Foi Bocage um daqueles boémios que não
escapou às malhas da Justiça - ou talvez antes injustiça inquisitorial e de
costumes - e por isso, ou porque viveu
em tempos de mudança (a compostura clássica do arcadismo arejada pelas rajadas libertárias
das revoluções que sentimentalmente se pretendiam dignificadoras), ele próprio
fez sonetos explosivos à Liberdade - contrariamente ao seu “modelo” Camões, que
racionalmente se fixou - na questão das
movimentações temporais - na constatação sobre o carácter paradoxal da “Mudança”,
que sintetizou magistralmente no terceto conclusivo: «E afora este mudar-se cada dia, / Outra mudança faz de mor
espanto, / Que não se muda já como soía.»
Eis o soneto - pré-romântico - de
Bocage à “Liberdade”, bem adaptável aos anseios convulsos do nosso paralelismo
histórico transfigurador:
«Liberdade,
onde estás? Quem te demora?»
Liberdade,
onde estás? Quem te demora?
Quem faz que o teu influxo em nós não caia?
Porque (triste de mim!) porque não raia
Já na esfera de Lísia a tua aurora?
Quem faz que o teu influxo em nós não caia?
Porque (triste de mim!) porque não raia
Já na esfera de Lísia a tua aurora?
Da santa
redenção é vinda a hora
A esta parte do mundo que desmaia.
Oh! Venha... Oh! Venha, e trémulo descaia
Despotismo feroz que nos devora!
A esta parte do mundo que desmaia.
Oh! Venha... Oh! Venha, e trémulo descaia
Despotismo feroz que nos devora!
Eia!
Acode ao mortal que, frio e mudo,
Oculta o pátrio amor, torce a vontade,
E em fingir, por temor, empenha estudo.
Oculta o pátrio amor, torce a vontade,
E em fingir, por temor, empenha estudo.
Movam
nossos grilhões tua piedade;
Nosso númen tu és, e glória, e tudo,
Mãe do génio e prazer, oh Liberdade!
Nosso númen tu és, e glória, e tudo,
Mãe do génio e prazer, oh Liberdade!
Vem a referência a propósito dos
artigos de Vasco Pulido Valente, saídos no Público, com bastante sanha e
sabedoria como é seu hábito – o primeiro, “Merecidos Vexames”, de
26/7 , o segundo “O
escândalo em Portugal”, de 27/7.
Reza o primeiro sobre o assunto que
ainda há pouco esteve na berra – e vai permanecendo, embora soterrado já pela
sobreposição do escândalo seguinte, no imparável “ver se te avias” da nossa progressão
em matéria de humilhações e escândalos –
o da farsa da inclusão da Guiné Equatorial no grupo da CPLP e a humilhação que
isso tem valido ao Governo, obrigado mesmo a suportar justas injúrias saídas no
Jornal de Angola sobre outras indignidades lusas, como as que concernem o Acordo Ortográfico da nossa destituição de
seres civilizados e racionais, em troca de mais valias económicas, para
podermos continuar sobrevivendo e alimentando esses dos BES do enriquecimento à
socapa, que vão nadando no prazer das suas gulas egoístas, de enriquecimento
pela extorsão criminosa – tema do segundo texto, com recuo ao século XIX dos
vários escândalos da nossa constância na desvergonha política:
1º Texto: «Merecidos vexames»
«Não interessa evidentemente comentar o comportamento da
diplomacia indígena no caso da CPLP. Como sempre, foi miserável. Nem interessa
dizer muito sobre o dr. Cavaco, que ninguém espera que defenda a dignidade da
República ou se porte bem numa situação apertada. Mesmo com o dr. Passos Coelho
não se pode contar, se lhe acenam com uns negócios para o seu empobrecido
Portugal. O petróleo da Guiné Equatorial e a vontade de Angola pesam mais do
que qualquer outra consideração presente ou futura. A nós que por aqui andamos
a contar tostões não nos faz mal o vexame público do país, que é uma tradição
histórica e, pior ainda, um hábito de vida. Embora obedecer ao Império
Britânico seja em princípio menos comprometedor do que obedecer a um bando de
cleptocratas.
Sobretudo
quando esse bando de cleptocratas tem razão. O Jornal
de Angola escreveu sobre o assunto um editorial, em prosa duvidosa,
mas no essencial cheio de razão. Depois de injuriar meticulosamente a opinião
de cá (“preconceituosa”, “incoerente” e “estrábica”), o preopinante continua:
“Os Media em Portugal praticam
diariamente atentados contra a Língua Portuguesa. Nos jornais já se escrevem
mais palavras em inglês do que em português. Nas rádios e televisões a situação
é (…) pior. Escrever e falar português contaminado de anglicismos e galicismos
é uma traição a todos os que falam a língua que uniu os países da CPLP”.
Descontando a hipérbole e um certo desconhecimento do que de facto acontece em
Portugal, o Jornal de Angola não se engana.
Desde
1976 nenhum Governo se ocupou seriamente da defesa da língua. O Dicionário da Academia de Ciências não passa de uma
triste imitação do Oxford Shorter, não há uma
gramática decente e acessível ao leigo ou um Thesaurus ou sequer, com as
confusões do Acordo, um prontuário ortográfico decente e fiável. Também não há
uma edição completa e crítica dos “clássicos” reconhecidos, nem a investigação
universitária redescobriu a literatura do século XVI ao século XIX, que merecia
outra sorte. Em matéria de língua, os Governos ficaram entre a ignorância e o
desdém. Ou seja, abandonaram o principal interesse de Portugal e um dos seus
melhores meios de influência. Nunca o Jornal de Angola escreveria o
que escreveu se nós lhe pudéssemos responder com uma política e uma obra. Mas
não podemos.
2º Texto: «O escândalo em Portugal»
«Portugal
tem finalmente um escândalo apesar de ser um país pouco dado a escândalos. Para
quem não se lembra, houve até uma série de governos que mereceram o nome
genérico de “Devoristas” pela maneira como venderam os bens da Coroa e da
Igreja aos notáveis do liberalismo. Como houve também um ministro que deitou
fogo ao ministério das Finanças, para se livrar dos “papéis” da dívida pública
e privada. Ninguém se atribulou excessivamente com estas ligeiras irregularidades
e os culpados, ou presumíveis culpados, viveram o resto da sua vida gozando da
consideração da Pátria e dos seus pares. Alguns morreram mesmo generosamente
condecorados e homenageados por um luto nacional a que a rainha, a corte e o
parlamento se associaram com toda a sinceridade.
Quando
o ódio político se misturava ao escândalo, por mesquinho que fosse, as coisas
não corriam tão bem. O radicalismo perseguiu afincadamente Costa Cabral por
causa de uma caleche, consta que de má qualidade, oferecida (ou não) por um
negociante chamado Frescata, a troco de um hábito de Cristo ou de qualquer
outra honra similar. Saldanha passou por um mau bocado no parlamento, acusado
de pagar um retrato da sua magnífica pessoa com dinheiros do orçamento.
“Roubámos todos”, disse na altura Costa Cabral e isso bastou para acalmar a
excitação das massas. Mas veio logo o sexo substituir a ganância. Corria que o
ditador dormira com D. Maria e que organizava orgias, com a ajuda de um
francês, na Cova da Moura, em que participavam bailarinas. A intimidade com a
rainha ainda sobressaltou alguns familiares da Corte, as bailarinas da Cova da
Moura não provocaram o mais leve incidente.
No
meio disto, a Infanta D. Maria de Jesus fugiu com o marquês de Loulé, que a
megalomania indígena considerava “o mais belo homem da Europa”. Infelizmente a
Infanta não aturou tanta beleza durante muito tempo e Loulé acabou por
estabelecer uma casa à parte com uma cocote da moda. O que não o impediu de
governar Portugal perenemente, como ministro e mais tarde como presidente do
Conselho. O sexo aqui definitivamente não pegava. E as falcatruas do
liberalismo a partir de 1851 duraram até à República, transformadas numa
rotina, que se tomava por inevitável e, às vezes, até por necessária. Agora
anda por aí um escândalo financeiro, que entusiasma o jornalismo e os peritos.
Mas, num país sem ossos como Portugal, não parece que resista à nossa atávica
complacência.»
Textos suficientemente explícitos de
análise e repúdio de factos que mergulham longe a sua actualidade.
Limito-me a parafrasear Bocage, como
comentário lírico, que líricos são todos os que se empenham em virar o curso
dos rios para limpar os estábulos fedorentos dos Augias do poder:
Dignidade,
onde estás? Quem te demora?
Dignidade,
onde estás? Quem te demora?
Quem faz que o teu influxo em nós não caia?
Porque (tristes de nós! ) porque não raia
Na amada Lísia jamais a tua aurora?
Quem faz que o teu influxo em nós não caia?
Porque (tristes de nós! ) porque não raia
Na amada Lísia jamais a tua aurora?
Da santa
redenção é vinda a hora
A esta parte do mundo que desmaia.
Oh! Venha... Oh! Venha, e trémulo descaia
Banditismo feroz, que nos devora!
A esta parte do mundo que desmaia.
Oh! Venha... Oh! Venha, e trémulo descaia
Banditismo feroz, que nos devora!
Eia! Castiga
o mortal, que, frio e mudo,
Oculta o seu intento, torce a verdade,
E em furtar, sem temor, empenha estudo.
Oculta o seu intento, torce a verdade,
E em furtar, sem temor, empenha estudo.
Movam
nossos grilhões tua piedade;
Nosso númen deverás ser, contra isso tudo,
Mãe do orgulho e da paz, oh Dignidade!
Nosso númen deverás ser, contra isso tudo,
Mãe do orgulho e da paz, oh Dignidade!
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