Um ano antes da Revolução dos Cravos, vim a Portugal, não
direi de férias, que a vida passa depressa, no aumento constante das despesas,
mas por interferência de um cunhado amigo, ao proporcionar-me o prazer de vir
mostrar os meus dois filhos mais novos aos meus pais, regressados dez anos
antes às suas origens, acabado o ciclo de trabalho do meu pai nas terras onde
eu fiquei, para prosseguir, confiante na obra e nos homens que ajudaram a
distinguir, desde há séculos, uma nação pequena, nas côdeas que lhe alargaram o
tamanho.
Ciente da tal “frenética corrida contra o tempo” de
que fala Salles da Fonseca no seu segundo “Xicuembo, Xicuembo”, (Agosto
de 2014), não me passava pela cabeça que tantos empreendimentos que se faziam
por lá, para segurar a terra em termos de desenvolvimento - apesar do
sentimento de carência de produtos e subida de preços que se fazia também
sentir - fossem algum dia por água abaixo, o ritmo de obras e aumento
populacional inspirando confiança às pessoas crédulas, que se limitavam a
viver, cumprindo.
Mas as pessoas crédulas sabiam reagir, e prova disso é
o meu artigo “Sauve qui peut” de “Pedras de Sal” (1974), em 2ª
edição em “Cravos Roxos” (1981), que transcrevo, em resposta ao artigo «Xicuembo, Xicuembo , 2» que segue:
«Recusando-se
a admitir qualquer evolução política, Salazar incumbiu as Forças Armadas de
manterem Moçambique como terra portuguesa e quando Marcello Caetano falou da
evolução na continuidade, logo os «ultras» do regime o torpedearam e os
progressistas o tomaram por fraco. Pior ainda: acabava a guerra do Vietname e
tornou-se logo evidente que o próximo alvo dos abutres seria o Império
Português.
Foi
frenética a corrida contra o tempo que se disputou em Moçambique naqueles dez
últimos anos anteriores à independência, uma corrida pelo desenvolvimento como
nunca antes se vira: Universidade em Lourenço Marques, Centro de Formação
Profissional dos Transportes e Comunicações em Inhambane e Escola de Regentes
Agrícolas em Vila Pery a que se somaram obras públicas como estradas, pontes,
aeródromos, todas numa perspectiva longitudinal unindo o território moçambicano
quando até então preponderava a perspectiva horizontal de serviço ao interland,
o Império Britânico. E, claro, as grandes barragens como a de Cabora Bassa
na perspectiva energética e diversas outras com fins agrícolas e de
abastecimento de água às populações.
Crescimento
formidável, sem dúvida, feito numa perspectiva claramente integradora de todos
os moçambicanos sem olhar a cores nem a credos, hostil a qualquer espécie de
apartheid mas, naturalmente, à imagem e semelhança do que nós, europeus,
considerávamos ser o verdadeiro desenvolvimento. No rodopio daquele modelo de
desenvolvimento, nada foi feito contra as culturas locais mas compreende-se que
os mais conservadores possam ter achado que a administração portuguesa não
atribuía a essas culturas mais do que um valor folclórico. Mas seria injusto ir
contra esse desenvolvimento pois, calem-se os maledicentes, foram hordas de
moçambicanos de todas as cores e credos que dele beneficiaram. Tratava-se de um
modelo que pretendia beneficiar todos e que, há que reconhecê-lo, deixou
raízes: Moçambique é hoje um país claramente integrado no mundo ocidental, nada
tem a temer de qualquer desarmonia no concerto internacional dos Estados
modernos. E isso deve-se ao modelo de desenvolvimento que Portugal ali
implantou, sobretudo no século XX.
E não
houve erros? Sim, houve e os magaíças são disso testemunhas não tanto pela
acção dos nossos mas sobretudo pelo silêncio perante a acção de empresas sul
africanas de «recrutamento» de mão de obra nativa. E porquê esse silêncio?
Porque na nossa perspectiva, só iam trabalhar nas minas da África do Sul os
moçambicanos que queriam mesmo ser mineiros e porque, sendo individualmente
pagos em dinheiro, contavam para uma estatística ao abrigo da qual a África do
Sul pagava a Portugal uma certa quantidade de ouro por cada magaíça
dactiloscopicamente controlado na fronteira portuguesa pelo Serviço que anos
mais tarde passou a ser o SEF mas que então se integrava na PIDE. Não foi por
acaso que o Banco de Portugal amealhou tantas barras de ouro e isso fazia a ira
de todos os que invejavam tal acordo. Portanto, a imoralidade do processo não
estava no método de pagamento mas sim no método de «recrutamento» que as
empresas sul africanas aplicavam em Moçambique. Houve quem visse coisas que
mais vale calar, que promovesse a imediata libertação desses «voluntários» e
desse voz de prisão aos algozes que os conduziam.
Dava
para imaginar cenas como as que levaram o P. António Silva, SJ a escrever não
há muito tempo que uma das causas do grande fracasso jesuíta em Moçambique nos
séculos anteriores teve a ver com os «métodos de acção» resultantes do «mau
exemplo dos europeus, a fraca ou má opinião que alguns missionários tinham dos
africanos (incapacidade para as coisas da religião), aliada a uma progressiva
mediocridade da actividade missionária, desviando os esforços mais para campos
temporais que espirituais»[1].
E se
estas misérias missionárias se passaram muito antes de a moderna administração
portuguesa ter iniciado a dita corrida contra o tempo, ninguém hesitou em
no-las atirar à cara como se tivéssemos sido nós os culpados. E quem encabeçou
essas críticas? Um, de grande relevo: o Papa Paulo VI, que nunca quis admitir
que a Deus se pudesse chamar Xicuembo e que as almas dos que já partiram e por
quem se reza na Missa possam ser invocadas por esse nome de Deus.»
Agosto
de 2014
Eis o texto de 1974, de “Pedras de Sal”:
«Sauve qui peut»
«A
voz corrente na Metrópole é que ela, a Metrópole, não necessita do Ultramar
para nada. Se alvitramos um tímido protesto, lembrando todo um próspero passado
comercial traduzido pela antiga e sugestiva expressão estilística «árvore das
patacas», respondem-nos que nem isso explica este apego da terra-mãe aos
pedaços de terra espalhados pelo continente africano e que vai contra a maneira
de pensar não só da maioria dos pedaços de terra estrangeiros e agressivos,
como dos próprios pedaços metropolitanos ainda mais agressivos e estrangeiros.
Ficamos muito vexados e sentimo-nos oprimidos por tão pouco contribuirmos para
o nível civilizacional da terra-mãe, apesar da árvore estilística.
Regressamos
ao nosso rincão, que é como quem diz, à nossa terra africana, amada e
portuguesa pelo nosso profundo sentir, e dispomo-nos a trabalhar ainda com mais
amor, para conservar a jóia preciosa, legada pelos antepassados metropolitanos
e esquecidos.
Deitamos,
entretanto, um olhar mais vivo e mais extenso sobre o que nos rodeia.
Verificamos que não é tanto assim. Mesmo agora, ainda contribuímos capazmente
para o nível económico-cultural da Metrópole: em muitas repartições ultramarinas,
os chefes incontestados vieram de lá, em comissão de serviço cheia de
facilidades. Os bons contratos são lá que se obtêm, protegem-se com especial
ternura os que de lá se dispõem a vir cá dar o seu corpo aio manifesto em
comissão de dois anos, oferecendo-se-lhes as comodidades compensadoras, como
sejam os bons carros e as boas geleiras que porventura nunca possuíram antes do
sacrifício.
E
no fim da comissão regressam à base, enriquecidos económica e culturalmente e
afirmando, em legítima defesa dos seus filhos, que não precisam disto para nada
e os de cá bem podem amanhar-se sozinhos.
Notaram,
nos seus passeios para além fronteiras, um certo atraso para aquém delas, em
relação às vizinhas terras inglesas, muito mais cheias de recantos
paisagísticos e económicos explorados, e criticam-nos por não alargarmos a
nossa rede de estradas e os nossos recantos económicos e paisagísticos. Não
reconhecem que as tais comissões, cheias de facilidades compensadoras, em bons
cargos citadinos, não favorecem a construção das estradas.
“Salve-se
quem puder”: É uma boa divisa actual, aplicável a tantos de nós, tal como o são
as geleiras e os carros à ordem e as disponibilidades orçamentais nas comissões
de serviço ultramarinas.»
A verdade é
que uns meses depois, em 25 de Abril de 1974, se deu a Revolução demonstrativa
de que, de facto, «a “Metrópole” não precisava do “Ultramar” para nada».
Precisava, sim, da Europa, em sujeição de avidez deslumbrada, prova do que
sempre fomos afinal, amantes do poder, no egoísmo do “sauve qui peut”
mesquinho e antidemocrático, em que os defensores da democracia mais gritantes
o são só enquanto não atingem o estrelato da riqueza, logo mergulhando, alcançada
esta, na indiferença e no mutismo, propiciadores de outras manobras de realização que projectam
as redes impunes dos secretismos, sob o “manto diáfano” da sombra
propícia, apesar do tanto que se gritou, nos inícios, do “sem nada na manga”
ou “tudo às claras”, ou “transparência”, lembro-me bem.
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