Extraordinário, este Ricardo Reis, das Odes ao modo
clássico, metro e escrita alatinados, temática humanística. Extraordinário porque,
vivendo no mundo inquietante do seu egocentrismo de génio sem ilusão, constrói
um pensamento de um falso epicurismo, trágico, pois que não esconde senão uma
infinita angústia existencial pela incompreensão do mundo na sua dimensão entre
o infinito e a finitude, o ser e o nada do absurdo que os filósofos do
existencialismo tentaram (em vão?) explicar.
Assim são odes como as seguintes – 1,2 – reveladoras, não
da atitude blasée de tantas personagens queirosianas expressivas de inércia,
mas de uma inquietação bem sentida:
1 - «Frutos, dão-nos as árvores que vivem,
Não a iludida mente, que só se orna
Das flores lívidas
Do íntimo abismo.
Quantos reinos nos seres e nas cousas
Te não talhaste imaginário! Quantos,
Com a charrua,
Sonhos, cidades!
Ah, não consegues contra o adverso muito
Criar mais que propósitos frustrados! Abdica e sê
Rei de ti mesmo.» 6-12-1926.
2- «Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.
A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.
Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.
Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.
Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.» Ricardo Reis, 1-7-1916
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.» Ricardo Reis, 1-7-1916
De
facto, Fernando Pessoa não teve filhos,
não teve que se esforçar em termos de uma continuidade de presença,
Fénix no seu mundo de génio multifacetado, ciente de que «Quer gozemos,
quer não gozemos, passamos como o rio.»
Vem
este assunto a propósito de um email enviado pelo Dr. Salles, a justificar
determinado ponto de vista relativamente ao livro da sua amiga Manuela
Gonzaga - «Moçambique – Para a mãe se lembrar como foi»,
em que se refere «à sordidez da vida em ambiente de guerra».
Afirma
ainda Salles da Fonseca:
Ela
tem uma escrita enxuta, como eu gosto, sem deixar de ser emotiva como se espera
duma adolescente e achei que retratava muito bem a sociedade global que nós (os
idos da Metrópole que por lá andávamos em comissão de serviço) fazíamos e que
era algo diferente da dos europeus que lá viviam de pedra e cal como era o caso
da Senhora Professora.
Sim,
nós andámos por lá a fazer umas coisas e eu sempre me perguntei o que terá
Moçambique ganho com a minha passagem por lá. Creio que pouco mais terá ganho
do que um amigo, eu. E que terão ganho os moçambicanos de Vila Cabral ou de
Tete com as aulas de canto coral que a Leonor Paixão (mãe de Manuela Gonzaga)
lhes deu? Creio que bastante menos do que as aulas que a Manuela Gonzaga
deu em voluntariado a alguns terroristas para se poderem apresentar a exame do
5º ano dos liceus. Pela minha parte, tudo espremido, deu um telhado numa casa
em Nampula cujo proprietário me pediu o aval para o Montepio lhe emprestar o
dinheiro para a construção. Mais do que isso? Muito pouco e um dia contarei
para remissão dos pecadilhos. Já comecei a contar em http://abemdanacao.blogs.sapo. pt/126124.html e
ainda não sei se me apetece contar muito mais. Logo se verá...
Mas
em Vila Cabral e em Tete elas viveram bem perto do terrorismo e é das histórias
que os combatentes lhe contavam que ela retirou a conclusão de que a sordidez
do ambiente de guerra é muito grande e que dali não há qualquer hipótese de
extrair coisa boa. Assim nasceu a metáfora que diz que das
pedras não nascem orquídeas.
Resultado:
gostei bastante do livro porque me serviu de introspecção. Não creio que se
trate de alta literatura, não. Mas deu para me lembrar de muitas coisas por que
passei num daqueles Universos paralelos que existiam em Moçambique e que
frequentemente nada tinham uns a ver com os outros. E, curiosamente, tudo
sem apartheid; mas com muito desconhecimento. Eu, por exemplo, fui para lá em
missão de civilização e aprendi muito.»
Talvez
o livro de Manuela Gonzaga tenha tido o efeito poderoso – mas espero que
momentâneo - sobre um espírito que sempre reconheci como corajoso, incapaz de
pôr em causa a acção que os portugueses desenvolveram no seu passado distante e
mais próximo, em condições quantas vezes míseras, mas tendo presente sempre o
amor pela Pátria distante que os tais “novos
mundos ao mundo” mostrou.
Penso que o súbito cepticismo do Dr. Salles não resulta senão de uma qualquer
fatiga momentânea, resultante dos «o tempora o mores» da nossa
rotina diária. O próprio Ricardo Reis se desdisse em odes como a seguinte:
Para
ser grande, sê inteiro: nada
Teu
exagera ou exclui.
Sê
todo em cada coisa. Põe quanto és
No
mínimo que fazes.
Assim
em cada lago a lua toda
Brilha,
porque alta vive
Não,
não creio no cepticismo de Salles da Fonseca.
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