Foi o Sr. Grandet que morreu a
contemplar avidamente os montes de ouro que acumulara ao longo da sua vida de
negociante avarento e arguto. Ninguém mais atento aos pormenores do que Balzac
para nos dar retratos magistrais das figuras que se propôs descrever na sua
Comédie Humaine e o seu romance “Eugénie Grandet”, publicado nos anos trinta do
século XIX, e que se estudava no 7º ano dos liceus portugueses nos anos
cinquenta do século XX, foi bem uma escola de vida para o mundo ledor dos
séculos XIX e XX, pertinaz herança para o século XXI. Nunca esqueci o episódio
do degrau periclitante de uma escada da sua casa, que a grande Nanon desceu em
dia de anos da Eugénie, virtuosa e sofredora filha do sr. Grandet, degrau que
só não provocou a queda da criada carregada com o cassis para festejar os anos
de Eugénie, porque se tratava da grande e dedicada Nanon, que mais depressa
esfolaria o cotovelo do que se deixaria cair e partir a garrafa. Também por isso teve
direito a um cálice de cassis, não sem ouvir o comentário do amo, disposto
finalmente a consertar o degrau, porque eram os anos de Eugénie, outra quase
vítima do malfadado degrau:
-«Vocês não sabem pôr o pé no
canto, no sítio onde o degrau ainda está sólido!»
Este episódio, mais o da sua
morte a contemplar o ouro, mais a forma como ele se punha a gaguejar, nos seus
negócios ardilosos, para impacientar o opositor, arrastando e obscurecendo o discurso,
e outras manhas que Balzac descreve com
tanta perícia, me acudiram à memória ao ler o artigo de Vasco Pulido Valente,
do Público, de 20/7/14 - «Um mistério» – que, após a narrativa das nossas trapaças financeiras ao longo dos séculos XIX E XX, põe a interrogação sobre o porquê da
miserável conduta de Ricardo Salgado, cujos «vinte anos de glória (do “Dono disto tudo”) são anos de funcionário».
Julgo que Ricardo Salgado, se
leu o livro de Balzac, nele colheu manancial de sabedoria para o seu muito
aforrar. Outras personagens por lá passam, interesseiras e até odiosamente
exploradoras e sem escrúpulos, como o primo de Eugénie, no seu tráfico de
escravos, como modo de enriquecer.
Mas o que mais dói no artigo
de Vasco Pulido Valente é esta redução de Salgado a uma ofensiva designação de
funcionário, subentendendo a falta de ambição cultural dos ditos funcionários,
no encardimento dos dias cansados e repetitivos, sem as leituras concedidas às
profissões livres, de variados interesses.
Para todos os efeitos, o que
se diz também é que Ricardo Salgado pôs a bom recato a sua fortuna, obtida por
traficâncias que talvez nada tenham a ver com as do avarento e esperto sr.
Grandet, nem com as do Charles Grandet, o primo da Eugénie, desaparecido o tráfico
de escravos, (ou antes, desviado para outros géneros mais modernizados).
Também é triste pensar que um
dia Ricardo Salgado não poderá morrer no deslumbramento da contemplação dos seus ouros, como o Sr.
Grandet, porque os pôs lá fora.
Mas é ponto assente que somos
todos pó, Ricardo Salgado o será um dia, devia sabê-lo. Não valia a pena tanta falta de escrúpulos e
de vergonha a sujar este chão de degraus podres, e a desgraçar tanta gente, que
se limitou a confiar num Banco, pessoa de bem.
Eis a lição de História de Vasco
Pulido Valente:
«Um mistério»
«A aristocracia liberal não
foi um substituto decente para a aristocracia histórica, que lutara por D.
Miguel. Quase toda de origem militar, passou quinze anos a organizar
“revoluções”, golpes de Estado e pronunciamentos. Era geralmente pobre, vivia
mal e, fora um ou outro caso, não se distinguia nem pela educação, nem pela
inteligência. Claro que havia meia dúzia de excepções entre a gente que se
atropelava por um lugar no governo ou por um comando de prestígio. Mas vinha
quase sempre de trás: Terceira, Palmela, Fronteira e o irmão, o conde de Vila
Real e mais meia dúzia. Um pequeno grupo que não chegava para “civilizar” a
corte ou exercer qualquer influência sobre uma sociedade brutal e beata; e que
ele mesmo se sentia deslocado nos novos tempos de agitação e mudança.
À medida que o regime da Carta se estabilizou
(principalmente depois de 1851) apareceu uma aristocracia de “conselheiros”,
com títulos mais do que recentes, que se aguentou até à República. O ódio
visceral que Eça lhe tinha, aliás partilhado por Portugal inteiro, acabou por
se tornar um lugar-comum da visão ortodoxa do século XIX. Os representantes por
excelência desta pouco saborosa raça não deixaram nada que merecesse ficar na
memória dos portugueses. E a parte principal acabou em escândalos financeiros,
desde a “falência” do marquês da Foz, que financiava o Partido Progressista,
aos sucessivos roubos do Crédito Predial, que envolviam os chefes dos dois
partidos do “rotativismo” e lhes criaram uma tristíssima reputação. O que é de
certa maneira injusto. O liberalismo roubava, mas roubava pouco.
Na República, apesar da retórica oficial, ainda se
roubou mais. E, durante a Ditadura, se, como é óbvio, Salazar não roubava,
deixava roubar. De qualquer maneira, nenhuma das centenas de criaturas que nos
pastorearam do século XVIII ao século XXI serviu de exemplo ou educou o gosto
da classe média ou da alta burguesia indígena. É este o mistério de Ricardo Salgado.
Segundo consta, andava de Mercedes, passava as férias na Comporta com Marcelo
Rebelo de Sousa, talvez fosse de quando em quando a Nova Iorque e a Paris, mas
não se lhe conhece a menor extravagância ou o menor vício. Os vinte
anos de glória do “Dono disto tudo” são anos de funcionário, que se
consolava com a ideia imaginária do poder. Para quê, então, os riscos sem nome
que tomou? Para quê a arrogância vácua que ele pessoalmente gostava de exibir?
Suspeito porque, no fundo, ele não tinha mais nada na cabeça.»
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