Um artigo – de João César das Neves, «Não há
desgraças grátis» (DN, 18/8) - que tenta justificar a queda do GES e
do País com o colapso mundial de 2008, de que o último crime pretende ser uma
terceira fase no processo.
Sempre se falou, em todos estes anos, em governos de
esbanjamento sem critério, apoiados em capitais que jorraram como maná no
deserto, sem prever a estiagem, e que possibilitaram as manobras sucessivas de
manipuladores que souberam dilapidar e desviar e corromper, no esconso dos seus
trejeitos mansos e felinos que de repente se aclaram, no prejuízo dos vitimados,
nas tentativas de solução pelo sacrifício de todos, no castigo aparente dos que
realmente vão ficar impunes e continuam fossando na sordidez das suas
justificações que nada justificam.
Ao que parece, Ricardo Salgado é o único que dá a cara
do seu grupo, assumindo traços de herói por assim se disponibilizar, explicando
que cada um do grupo era responsável pela sua “banca”, mas estes camaradas não
são chamados à liça para responsabilização pessoal.
E factos como
estes têm sido uma constante neste “estábulo” em que vivemos chafurdando, e
que, estranhamente, se atribuem ao colapso de 2008, em explicação que lembra a
autodefesa de Sócrates. Não, não é a sujidade moral dos fautores desses crimes a
responsável pelo enchimento do estábulo. Prefere-se designá-la com o elegante
nome de catástrofe, que envolve em manto protector os que foram e
vão enchendo o estábulo, sem pejo e sem castigo.
Por isso o título «Não há desgraças grátis»,
de César das Neves, ao insinuar que são desgraças e não crimes estas
misérias que rebentam a cada passo sob os nossos pés, como as explosões da
guerra no oriente asiático, nos coloca sob a capa do fado que tudo justifica.
Temos que pagar.
«Não há desgraças grátis»
Por João César das Neves
«Numa catástrofe
só há más soluções, mas são melhores do que nada. Estas duas ideias, apesar de
evidentes, são sempre difíceis de entender precisamente devido à catástrofe. A
discussão à volta da recente queda do Grupo Espírito Santo (GES) é típica deste
diálogo de surdos, como foram as conversas durante a crise económica. Acusar o
Banco de Portugal do descalabro do GES só mostra incompreensão do problema,
como antes dizer-se que a política do Governo ou da troika empobreceram
Portugal. O GES e o País caíram com a crise. A política apenas serve para
depois distribuir a perda pelos vários grupos envolvidos. Naturalmente, ao
receberem o seu quinhão, todos se dizem injustiçados, porque acreditavam ficar
imunes. Isso é ilusão, porque não há crises grátis.
O paralelo dos dois
casos não é fortuito, porque afinal o terramoto é o mesmo. A queda do GES em
2014 é um episódio da terceira fase da via particular que Portugal escolheu
para lidar com o colapso mundial de 2008. Podíamos ter feito de outro modo
desviando ou adiando o peso. O que nunca poderíamos era evitar os enormes
custos do buraco global.
Alguns países, como
os EUA, aguentaram o embate em cheio. Sofreram muito, limparam o sistema e
recomeçaram a crescer; em 2011 a economia americana recuperou o nível de 2007,
anterior à queda. Portugal optou por um caminho diferente. Grande parte da
nossa economia também sofreu o embate inicial, com falências, desemprego, perda
de rendimentos. Mas certos sectores da sociedade, como o Governo e o GES,
preferiram negar o desastre, pedir dispensa, adiar medidas, reclamar direitos
adquiridos. Assim, só na segunda fase, a partir de 2011 e com a chegada da
troika, se começou um ajustamento a sério, afectando sectores protegidos pelo
Estado: funcionários, pensionistas, serviços e afins. Estes fizeram mais
barulho do que todos e ainda negam a necessidade dos cortes ou prometem
revertê-los. Em 2014, seis anos após o choque e com o ajustamento alegadamente
terminado, começa a terceira fase. Então, surpreendentemente, vêm à tona velhos
e enormes buracos, escondidos todo este tempo.
A aberração do GES é
espantosa. Primeiro por se tratar do mais antigo e central grupo da economia
portuguesa, sempre no cume do poder. Depois por ter mantido tantos anos uma
fachada triunfante, cobrindo as ruínas. O episódio atingiu já dimensão
histórica por, segundo o Financial Times, estar no "topo da tabela dos
piores aumentos de capital de sempre na indústria financeira" (5 de
Agosto), anulando o investimento em dois meses. Indiscutível é que desabou uma
das peças mais imponentes e centrais da economia portuguesa. Não há soluções
adequadas. A resposta do Banco de Portugal a 3 de Agosto não é boa pois, entre
os escombros, dessas já não há. Barafustar e apontar inconvenientes é repetição
óbvia e ociosa. Queixas e críticas são compreensíveis, mas o grupo ruiu; resta
resgatar nos destroços os valores recuperáveis. O governador, como lhe
competia, salvou a parte central do edifício, o banco. No meio da desgraça, tal
sucesso deve contentar-nos, pois a sua queda teria efeitos devastadores em toda
a sociedade.. Além disso, envolvendo um Fundo de Resolução, pretendeu, se tudo
correr como previsto, não afectar o défice orçamental. Risco há sempre.
Desabando uma das peças mais nucleares da economia, toda a sociedade portuguesa
sofrerá, e não pouco. Viver por cá e dizer-se alheio exigindo imunidade é não entender
o que aconteceu.
Porque ruiu o GES?
Por erros graves após a crise global de 2008. Porquê só em 2014? Devido ao
caminho escolhido por Portugal para lhe responder. A crise é antiga e dura, mas
alguns, afectados como todos, conseguiram defender-se ao longo de todo o
ajustamento. Uns às claras, sob o Tribunal Constitucional, outros no silêncio
das influências políticas ou de forças económicas. Mas todos os que cá vivemos
nos últimos 20 anos somos parte do problema. Cedo ou tarde, esta verdade vem ao
de cima. Uma coisa é certa: só quando o sistema estiver limpo recomeça a
crescer.»
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