Hoje a minha irmã não fez parte do nosso convívio domingueiro, pois que está de férias no Algarve, depois de me deixar ficar os Públicos que repartimos fraternalmente - eu recebendo-os para me ilustrar, ela pagando-os e dando-mos fraternalmente para ler, após a sua própria ilustração, e deste modo cumprindo nós ambas as funções alienantes e aprazíveis que competem à imprensa, exemplares que encaminho seguidamente para a minha amiga, atida ao princípio de partilha que nos define a época, para mais sendo o Público um jornal com muita qualidade, a exigir difusão.
A minha amiga vinha armada dos seus saberes, e largou, quando me mostrei assustada com a situação de ameaça de guerra que paira estupidamente no mundo:
- O que se está a ver, a Guerra está aí. Putin avisou do seu poder. Aos jihadistas: “Vocês sabem todos qual é o nosso poder nuclear!” Ao mais pequeno atrevimento entra em campo. Ele avisou! Ouvi em S. João do Estoril. Ele avisou do seu poder.
Lançada que estava, nem me deixou mostrar os meus próprios receios que têm a ver sobretudo com a Ucrânia, onde Putin joga todo o seu cinismo ameaçador. Mas eu estava sobretudo excitada com uma notícia que ontem ouvi na TV Cinq, sobre um Metropolitano 2 de Moscovo, ao que parece construído no tempo de Estaline, mais profundo do que o Metropolitano público, estreado em 1935, o qual era secreto, só conhecido do poder e do KGB. Uma das novas que ouvi foi a de que os construtores foram mortos depois de findo o trabalho, para o Metro 2 reservado à espionagem e sequelas, não vir a ser divulgado. Mas a minha amiga era alheia à informação, e fiquei na dúvida do que ouvira, receando ter-me equivocado. A informação não se arreda, contudo, dos íntimos pensamentos que o receio da terceira guerra, de grandes possibilidades arrasadoras, confirma, a propósito das crueldades das guerras anteriores – mundiais – e da Revolução Russa e do que se viveu sob o poder de Estaline, incluindo os pânicos da Guerra Fria, do Muro de Berlim, do comunismo na Ásia, de Mao Tsé-Tung… Presentemente, dos olhos álgidos de Putin. Não devo ter-me enganado a respeito da notícia sobre o Metro 2 de Moscovo, de execução dos seus construtores. O resto… é silêncio, para que todos tendemos, em precipitação laboriosa.
Mas entre os Públicos da semana que a minha irmã me deixou antes de partir para férias, o Público de 24 de Agosto vem pleno de referências a esta expectativa, que cada vez mais estamos augurando, de um conflito mundial por conta das disponibilidades cortantes dos olhos álgidos de Putin. São vários os articulistas, prova da preocupação geral, mas o extenso artigo de Teresa de Sousa - «Europa: o mundo está a entrar-lhe pela casa dentro sem pedir licença» é uma lição que gostarei de guardar. Transcrevo-o da Internet, precedido da síntese e dos conceitos orientadores ali expostos. Uma lição para meditar:
«Europa: o mundo está a entrar-lhe pela casa dentro
sem pedir licença»
A Europa joga o seu futuro na forma como agir na
Ucrânia e no Médio Oriente. Deixou de poder ignorar o mundo. Mas ainda não sabe
como pode lidar com ele. A Alemanha, pelo menos, já mudou.
Conceitos:
«Angela Merkel não costuma brincar em serviço.
Concorde-se ou não com ela, provou-o na forma como geriu a crise do euro.
Também não quis deixar dúvidas sobre a viragem súbita da política alemã em
relação a Vladimir Putin. É verdade que foi preciso um avião com 300 pessoas
a bordo, na sua maioria europeus, para fazê-la acelerar a mudança. Também
aprendemos que gosta de agir no último minuto e com o menor custo possível.
Desta vez, corrigiu a rota tão rapidamente que a imprensa ocidental ainda levou
alguns dias a mudar, ela própria, de registo.
Desde
o início da crise, a chanceler tinha decidido coordenar a resposta ao
desafio bélico de Vladimir Putin com o Presidente Obama e foi o que fez,
mesmo que alguns passos atrás. Manteve um contacto permanente com o
Presidente russo. “Ele vive noutro mundo” disse a Obama pouco antes da
anexação da Crimeia. Sempre disse que a Rússia teria de pagar um preço.
Finalmente, a 29 de Julho, a decisão de passar ao “nível três” das sanções,
aquele que verdadeiramente dói à economia da Rússia, foi o primeiro sinal claro
dessa mudança.
A
chanceler percebeu que era a segurança europeia que estava posta em causa e que
a geoeconomia que inspirou a sua política externa (muitas vezes com a fúria
dos seus principais parceiros europeus) e que determinou a relação da Alemanha
com a Rússia, deu lugar à geopolítica.
A
Alemanha é o terceiro maior parceiro comercial da Rússia (a seguir à
China e à Holanda) e um dos maiores investidores. Berlim sempre
entendeu que as relações com Moscovo eram para tratar ao nível bilateral e
não ao nível europeu. Merkel limitou-se a corrigir os excessos do anterior
chanceler social-democrata Gerhard Schroeder, o grande amigo de Putin. Percebeu
que não podia relacionar-se com Moscovo ignorando pura e simplesmente a
Polónia e deu-lhe um lugar a bordo. O chefe da diplomacia polaca, Radeck
Sikorski agradeceu a diferença. Elogiou a chanceler com uma frase estranha na
boca de um polaco: “Tenho mais receio da falta de liderança alemã do que da sua
liderança”. A Polónia e a maioria dos países de Leste que são hoje membros da
União e da NATO sempre avisaram que Putin não era de fiar. Foram muitas
vezes ignorados. Os líderes dos restantes países europeus encontraram no
“unilateralismo” alemão na sua relação com a Rússia a desculpa ideal para
prosseguirem com os seus negócios.
A
crise na Ucrânia, que a Europa não conseguiu antecipar, pôs em causa este
estado de coisas. O papel da Alemanha seria sempre crucial.
“Não estás a entender, George”
“Tu
não estás a entender, George, a Ucrânia nem sequer é um Estado, parte do seu
território pertence à Europa de Leste mas a parte maior foi uma oferta que lhe
fizemos”. A frase é de Vladimir Putin. Foi dita no dia 24 de Abril de 2008,
depois da última cimeira da NATO em que George W. Bush participou, em
Bucareste. Estava de partida, queria fazer as pazes com os aliados europeus,
aceitou a pressão alemã para deixar cair a promessa de alargamento da Aliança à
Geórgia e à Ucrânia. Três meses depois, a Rússia invadia a Geórgia a
pretexto das minorias russas que viviam nos enclaves da Abekhazia e da Ossétia
do Sul.
Nicolas
Sarkozy partiu para Moscovo e para Tbilissi forçando um acordo que tinha duas
versões diferentes, conforme a capital onde foi negociado. A Europa enterrou
o problema e seguiu em frente. Alguns meses depois da ocupação, Varsóvia
propôs a Berlim uma nova parceria de vizinhança virada para Leste, incluindo os
países de fronteira entre a Rússia e a Europa. Frank-Walter Steinmeier,
então e hoje o chefe da diplomacia alemã dos governos de coligação, rejeitou a
proposta. O ministro estava a negociar na mesma altura uma “Parceria para a
Modernização” com a Rússia. Sikorski uniu-se à Suécia onde o seu homólogo
Carl Bildt percebia o que estava em causa. Hoje, a parceria já uma política
europeia. Seguiram-se os acordos de associação que Bruxelas tratou de
negociar, incluindo com a Ucrânia. Percebeu que qualquer coisa se
passava quando, na véspera da cimeira em que o acordo devia ser assinado
(Novembro de 2013), Kiev não compareceu. O que ninguém previu foi que
os jovens que queriam ligar o destino do seu país à Europa, fossem para a rua
defender a sua causa. Em seis meses, tudo mudou.
Angela
Merkel resolveu garantir essa mudança com actos que nunca imaginaríamos
como possíveis. Na semana passada foi a Riga dizer aos letões: “Quero
insistir em que o Artigo 5.º da NATO – o dever de garantir apoio mútuo – não é
uma coisa que apenas exista no papel, tem de ter uma tradução concreta”.
Anunciou que jactos alemães vão participar numa missão da NATO de policiamento
aéreo das fronteiras e que a Aliança está a acelerar a constituição de uma
força de reacção rápida, “se a Rússia tentar desestabilizar a vizinhança dos
Bálticos como fez na Ucrânia”. A Letónia e a Estónia, membros da União e da
NATO, têm vastas minorias russas. Qualquer sinal de fraqueza em Kiev iria
colocá-los na linha de mira de Putin.
No
sábado, a chanceler foi a Kiev mostrar de que lado está, mesmo que também para
encontrar com o Presidente ucraniano uma solução política que salva a face ao
Presidente russo. Escreve Quentin Peel, o correspondente do Financial Times em Berlim: “Putin
esperava que a Alemanha resistisse a qualquer medida que afectasse as suas
exportações”. Enganou-se. “Cometeu um enorme erro de cálculo sobre a
chanceler”. A crise na Ucrânia apenas acelerou uma revisão da política externa
que já vinha de trás. Ulrick Speck escreve no site do Carnegie Europe: “Putin está a
aprender que não colhe grande simpatia no seu estrangeiro próximo e, ao
contrário do que ele pensava, quando confrontada com um desafio vital, a UE
pode ser um opositor muito duro”. Os europeus perceberam, depois da
anexação da Crimeia, que Putin “tornou claro que rejeita totalmente a ordem
pós-Guerra Fria na Europa”, diz Stefan Meister do European Council on
Foreign Relations.
A
NATO não escondeu os perigos que a situação envolve, reafirmando por palavras e
alguns actos que o artigo 5.º é para cumprir. A 17 de Agosto, uma opinião
assinada pelo secretário-geral da NATO Anders Fogh Rasmussen e pelo
comandante supremo aliado, Philip Breedlove, notava que, “pela
primeira vez desde o fim da II Guerra um país europeu anexou parte de outro
pela força”. “A nossa missão é garantir que a NATO quer defender todos os
aliados contra qualquer ameaça”. Americanos, franceses, ingleses deslocaram
para os Bálticos e para a Polónia aviões e soldados. Cada vez mais, mesmo que a
contragosto, a Europa começa a perceber que o seu mundo “pós-moderno” e a sua
visão normativa das relações internacionais, à imagem e semelhança da sua
própria integração, já saiu de moda e que a espera lá fora um mundo cada vez
mais vestefaliano, onde imperam as relações de poder. Não ligou grande coisa ao
mundo mas o mundo, como se esperava, entrou-lhe pela casa dentro, sem se fazer
convidado.
Estamos,
porventura, perante um ponto de viragem que é o fim de um longo caminho que os
europeus prosseguiram nos últimos 25 anos para tentarem adaptar-se ao mundo
pós-Guerra Fria. Com o Tratado de Maastrich, em Dezembro de 1991, ficou
garantido o compromisso da Alemanha unificada com a integração europeia
(através do euro). Em 1992, durante a primeira presidência portuguesa, a Europa
considerou que podia gerir os riscos de desagregação violenta da Jugoslávia,
sem ter de recorrer aos EUA. A ilusão durou três anos e duas centenas de
milhares de mortos. Sucederam-se os enviados especiais e os capacetes azuis.
Os
fantasmas do passado regressaram quando Bona reconheceu a independência da
Croácia sem sequer informar os seus parceiros, enquanto Mitterrand se mantinha
fiel à Sérvia. Em 1995, apenas restou à Europa ir à Casa Branca com uma
corda ao pescoço pedir ajuda a Bill Clinton para forçar uma negociação e
garantir uma força militar suficientemente grande para fazer cumprir os seus
resultados. No Kosovo a história repetiu-se. Tony Blair apresentou a sua
doutrina da intervenção humanitária. A ONU integrou-a sob a forma do novo
princípio da “responsabilidade de proteger”. Cansados da humilhação que
sofreram nos Balcãs, com a sua incapacidade política e militar, Tony Blair e
Jaques Chirac reuniram-se em St. Malo em 1999 para lançar as bases de uma
defesa europeia. Depois veio o 11 de Setembro, o Afeganistão e o
Iraque, que quebrou a meio a NATO e a União Europeia. Foi preciso a chegada
de Nicolas Sarkozy ao Eliseu para que a França abandonasse a ideia de uma
defesa europeia fora da NATO, que Londres recusava aceitar. O anterior
Presidente integrou a França de novo na estrutura militar da Aliança (De Gaulle
retirara-a de lá em 1966) e aproximou-se dos Estados Unidos, abrindo as portas
a um novo entendimento com Londres. François Hollande não pôs essa
reorientação em causa. Faltava a Alemanha definir o seu lugar.
A decepção do Tratado de Lisboa
Há
precisamente cinco anos a União dedicava-se pela primeira vez à escolha dos novos
cargos que o Tratado de Lisboa criava para garantir um perfil mais forte da
Europa na cena internacional: o presidente do Conselho Europeu e o Alto
representante para a política externa e de segurança. Os líderes europeus, a
começar pela chanceler, ainda olhavam de cima para a crise financeira como um
problema americano. Os sinais de bancarrota eminente na Grécia já eram
visíveis mas Merkel acreditava piamente na célebre cláusula do “no bail-out”.
O
Tratado de Lisboa dava muito maior importância à política externa e de
segurança europeia. Criava uma nova estrutura diplomática (o Serviço Europeu de
Acção Externa) chefiada por um Alto representante que presidiria também ao
Conselho dos Negócios Estrangeiros e ocuparia uma das vice-presidências da
Comissão. Não foi preciso muito tempo para perceber que os grandes países
não tencionavam abdicar um milímetro do controlo da política externa e, ainda
mais, das decisões militares. A nova chefe da Diplomacia europeia era uma
ilustre desconhecida britânica sem qualquer experiência diplomática. Catherine
Ashton compreendeu que pouco mais se esperava dela a não ser montar o Serviço
Europeu de Acção Externa e produzir declarações suficientemente vazias para
não incomodar ninguém. Só na parte final do seu mandato conseguiu
apresentar trabalho. A discreta negociação entre o Kosovo e a Sérvia, que levou
a bom fim, provou até que ponto a perspectiva de aderir à União ainda é
suficientemente forte para enterrar os ódios nacionalistas do passado. Hillary
Clinton estabeleceu uma boa relação com ela. Mas ninguém pode dizer que a
Europa tenha hoje uma política externa e de segurança mais forte e mais
coerente. Tem as estruturas institucionais e militares. Não tem a
vontade política.
Nem
tudo correu mal desde Maastricht. A Europa conseguiu levar a cabo a sua missão
estratégica mais importante a seguir ao euro: unificar o continente europeu
através da democracia e dos mercados. Na primeira década do novo século
ainda se escreveram longos ensaios sobre a eficácia do seu poder de
atracção, que se estendia para além das fronteiras europeias e que se revelava
uma arma muito mais poderosa de “regime change”
do que as guerras de Bush. As potências emergentes ainda não tinham
emergido e o modelo europeu chegou a ser tentado em várias latitudes. A crise
do euro gastou-lhe energias e uma boa parte do seu soft-power. Ninguém compreendeu,
em Brasília, em Nova Deli ou Pequim, como é que o bloco económico maior e mais
rico do mundo não conseguia vencer uma crise que começou por atingir um país
que representava 2% da sua riqueza, ao ponto de ir mendigar apoio ao FMI e ao
G20. Não ignorou apenas o seu flanco Leste. Ignorou a Turquia, deixando Erdogan
à vontade para a sua deriva em direcção ao autoritarismo.
Quem
vão escolher os líderes europeus no próximo dia 30 de Agosto para substituir
Lady Ashton? Já ninguém acredita em milagres. Mas Putin fez à Europa um
grande favor de mostrar ao obrigá-la a encarar o mundo tal como ele é. A Síria
e o Iraque mostraram-lhe até que ponto um Médio Oriente mergulhado em violência
é, como disse Laurent Fabius, um problema de segurança europeia. As imagens da
decapitação de um jornalista americano fizeram-na acordar para uma realidade
demencial da qual não pode fugir. A França teve de ir quase sozinha ao Mali
para impedir a tomada do poder por um grupo jiahdista radical. Merkel ainda não
estava disponível para “pagar as guerras dos outros”. Antes disso, quando o
Conselho de Segurança decidiu sobre a operação na Líbia, resolveu abster-se ao
lado da China, da Rússia e do Brasil. Desde aí tentou corrigir o tiro.
Até
às imagens insuportáveis do jornalista americano degolado por alguém de forte
acento britânico, europeus e americanos queriam ver o Iraque como um problema
humanitário. Na sexta-feira, François Hollande disse o mesmo que o secretário
da Defesa americano Chuck Hagel: “Creio que a situação internacional é a pior
que vimos desde o 11 de Setembro”. Diz o editor europeu da BBC, Gavin Hewitt,
que o Presidente francês foi ao cerne da questão: “Já não podemos manter o
debate tradicional sobre intervenção ou não intervenção.” David Cameron não
resistiu à tentação de recorrer ao tom churchiliano a que nenhum
primeiro-ministro britânico resiste para proclamar o combate a esta nova era do
terror. A imprensa diz que foi apenas o tom. O primeiro-ministro conservador
tem sido um desastre em matéria de política externa, levando o seu país para
uma marginalidade europeia e transatlântica, incluindo militar, onde nunca
esteve. Desta vez, a própria Alemanha não precisou de tempo para se juntar à
decisão francesa de envio de armamento para os curdos iraquianos. Paris quer
uma conferência para uma estratégia internacional em Setembro.
Para
além da importância crescente da relação transatlântica, o futuro da Europa num
mundo que lhe é cada vez mais hostil vai depender da forma como resolver a
crise ucraniana e enfrentar a nova ameaça da barbárie jihadista. Vivem na
Europa mais de 20 milhões de muçulmanos. Não é uma coisa que possa ficar lá
fora. O problema é que a segurança tem um custo que os europeus podem não estar
dispostos a pagar, habituados que estão a não ter de escolher entre a manteiga
e a espingarda, graças à garantia americana. Na próxima cimeira da NATO, no
início de Setembro, os EUA vão insistir novamente em que a Europa não pode
continuar a reduzir os seus orçamentos de defesa. No clima de austeridade
criado pela crise, vai ser muito difícil aos governos explicarem isso aos seus
eleitores. Mas alguma coisa vai ter de mudar na economia e na política externa,
se a Europa não quer mergulhar na instabilidade e na irrelevância.
Teresa
de Sousa
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