“O Viúvo – Memórias do fim do
império” é um
livro de Fernando Dacosta, um livro de prémios, ao gosto intelectual da
camada contrária aos imperialismos, livro de uma escrita pontilhada de
anotações, de retomas, de evocações, de falsas isenções, de personagens-símbolo
quase inominadas, referências que marcaram a memória de quem tem os olhos fixos
nos mundos em que vive e viveu e algures as leu ou seguiu nos meios mediáticos
da vivência moderna. Livro de poesia, de simbologia, de magia, de pintura de
universos em transformação, salpicados de influência dos vividos em “Cem
anos de solidão” de Gabriel Garcia Marques, sem, naturalmente, a força
épica e satírica que escorre das páginas deste, arrancadas a um solo duro e
exótico, pujante de violência, destemor, primitivismo, avidez. Contrariamente a
esse, o solo e figuras deste, estas mais ou menos abstractas de personagens-símbolo
ou tipo (tanto as mais antigas como as da democracia recente, desinibida e actuante), num espaço agora
limitado ao rectângulo de outrora, acrescidos de uns arquipélagos escapados à
fúria libertadora das armas floridas.
Um livro, “O Viúvo”, que conta de costumes, de épocas, de
superstições, laivos de história passada desde a Primeira República, sem omitir
a referência às aparições de Fátima, para se fixar naturalmente na ditadura,
mostrando as mudanças posteriores, de abertura para a liberdade sonhada,
casando o mistério com o realismo descritivo, o sagrado com o profano, as
tradições do primitivismo e da crendice com a modernidade desinibida. As
personagens são bem fantoches numa técnica pontilhista, naturalmente expressiva
de elegância discursiva, num recontar de placidez e cansaço, como se o ódio
antigo pelas ditaduras que o neo-realismo expressara, na sua manipulação das
personagens e dos eventos já não significasse mais do que simples curiosidade,
ultrapassada pelos novos tempos, que se revelaram generosos nas tentativas de abertura
à modernização de meios e costumes.
Um livro de memórias do fim do
Império, cujos capítulos são assinalados pelas letras simbólicas da palavra LUSITÂNIA
– simultaneamente aplicadas à personagem central – Cismas, podador-enxertador
de profissão – e ao país em causa, numa estrutura circular, que se inicia com a
proximidade da morte daquele e acaba igualmente aí, no estertor da morte solitária, anunciada em
tempos com o mal do cancro pela vidente e curandeira Almotolia cuja figura de
enforcada numa figueira lhe vai aparecendo em espírito.
Eis uma página retirada do último
capítulo, síntese final contendo as figuras que lhe povoaram a existência e que
se confundem, na sua imaginação febril, com a realidade vivida:
«A
chuva desabou subitamente sobre o monte. Os interiores da terra, e seus, fundiam-se em cataclismos
libertadores. Almotolia retirava a corda do pescoço e reentrava em casa. Helicópteros
chegavam com jovens que traziam embrulhos, comida quente, roupa seca, flores,
músicas, o seu filho vinha entre eles, e o professor, e o Tio Cantoneiro, e o
Mestre escritor, o avô de boné e óculos pilotava o aparelho da frente e
berrava: a verdadeira revolução é a nossa, sem armas, sem exploração; ficou a vê-los.
Se os mortos estavam vivos é porque ele tinha morrido, mas o reino dos céus,
era igual ao da Terra.»
E o último parágrafo:
«Barulhos cavos soltaram-se de si,
rolaram em eco, uma esfera desprendeu-se das entranhas, a opressão do ventre
pulverizou-se, o corpo saía-lhe do corpo feito energia, flutuava no quarto
rente ao tecto, reconstituía-o noutra essência. Um bem-estar inimaginável
tomou-o, então tudo foi ficando leve, distante, infinito… infinito.»
Da contracapa deste livro transcrevo:
«Emblemático na sua obra, o romance
«O Viúvo» (fascinante metáfora sobre a perda, por Portugal, das colónias)
assume simbologias irrecusáveis na ficção produzida pela nossa língua.»
Na verdade, muitos são os seus “nacos”
de uma prosa de elegância e beleza expressiva. Mas a morte de “Cismas”, despedaçado
de sofrimentos indizíveis, embora de passagem para os mundos inefáveis da
imaterialidade e da bem-aventurança (qual gigante “São Cristóvão” de Eça, ou “Saint
Julien l’Hospitalier”, de Flaubert, levados por Cristo), sendo aquele simbólico
de uma LUSITÂNIA que como aquele viveu e tanto sofreu e se agitou, deixa uma
dúvida num espírito mais atento e amante da sua pátria:
É esse o fim maligno que o doce
Fernando Dacosta prevê para este rectângulo encolhido à beira do breve oceano,
donde outrora partiram as caravelas e as naus “por mares nunca dantes
navegados”?
Pobre escritor tão galardoado! Pobre pequeno
país que tanto o galardoa – talvez à sua própria imagem e semelhança de
miniatura!
Não, não deve aquele sofrer ante a
perspectiva do cancro nauseabundo
esfacelando o seu país, presa de um qualquer outro destino há muito perpetrado
por tantos dos seus pares.
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