Lembro-me desta definição que me ficou da linguística,
dos meus tempos de Coimbra, a respeito da etimologia de “prosa”: um discurso que
segue direito, que vem do latim “prorsus”, contrariamente ao que se
passa com “versus” - o étimo de verso - um discurso que retorna, que
volta atrás (nos ritmos, nas rimas, nas aliterações, nas múltiplas repetições…).
Vem isto a propósito do livro – “A Casa Quieta”
de Rodrigo Guedes de Carvalho, romance de estrutura circular, que se inicia,
após os versos de NOVEMBRO (1º capítulo) de homenagem primeira evocativa
- «…e foi quando o teu sorriso» - com a incompreensão enlouquecida do
vazio deixado – no narrador inicial – Salvador - pela morte da mulher – Mariana
– no 2º capítulo – OUTUBRO – estrutura que acaba em DEZEMBRO 2005,
com a homenagem em verso, de saudade da sua Gioconda de “sorriso
intransponível” que
«Me faz o caminho só na tua direcção
Onde parece saber que esperas
Serena
Gioconda
Que vamos durar sem mesmo sabermos
Dadas as mãos as mãos dadas
Intransponíveis
Serão duas aos olhos e são tudo o
que temos
E são tudo»
Entretanto, a perspectiva temporal – em espiral
decrescente, relativamente à data da morte – ano 2005 da I Parte –
abrangendo os meses anteriores, até Janeiro; em perspectiva mensal crescente
nas partes restantes – II Parte, 1985 (JANEIRO, FEVEREIRO, MARÇO);
III Parte, 1995 (Abril, Maio); IV, 2005 (JUNHO; JULHO;
SETEMBRO; OUTUBRO; NOVEMBRO; DEZEMBRO), juntamente com os diferentes
registos de atitudes, de personagens, de focalizações internas, - a do narrador
principal, (Salvador), em evidência, a mistura de discursos, de diálogos e
emoções, no jeito que Saramago introduzira com tanto vigor, em que os
caracteres e os sentimentos de rejeição ou interesse e amizades se vão
desenhando à medida dos momentos, momentos familiares, mais antigos, mais
próximos, o clímax surgindo no desmaio da mulher nas escadas, na sarabanda dos
telefonemas para Salvador, num momento de conferência de trabalho, juntamente
com o aviso telefónico da recaída do irmão de Salvador, António, louco, que o frio
pai nunca escutara, mas a quem apoiara financeiramente, e as interrogações e a
psicanálise escondendo-se por todo um chorrilho de discursos, muitas vezes
desarticulados e repetitivos, numa ânsia de originalidade verdadeiramente
infernal, a que não falta o sentido de crítica social.
Uma história de vida, uma história de amor, Orfeu
tangendo – inutilmente - na incompreensão desvairada do destino humano.
Um livro em prosa, um livro em verso, seguindo ora a
direito, ora contorcendo-se, no clamor do sofrimento e da recordação, indiferente
ao convencionalismo da ordem discursiva, no atropelo e desconexão do mundo
íntimo, no atropelo e abandono, a espaços, da sintaxe e da pontuação,
compensados noutros momentos por grande elegância de pensamento e expressão.
Por analogia de tema – o sofrimento de amor no homem, causado pelo abandono da mulher- por morte ou fuga – “A Casa Quieta” de Guedes de Carvalho, trouxe-me à memória o livro “Silêncio em Outubro” do dinamarquês Jens Christian Grøndahl, este tão simples, tão verdadeiro, tão expressivo das coisas banais da vida, como um extracto bancário, no caso de uma partida de fuga sem aviso, possibilitando o reconhecimento do percurso inicial da fugitiva. Transcrevo o primeiro parágrafo, que nos descreve algures de Lisboa, pelo narrador, e se referencia a partida de Astrid, com pretensa calma daquele, a que se segue o auto retrato que o desalento ditou. Com profunda agudeza, sem rebuscamentos que contrariariam a sinceridade da sua dor, uma elegância natural num discurso atento ao pormenor pinturesco e auto-análise psicológica de um saber reflectido, que se funda no absurdo da condição humana, condenada ao desconhecimento integral da mesma:
«A Astrid na amurada, de costas para a cidade. O vento
levanta-lhe o cabelo castanho como uma bandeira esfiapada. Está de óculos
escuros e sorri. Há uma afinidade perfeita entre a cidade e o branco dos dentes
dela nesta fotografia que tirei há sete anos, pela tarde, num dos pequenos
cacilheiros do Tejo. Só à distância se percebe porque se chama “cidade branca”
a Lisboa, quando as cores se misturam e as fachadas de azulejo se fundem em
reflexos do sol; a luz baixa incide horizontalmente nas casas ao longe, que se
erguem atrás umas das outras sobre o Terreiro do Paço, nas colinas do Bairro
Alto e de Alfama, no outro lado do rio. Há um mês que partiu. Ainda não tive
notícias dela. A única pista é o extracto do banco, que acusa os movimentos da
nossa conta comum. Alugou um carro em Paris e usou o MasterCard na rota de
Bordéus, San Sebastian, Santiago de Compostela, Porto e Coimbra. A mesma rota
que seguimos naquele Outono. Levantou uma grande soma em Lisboa a dezassete de
Outubro, e deixou de usar o cartão. Não sei por onde pára. Nem posso saber.
Tenho quarenta e quatro anos, e nunca soube tão pouco. Quanto mais velho fico,
menos sei. Quando era novo, julgava que a sabedoria cresceria com o tempo,
dilatando-se constantemente como o universo, e que a parte crescente de
certezas rejeitaria o correspondente montante reduzido das incertezas. Era de
facto muito optimista. O tempo fez-me admitir que sei aproximadamente o mesmo,
ou menos ainda do que sabia, sem as mesmas certezas de então. A minha dita
experiência não é sinónima de qualquer sabedoria. É mais, como direi, uma
espécie de caixa de ressonância, dentro da qual o pouco que sei soa oco e a
pouco. Um crescente vazio à volta do meu pouco saber, quais sementes secas
dentro de uma cabaça. A minha experiência é uma experiência de ignorância e do
seu poço sem fundo; nunca saberei quanto me falta saber e quanto se deve apenas
àquilo em que acreditei.»
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