terça-feira, 19 de agosto de 2014

Um humorista de gabarito



Nunca os discursos acalorados de Marinho Pinto, preenchidos de inflamados axiomas sobre os males morais e físicos que assolam o país, com o sucedâneo apregoar das respectivas mezinhas, ditadas pelos seus bons sentimentos, as quais desatariam os nós das embrulhadas pátrias, causaram em mim senão asco, pela imediata inferência da demagogia interesseira que os ditava. Uma voz altissonante e virulenta, mastigando os ss e outras consoantes com apetite, provavelmente desejoso de descarregar o arrocho, como o fez o padre polemista José Agostinho de Macedo, zurzindo nas doutrinas e doutrinadores liberais que, em nome da liberdade, instalaram a guilhotina. Mas a “Besta Esfolada” de Agostinho de Macedo continha autenticidade e brilho nas mordidelas satíricas aos salteadores da nação da sua época, pese embora a excentricidade do seu azedume de miguelista ferrenho, enquanto que as zargunchadas de Marinho Pinto não denotam mais que mesquinha ambição de trepar, como tem, aparentemente, conseguido, agora com os olhos postos na presidência da república do seu país, por ineficácia, numa Europa superior, da projecção que as últimas eleições lhe deram no seu país e na convicção vaidosa e tola de que o país espera em si.
Por isso foi com muito prazer que li no DN de 17/8 a “Carta aberta a Marinho Pinto”, de Alberto Gonçalves, em «Dias Contados», um mimo de ironia desdenhosa no seu discurso ambíguo que, aparentando compreensão pelas frustrações de Pinto, o incita a retomar a obscuridade e o silêncio da cabana remota:

Carta aberta a Marinho e Pinto
«Verifico com desgosto que, embora se lamente imenso os portugueses que emigram, celebra-se pouquíssimo os emigrantes que regressam a Portugal, aliás em grande número segundo recente estudo do ISEG. Veja-se o exemplo de V. Exa. Numa semana, ruma a Bruxelas decidido a pôr o dedo na ferida, colocar os pontos nos "ii" e todas aquelas modalidades de franqueza que o celebrizaram. Na semana seguinte, ou quase, anuncia o retorno a casa, pronto a candidatar-se à Assembleia da República, à presidência da República e ao que a República lhe providenciar. E isto porque, com a perspicácia que o caracteriza, V. Exa. descobriu que "o elemento agregador da Europa não está nos ideais nem nas políticas, mas no dinheiro".
Lamento informar V. Exa. que tal facto não é exactamente novidade. E que em vez de gastar o seu precioso tempo na campanha para as "europeias" e a procurar um grupo parlamentar que o aceitasse, V. Exa. podia ter perguntado a alguém: "Ouve lá, achas que o elemento agregador da Europa está nos ideais e nas políticas?" A resposta óbvia teria poupado V. Exa. a incontáveis maçadas.
Antes que V. Exa. se envolva em maçadas adicionais, aproveito para esclarecê-lo que o elemento agregador de Portugal também não está nos ideais ou nas políticas. Fatalmente, está também no dinheiro. Por isso, não vale a pena V. Exa. concorrer ao Parlamento indígena, a Belém ou à junta de freguesia da sua terra natal. Para usar uma expressão a que V. Exa. recorre com insuperável acerto, aquilo é tudo uma fantochada. E, escusado dizer, uma fantochada indigna de si.
Mesmo nos programas televisivos onde a voz de V. Exa. era a voz dos injustiçados e dos ramos da Justiça amigos do eng. Sócrates, a importância do dinheiro supera a do resto. Até os injustiçados e o eng. Sócrates, esses ingratos, apreciam dinheiro. A humanidade é assim pérfida e vendida. Se V. Exa. deseja manter-se fiel à sua verdade, afinal a única, sugiro-lhe que, volte ou não volte à pátria, não volte ao convívio dos homens. Ocupe uma cabana remota nas montanhas e dedique-se em silêncio às reflexões filosóficas que o consomem. Se ouvir turistas, esconda-se em silêncio. Principalmente em V. Exa., o silêncio é fundamental. Apenas Deus sabe o quanto o País precisa de V. Exa.: os portugueses não fazem ideia.»

Outros temas fazem parte deste conjunto de comentários semanal, de grande engenho no seu humor sadio e corajoso, conhecedor dos maquiavelismos que movem os habituais orientadores das “sensibilites” humanas, caso do artigo que segue, «Onde fica a Embaixada da Letónia?» revelador da paralisia mental que o Ocidente está sofrendo nas manipulações da opinião, que criam, no articulista, o desejo agarotado de contribuir para o caos, na inanidade das muitas propostas possíveis, como essa de se centrar exclusivamente nos problemas da Letónia, desligando-se do mundo:

Terça-feira, 12 de Agosto
Onde fica a Embaixada da Letónia?
Enquanto no Iraque jihadistas (psicopatas em português) de um grupelho "dissidente" da Al-Qaeda decapitam centenas de civis curdos, meio Ocidente continua a manifestar-se contra Israel. Se parece idiota é porque é idiota. No entanto, qualquer um - até os idiotas - é livre de exibir as suas preferências, incluindo em matéria de conflitos e genocídios. Eu, por exemplo, decidi que daqui em diante só me indignarei com os crimes, as malfeitorias e os desaforos cometidos pelo Governo letão. Não tenho de argumentar nem de avançar com razões, sólidas ou gasosas: simplesmente ganhei cisma à Letónia e pronto.
A mutilação de meninas na Serra Leoa? Não quero saber: a minha preocupação vai para a discriminação da comunidade letã de língua russa. O esclavagismo de castas na Mauritânia? Não me interessa, já que na Letónia existem abusos verbais contra os homossexuais. O despotismo dos militares no poder na Birmânia? Deve ser chato, embora o meu coração esteja inteiramente reservado às vítimas de humilhação no sistema prisional da Letónia. A fome na Coreia do Norte? Desculpem lá, mas importa exclusivamente a larica dos letões, sobretudo os que ainda não almoçaram às duas da tarde. Os presos políticos em Cuba? Coitados, se bem que ando ocupado com a violência doméstica entre meia dúzia de casais letões.
Apenas o regime da Letónia me ofende, apenas os oprimidos na Letónia me fazem sair à rua, equipado com cartazes furiosos e vestuário regional. Por enquanto, é uma luta que travo sozinho. Amanhã, seremos inúmeros. Ou, com sorte, dois ou três.

O terceiro artigo visa o Tribunal de Contas e, sobretudo, a Constituição portuguesa, em perguntas capciosas sobre a necessidade de reforma dos ditos:

Sexta-feira, 15 de Agosto
Vetar em branco
O recente veto do Tribunal Constitucional levanta desde logo uma primeira questão: será que o TC tem razão? Ninguém sabe. Pelo menos ninguém que desconheça o dialecto justificativo de todos os vetos, o qual, embora vagamente evocativo da nossa língua, difere da mesma em matéria de léxico, pontuação e sintaxe. Depois vem a segunda questão: será que a Constituição de Portugal está bem protegida por pessoas que nitidamente embirram com o português? Se não, convinha verem isso. Se sim, surge uma última questão: será que uma Constituição acarinhada por quem luta com vírgulas desnorteadas e esquarteja frases sem compaixão merece ser protegida?

Carlos do Carmo é o alvo da sátira seguinte, que não poupa o próprio cançonetista premiado nem o pretensiosismo do seu discurso demagógico, de afectos diferenciadores e de vaidosas e constantes referências pessoais, os gestos sempre contidos na postura trabalhada:

Sábado, 16 de Agosto
O que diz o Grammy Latino
Gosto muito de ouvir Carlos do Carmo, menos em disco do que nas entrevistas que concede. Na última, publicada no Diário Económico, o Grammy Latino fala de si próprio, da educação suíça, da crise económica, do cansaço de colegas como Fernando Tordo e Rui Veloso. Por fim, cita Fidel Castro, dono de uma fortuna avaliada em 900 milhões de dólares ("Não tenham medo da guerra nuclear, os ricos não querem morrer") e, sobretudo, alerta as elites para o dia em que "os jovens saírem para a rua "a sério". Nesse momento, "isto vai mudar": "As elites políticas ou ganham juízo ou pode-lhes acontecer alguma coisa de muito desagradável, porque o português não é tanto de brandos costumes como se diz."
É invejável o talento dos grandes artistas para interpretar, além de cançonetas, os sentimentos do povo (ou da "população", palavra que Carlos do Carmo prefere). Como um médium dedicado aos vivos, ou como Mário Soares, Carlos do Carmo comunica intimamente com o espírito das massas e descobre que estas não tardam a irromper furiosas de modo a colocar os poderosos na ordem e a devolver a "dignidade" (sic) à pátria.
Embora não me lembre da última vez em que o País foi assim particularmente digno, fico muito satisfeito com a previsão. Só me angustia uma coisa: e se a população que "não estava habituada a pedir esmola" não distinguir as elites dos artistas que costumam rondar as elites à cata de subsídios e patrocínios? O que acontecerá se a indignação das multidões também se voltar contra a rapaziada dos espectáculos pagos pelas autarquias e decididos por ajuste directo? Carlos do Carmo garante que "a população desta terra gosta" das gentes da "cultura", mas não consigo ficar descansado.

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