Nunca os discursos acalorados de Marinho Pinto,
preenchidos de inflamados axiomas sobre os males morais e físicos que assolam o
país, com o sucedâneo apregoar das respectivas mezinhas, ditadas pelos seus
bons sentimentos, as quais desatariam os nós das embrulhadas pátrias, causaram
em mim senão asco, pela imediata inferência da demagogia interesseira que os
ditava. Uma voz altissonante e virulenta, mastigando os ss e outras consoantes
com apetite, provavelmente desejoso de descarregar o arrocho, como o fez o padre
polemista José Agostinho de Macedo, zurzindo nas doutrinas e doutrinadores liberais
que, em nome da liberdade, instalaram a guilhotina. Mas a “Besta Esfolada” de
Agostinho de Macedo continha autenticidade e brilho nas mordidelas satíricas aos
salteadores da nação da sua época, pese embora a excentricidade do seu azedume
de miguelista ferrenho, enquanto que as zargunchadas de Marinho Pinto não
denotam mais que mesquinha ambição de trepar, como tem, aparentemente,
conseguido, agora com os olhos postos na presidência da república do seu país,
por ineficácia, numa Europa superior, da projecção que as últimas eleições lhe
deram no seu país e na convicção vaidosa e tola de que o país espera em si.
Por isso foi com muito prazer que li no DN de 17/8 a “Carta
aberta a Marinho Pinto”, de Alberto Gonçalves, em «Dias
Contados», um mimo de ironia desdenhosa no seu discurso ambíguo que,
aparentando compreensão pelas frustrações de Pinto, o incita a retomar a
obscuridade e o silêncio da cabana remota:
Carta aberta a Marinho e Pinto
«Verifico com
desgosto que, embora se lamente imenso os portugueses que emigram, celebra-se
pouquíssimo os emigrantes que regressam a Portugal, aliás em grande número
segundo recente estudo do ISEG. Veja-se o exemplo de V. Exa. Numa semana, ruma
a Bruxelas decidido a pôr o dedo na ferida, colocar os pontos nos
"ii" e todas aquelas modalidades de franqueza que o celebrizaram. Na
semana seguinte, ou quase, anuncia o retorno a casa, pronto a candidatar-se à
Assembleia da República, à presidência da República e ao que a República lhe
providenciar. E isto porque, com a perspicácia que o caracteriza, V. Exa.
descobriu que "o elemento agregador da Europa não está nos ideais nem nas
políticas, mas no dinheiro".
Lamento informar V.
Exa. que tal facto não é exactamente novidade. E que em vez de gastar o seu
precioso tempo na campanha para as "europeias" e a procurar um grupo
parlamentar que o aceitasse, V. Exa. podia ter perguntado a alguém: "Ouve
lá, achas que o elemento agregador da Europa está nos ideais e nas
políticas?" A resposta óbvia teria poupado V. Exa. a incontáveis maçadas.
Antes que V. Exa. se
envolva em maçadas adicionais, aproveito para esclarecê-lo que o elemento
agregador de Portugal também não está nos ideais ou nas políticas. Fatalmente,
está também no dinheiro. Por isso, não vale a pena V. Exa. concorrer ao
Parlamento indígena, a Belém ou à junta de freguesia da sua terra natal. Para
usar uma expressão a que V. Exa. recorre com insuperável acerto, aquilo é tudo
uma fantochada. E, escusado dizer, uma fantochada indigna de si.
Mesmo nos programas
televisivos onde a voz de V. Exa. era a voz dos injustiçados e dos ramos da
Justiça amigos do eng. Sócrates, a importância do dinheiro supera a do resto.
Até os injustiçados e o eng. Sócrates, esses ingratos, apreciam dinheiro. A
humanidade é assim pérfida e vendida. Se V. Exa. deseja manter-se fiel à sua
verdade, afinal a única, sugiro-lhe que, volte ou não volte à pátria, não volte
ao convívio dos homens. Ocupe uma cabana remota nas montanhas e dedique-se em
silêncio às reflexões filosóficas que o consomem. Se ouvir turistas, esconda-se
em silêncio. Principalmente em V. Exa., o silêncio é fundamental. Apenas Deus sabe o quanto o
País precisa de V. Exa.: os portugueses não fazem ideia.»
Outros temas fazem
parte deste conjunto de comentários semanal, de grande engenho no seu humor
sadio e corajoso, conhecedor dos maquiavelismos que movem os habituais orientadores
das “sensibilites” humanas, caso do artigo que segue, «Onde fica a Embaixada da
Letónia?» revelador da paralisia mental que o Ocidente está sofrendo
nas manipulações da opinião, que criam, no articulista, o desejo agarotado de
contribuir para o caos, na inanidade das muitas propostas possíveis, como essa
de se centrar exclusivamente nos problemas da Letónia, desligando-se do mundo:
Terça-feira, 12 de
Agosto
Onde fica a Embaixada da Letónia?
Enquanto no Iraque
jihadistas (psicopatas em português) de um grupelho "dissidente" da
Al-Qaeda decapitam centenas de civis curdos, meio Ocidente continua a
manifestar-se contra Israel. Se parece idiota é porque é idiota. No entanto,
qualquer um - até os idiotas - é livre de exibir as suas preferências,
incluindo em matéria de conflitos e genocídios. Eu, por exemplo, decidi que
daqui em diante só me indignarei com os crimes, as malfeitorias e os desaforos
cometidos pelo Governo letão. Não tenho de argumentar nem de avançar com
razões, sólidas ou gasosas: simplesmente ganhei cisma à Letónia e pronto.
A mutilação de
meninas na Serra Leoa? Não quero saber: a minha preocupação vai para a
discriminação da comunidade letã de língua russa. O esclavagismo de castas na
Mauritânia? Não me interessa, já que na Letónia existem abusos verbais contra
os homossexuais. O despotismo dos militares no poder na Birmânia? Deve ser
chato, embora o meu coração esteja inteiramente reservado às vítimas de
humilhação no sistema prisional da Letónia. A fome na Coreia do Norte?
Desculpem lá, mas importa exclusivamente a larica dos letões, sobretudo os que
ainda não almoçaram às duas da tarde. Os presos políticos em Cuba? Coitados, se
bem que ando ocupado com a violência doméstica entre meia dúzia de casais
letões.
Apenas o regime da
Letónia me ofende, apenas os oprimidos na Letónia me fazem sair à rua, equipado
com cartazes furiosos e vestuário regional. Por enquanto, é uma luta que travo
sozinho. Amanhã, seremos inúmeros. Ou, com sorte, dois ou três.
O terceiro artigo
visa o Tribunal de Contas e, sobretudo, a Constituição portuguesa, em perguntas
capciosas sobre a necessidade de reforma dos ditos:
Sexta-feira, 15 de
Agosto
Vetar em branco
O recente veto do
Tribunal Constitucional levanta desde logo uma primeira questão: será que o TC
tem razão? Ninguém sabe. Pelo menos ninguém que desconheça o dialecto
justificativo de todos os vetos, o qual, embora vagamente evocativo da nossa
língua, difere da mesma em matéria de léxico, pontuação e sintaxe. Depois vem a
segunda questão: será que a Constituição de Portugal está bem protegida por
pessoas que nitidamente embirram com o português? Se não, convinha verem isso.
Se sim, surge uma última questão: será que uma Constituição acarinhada por quem
luta com vírgulas desnorteadas e esquarteja frases sem compaixão merece ser
protegida?
Carlos do Carmo é o
alvo da sátira seguinte, que não poupa o próprio cançonetista premiado nem o pretensiosismo
do seu discurso demagógico, de afectos diferenciadores e de vaidosas e constantes
referências pessoais, os gestos sempre contidos na postura trabalhada:
Sábado, 16 de Agosto
O que diz o Grammy
Latino
Gosto muito de ouvir
Carlos do Carmo, menos em disco do que nas entrevistas que concede. Na última,
publicada no Diário Económico, o Grammy Latino fala de si próprio, da educação
suíça, da crise económica, do cansaço de colegas como Fernando Tordo e Rui
Veloso. Por fim, cita Fidel Castro, dono de uma fortuna avaliada em 900 milhões
de dólares ("Não tenham medo da guerra nuclear, os ricos não querem
morrer") e, sobretudo, alerta as elites para o dia em que "os jovens
saírem para a rua "a sério". Nesse momento, "isto vai
mudar": "As elites políticas ou ganham juízo ou pode-lhes acontecer
alguma coisa de muito desagradável, porque o português não é tanto de brandos
costumes como se diz."
É invejável o talento
dos grandes artistas para interpretar, além de cançonetas, os sentimentos do
povo (ou da "população", palavra que Carlos do Carmo prefere). Como
um médium dedicado aos vivos, ou como Mário Soares, Carlos do Carmo comunica
intimamente com o espírito das massas e descobre que estas não tardam a
irromper furiosas de modo a colocar os poderosos na ordem e a devolver a
"dignidade" (sic) à pátria.
Embora não me lembre
da última vez em que o País foi assim particularmente digno, fico muito
satisfeito com a previsão. Só me angustia uma coisa: e se a população que
"não estava habituada a pedir esmola" não distinguir as elites dos
artistas que costumam rondar as elites à cata de subsídios e patrocínios? O que
acontecerá se a indignação das multidões também se voltar contra a rapaziada
dos espectáculos pagos pelas autarquias e decididos por ajuste directo? Carlos
do Carmo garante que "a população desta terra gosta" das gentes da
"cultura", mas não consigo ficar descansado.
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