à distância.
Tortura. Eu só desejava uma anestesia geral, num xaile que fosse, para acordar
no dia seguinte, tudo isso passado. Mal passado, todavia. Na operação anterior
não tomei tantos remédios, como os que estou a tomar, nem nada que se parecesse
com a variedade de gotas para o olho e os comprimidos para acelerar a cura. E
quando regressei ao quarto, a minha irmã continuava firme, na companhia da
minha neta Catarina que me viera ver no seu dia de folga, e pouco depois a
Paula, que me meteu nesta, e que estivera a ensaiar no seu coral, com que
preenche os breves espaços das aulas. Inútil a pieguice do orgulho, na
contenção egocêntrica das nossas tragédias que o não são, afinal, e bom é
sempre o carinho que nos cerca, mesmo que seja só para chorarmos por nós ou de
nós rirmos.
Entretanto,
trouxera, para acabar de ler, antes da operação, o extraordinário romance do
escritor dinamarquês Jens
Crhristian
Grøndahl «Silêncio em Outubro”,
que tenho lido ao deitar, uma obra de uma intriga aparentemente igual à de
tanta gente, mas transformada pela magia da palavra, como arca de tesouros mais
ricos que os descobertos por Ali Babá na caverna dos ladrões, por um estilo
transparente e simultaneamente de uma riqueza verbal e de conceito que
transfiguram os mais simples gestos ou acções e apetece fixar, como fixamos os
versos ou frases dos escritores clássicos, de que este é exemplo, mesmo em
tradução.
Uma
história de amor, talvez de adultério ou apenas algum desgaste que resultam em fuga da mulher – Astrid – e na
reconstituição da vida própria do narrador – crítico de arte, também motorista
de táxi quando a conhecera, ainda jovem – e ao longo da narrativa vai incluindo
factos que, percorrem essa vida, em analepses frequentes, de instantes sempre iluminados
por clarões incisivos que a cada passo nos deslumbram quer no realismo dos
traços, quer na seriedade da crítica, quer na visão satírica de uma sociedade
burguesa, intelectual, ou mais jovem, quer no colorido que tudo envolve: uma
infância um tanto desamparada, por uma mãe vaidosa e ausente e um pai ocupado e
fraco, uma vida pessoal de rapaz habituado a gerir o seu destino, passando as
suas camisas, cozinhando a sua comida, vivendo as suas aventuras. Finalmente o
conhecimento de Astrid e do seu filho Simon, fugindo do presunçoso realizador
de cinema com quem vivia, apanhando o táxi, em voltas sem rumo, até que ele os
hospeda em sua casa. E depois de um casamento de dezoito anos, com uma filha
comum, Rosa, um dia Astrid parte, no inesperado de um comportamento orgulhoso e
fechado, que o deixa inerte e ansioso, sem, contudo querer dar parte de fraco. Seguindo-lhe,
porém, as voltas, segundo as pistas deixadas pelo extracto de contas comum,
imaginando os seus passos, reconstituindo panorâmicas já vividas, a própria
filha, cúmplice da mãe, deixando na indefinição o paradeiro desta, conhecendo
embora o amor que unia os pais e cujo orgulho os isolava na respectiva concha,
deixando antever uma hipótese de viragem.
Uma
história de gente comedida e orgulhosa, que prefere o silêncio à justificação,
a fuga e o olhar enigmático de Astrid antes de voltar costas e desaparecer,
como penetrando silenciosamente no íntimo do marido, para sempre em dúvidas e
em suposições dos motivos impulsionadores
da sua decisão.
Toda
a intriga é um repescar de memórias, de explicações hipotéticas, de divagações que
vão confluindo em uma consciência da impossibilidade do definitivo. Toda a obra
é de um extraordinário interesse, quer no desenho dos caracteres, quer na
elegância dos conceitos e sobretudo no fulgor de um descritivo sensorial e
imagístico de extraordinário efeito.
Foi
um livro oferecido pelo Ricardo, Binha e Ana, em 2002. Só agora o li, soterrado
que fora na vida dispersa que sempre vivi. Nele o Ricardo escreveu: “Um
título sugestivo… não te esqueças que faço anos em Outubro!... Feliz
aniversário»
Um
título sugestivo, sim, este de “Silêncio em Outubro”. Mas eu não me
importaria de lhe dar por título “Sinfonia em Outubro”: pela expressão
sensorial em que a cor domina, pela argúcia na descrição de personagens, de
eventos ziguezagueando ao sabor das recordações, na busca incessante ditada
pelo amor e a comunhão, na consciência dos gestos da mulher, mesmo na distância
dos espaços e dos tempos. Como escritor de arte, o narrador deslocava-se
frequentemente aos Estados Unidos, em pesquisas, que possibilitaram relações de
adultério e a consciência pesada.
Já
em tempos transcrevi a introdução do livro, iniciada em Lisboa. Não resisto à
tentação de fechar estas páginas com a transcrição do seu final, também em
Lisboa, com pena de não o fazer a tantos outros descritivos desta Arca de esplendorosa
magia, o mistério fazendo dela parte, num desenlace não decidido, de narrativa
aberta:
2 comentários:
Tu e a tua teimosia!... Gostei do teu texto pós-operatório. Nesse tal livro de outubro, por certo oferecido em agosto, a referência ao aniversário terá sido acompanhada por um desafio a escrever o teu próprio romance (coisa sempre fora de questão). Que tal pegares na tua experiência de vida, metê-la dentro de um carro na marginal a caminho de Lisboa e, por analepse em cada semáforo, mencionando o nome da cada rua por onde passas, ires desfiando o nó do teu rosário? Ninguém precisaria de saber que a tua vida estaria ali exposta uma vez que tens uma amiga que te serve que nem ginjas para ser a personagem principal e que iria sentir-se nas nuvens...
Gostei do teu comentário, Ricardo. Mas a tua sugestão, tão antiga já, não quadra à minha imperícia na condução, para mais nesta idade provecta, e com o tempo ocupado com outras conduções. Um beijinho.
Me.
Postar um comentário