Mandou-me este email o meu filho Ricardo: «A Grande Guerra que Portugal quis esquecer». Guardo-o no meu blog por devoção, por amor à
verdade, e porque nessa história participou, em acção e relatos, o avô do
Ricardo, (e da Paula e do João), Gavicho
de Lacerda.
Penso que a busca da verdade procurada pelo Público,
e atestada na internet - htt://www.publico.pt/culturaipsilon.noticia/a-grande-guerra-que-Portugal-quis-esquecer-1664212
é oportuna porque repõe uma história de que só se conheciam os
elementos de glória - simbolizados na estátua de Mouzinho de Albuquerque,
contendo os baixos relevos laterais sobre a submissão de Gungunhana em
Chaimite, e colocada em frente à Câmara Municipal de Lourenço Marques, com a catedral
a um dos lados da bela praça – (estátua que, naturalmente, seria retirada, com a descolonização).
Ao descrever os
sofrimentos dos milhares de soldados portugueses enviados para as colónias
cobiçadas pelos alemães, em terras inóspitas e nas condições mais míseras pelo
abandono e desinteresse dos governos centrais, pretende denunciar o dolo na
ocultação dessa verdade que uma vez mais nos aponta como um povo de inércia e
desrespeito pelo ser humano, na pelintrice de uma governação de abandono e incúria, numa guerra de África inglória,
votada ao esquecimento porque nos envergonhava.
Fez bem o Público em enviar o repórter Manuel Carvalho (Palma, Norte de Moçambique) e o fotógrafo Manuel Roberto para a reportagem. A busca da verdade é imprescindível. Mas esta vem contaminada com a ambição de denegrir, de ridicularizar as acções do Governo – neste caso de Passos Coelho – na prestação, por este, da homenagem aos mortos da Primeira Grande Guerra, na sua “festa” de centenário – ignorando os mortos em maior quantidade nas terras de África, que ficaram para sempre votados ao esquecimento.
Condenam-se todos os governos do nosso miserabilismo e da nossa vaidade de defensores do passado heróico, denunciam-se as nossas crueldades e avidez de exploradores colonialistas. Com requinte. Para denegrir, defendendo esse princípio fraterno – e de autodefesa - das descolonizações.
Os povos europeus que mataram com as armas poderosas da sua inteligência e da sua aptidão para o trabalho, são ignorados na reportagem. Ainda não se havia chegado às câmaras de gás. Desprezo por nós, que não inventámos as câmaras de gás, Fernões Mendes Pintos da sobrevivência pelintra, cruel ou humilde, do nosso trajecto pelo mundo, condenados a morrer ignorados, tais como outrora os desaparecidos nos naufrágios ou dizimados pela doença ou pela luta. Mas estes não importam, naturalmente. O relevo vai todo para os que durante a primeira Grande Guerra, não morreram nas trincheiras da batalha de La Lys, mas sim numa África de condições ignominiosas. Foram ambos igualmente desconhecidos na morte, mas os primeiros tiveram direito aos túmulos e estátuas de soldados desconhecidos, nos vários países, glorificados nas comemorações. Para os das fronteiras e territórios coloniais portugueses, apenas o silêncio da vergonha. Salvo hoje, em que a reportagem do Público os vem lembrar, com o afinco da autodefesa, que essa nunca nos envergonhará, Fernões Mendes Pinto de todas as sobrevivências.
«A Grande Guerra que
Portugal quis esquecer»
Manuel Carvalho
(Palma, Norte de Moçambique) e Manuel Roberto (fotos)
«1914 - 2014 - I
Grande Guerra»
«Há 100 Anos»
«Na Grande Guerra de 1914-18, o exército português
sofreu a sua maior derrota em África desde Alcácer Quibir. No Norte de
Moçambique morreram mais soldados portugueses do que na Flandres. Não tanto
pela razia das balas alemãs. Mais pela fome, pela sede, pela doença e pela
incúria. Minada pela vergonha, a I Guerra em Moçambique acabou votada ao
esquecimento. Não tinha lugar numa nação que até 1974 sonhava com um império
ultramarino. Numa viagem de mais de 2500 quilómetros, o PÚBLICO foi à procura
dessa guerra sem rosto. Os cemitérios dos soldados foram profanados ou são
lixeiras, mas o milagre da tradição oral conservou as suas memórias até hoje.
No dia 26 de Junho o primeiro-ministro de Portugal foi
ao cemitério militar de Richebourg, no Norte da França, “prestar a nossa
homenagem colectiva” aos soldados que morreram na Primeira Guerra Mundial. Se
em vez de ter escolhido o palco europeu da guerra e optasse pelo cemitério de
Palma ou o ossário de Mocímboa da Praia, no Norte de Moçambique, dificilmente
Passos Coelho teria condições para manifestar o "respeito e sentimento de
enorme orgulho" que o país supostamente "tem por todos aqueles que se
sacrificaram ao serviço da nação". Porque nesses lugares remotos não
encontraria cemitérios com cruzes brancas, alinhadas e conservadas, a
recortarem o verde da paisagem. Descobriria sim lápides a emergirem entre o
lixo que alimenta galinhas e cabras, tumbas engolidas pelo avanço da selva,
túmulos profanados com os restos dos esqueletos dos combatentes expostos ao ar,
campas onde só com esforço se consegue ler o nome dos que morreram em Quionga,
em Negomano ou no território dos Macondes, nas margens do rio Rovum.
O historiador Marco Arrifes escreveu que “o soldado
desconhecido de África é bem mais desconhecido que o da Flandres” e desde os
dias da guerra até hoje não faltam argumentos para comprovar a sua tese. Em
África combatia-se, de acordo com a ideologia e o direito da era colonial, pela
defesa do território nacional. Em África, principalmente no norte de
Moçambique, morreram mais soldados portugueses do que nas trincheiras da
Flandres, não tanto pelo efeito das balas mas mais por causa da impreparação,
da incúria, da fome e da sede, da loucura das febres, do paludismo e da
disenteria. Mas nem isso bastou para que a Grande Guerra em África tivesse
merecido a atenção que os historiadores, os políticos e a generalidade da
opinião pública devotaram ao Corpo Expedicionário Português na Europa. Até
hoje, as campanhas em África permanecem envolvidas numa relativa aura de esquecimento
colectivo. Só muito recentemente uma nova geração de historiadores decidiu
desenterrar o tabu e verificar a dimensão da tragédia que aconteceu em Angola
e, principalmente, em Moçambique.
Numa viagem de mais de 2500 quilómetros pelas zonas
remotas da província de Cabo Delgado, na linha de fronteira do Rovuma ou já no
outro lado do planalto dos macondes, em território da Tanzânia, o PÚBLICO foi à
procura do que resta dessa guerra. Partimos de Pemba, a Porto Amélia dos tempos
coloniais, subimos a Mocímboa da Praia e a Palma, as bases das principais
expedições das tropas nacionais entre 1916 e 1917; visitámos Quionga que fora
ocupada pelos alemães em 1894 e reconquistada sem um tiro em 10 de Abril de
1916; subimos a Namoto, na margem do Rovuma; fomos a Mueda, símbolo do orgulho
dos macondes e lugar simbólico do início da Guerra Colonial, atravessámos a
estrada de quase 200 quilómetros de terra batida, em plena selva, que a liga a
Negomano, onde as tropas portuguesas sofreram uma pesada derrota em 25 de Novembro
de 1917; cruzámos a fronteira através de uma ponte moderna, absurda, que liga
duas picadas entre o nada e lugar nenhum e subimos ao planalto dos macondes do
lado da Tanzânia para visitar o velho forte alemão de Nevala, que os
portugueses ocuparam durante um mês; passámos em Mahuta onde uma emboscada a 4
de Outubro de 1916 tirou a vida a 32 soldados e regressámos a Moçambique via
Kilambo e Namoto.
Ainda hoje as memórias da Grande Guerra permanecem
guardadas nessas localidades pela tradição oral. Amisse Juma, 76 anos, sabe
identificar o lugar onde se instalou o quartel-geral da quarta expedição, em
Mocímboa da Praia. Martins Ibrahim Musse, 65 anos, sabe relatar as histórias
dos soldados cujos restos mortais permanecem no cemitério de Palma e lembra-se
do dia em que muitos foram desenterrados e transportados para Portugal. O mzê
(senhor de idade) Assani Abdel Remani Kimombo desconhece ao certo a sua idade
mas consegue detectar entre o mato as trincheiras que em 1916 as tropas
portuguesas cavaram em Namoto para se defenderem das investidas alemãs que
partiam do outro lado do Rovuma; Abdel Carlos John é capaz de abrir caminho
entre a selva com uma catana para, a alguns quilómetros da aldeia, nos levar ao
túmulo de um soldado alemão cuja cúpula, garante, foi derrubada por um
elefante. E em Negomano, na fronteira entre o Cabo Delgado e o Niassa, Santos
Salimo Mundogwan, 61 anos, conserva as memórias que o seu avô, o régulo
Malunda, lhe transmitiu do terrível combate que em 25 de Novembro de 1917 opôs
portugueses e alemães numa das orlas da sua aldeia, no preciso lugar onde o
Lugenda se funde com o Rovuma. Santos Salimo Mundogwan recorda-se até do nome
do major Teixeira Pinto, o comandante das tropas nacionais em Negomano que
perdeu a vida com os primeiros tiros do cerco alemão.
O regresso a esses lugares e a recuperação dessas
memórias ajuda a perceber o destino das expedições. Obrigadas a defender uma
fronteira com 720 quilómetros, tendo de cruzar um território muito maior do que
Portugal, num clima abrasador onde, no Verão, a chuva potencia níveis de
humidade acima dos 90%, numa região sem estradas que obrigavam as colunas a ter
de abrir caminho entre a selva, sujeitos a permanentes ataques de feras e de
enxames de mosquitos, os soldados portugueses foram sujeitos a uma missão
impossível. Sem treino específico, sem equipamento ajustado aos rigores do mato
africano, sem linhas de abastecimento que garantissem comida e água, sem
medicamentos nem hábitos de higiene, tornaram-se presas fáceis de um exército
alemão com menos homens mas liderado por um génio militar, Paul Emil von
Lettow-Vorbeck, cujas tácticas de guerrilha em movimento inspirariam todo o
curso da guerra não-convencional do século XX, de Che Guevara a Nguyen Giap, de
Amílcar Cabral a Samora Machel.
A zona do conflito, entre os rios Lúrio e o Rovuma,
era visitada pelos portugueses desde os princípios da expansão, mas a sua posse
efectiva só se consumaria em Fevereiro de 1887, quando o coronel Palma Velho,
governador de Cabo Delgado, conquista a baía de Tungue ao sultão de Zanzibar.
De face voltada para a Índia, mas culturalmente próxima da esfera do Islão, a
costa era nessa época, como hoje, um mosaico de povos que viviam da pesca e da
agricultura familiar. Mais para o interior dominavam os macuas, a sul do Lúrio,
e os macondes e, já nos limites do Lago Niassa, os ajauas. Para os soldados
portugueses, na sua esmagadora maioria provenientes das aldeias do interior, o
Norte de Moçambique aparecia-lhes como uma terra inóspita, maldita, povoada de
leões que entravam noite dentro nos acampamentos e devoravam carregadores
indígenas ou doentes dos hospitais de campanha, de formigas carnívoras, de
gente que comia ratos dos arrozais e dançava em trejeitos hedonistas noite fora
em batucadas
Toda a área de conflito tinha sido concessionada à
exploração da Companhia do Niassa, em 1890, mas a obra colonizadora desta
entidade tinha sido nula. Os seus métodos “eram tudo o que havia de mais
simples: nem escolas, nem missões, nem hospitais, nem estradas. A sua actividade
cifrava-se na cobrança dos direitos da alfândega e no m’soco”, o imposto de
palhota, constatou o médico Américo Pires de Lima na sua memória Na Costa de
África. Poder-se-ia pensar que a experiência militar dos portugueses em África,
coroada com missões do tenente Valadim no Niassa, onde morreu em combate em
Janeiro de 1890, com a estratégia baseada na violência dos “Centuriões”
comandados por António Enes, ou as façanhas de Mouzinho de Albuquerque na
batalha de Marracuene, de Chaimite, ou com a prisão de Gungunhana, em 1895,
colocaria as tropas portuguesas numa situação de vantagem face à curta vivência
dos alemães em África, que se tinham estabelecido na região dos Grandes Lagos
apenas em 1885. Puro engano.
Quando a primeira expedição comandada pelo coronel
Pedro Francisco Massano de Amorim, director militar das Colónias, chega a Porto
Amélia e desembarca do Durhan Castle, no dia 1 de Novembro de 1914, com 50
oficiais, 77 sargentos, 1400 soldados e 322 solípedes era já possível perceber
a dimensão do improviso. A falta de objectivos, a ausência de preparação
militar ou a carência de bens cruciais como medicamentos iriam comprometer o
esforço das tropas expedicionárias. Massano de Amorim lamentaria mais tarde no
seu relatório de campanha o seu destino: “Sem caminho-de-ferro, que aqui é
considerado um bluff, sem linhas telegráficas, sem estradas, sem força militar…
com ratoneiros e bandidos em vez de polícias e sipaios, sem protecção de
espécie alguma aos indígenas… não é para admirar que à data de chegada da expedição
do meu comando aos territórios da Companhia do Niassa os postos administrativos
fossem uma vergonha, os militares uma irrisão, a ocupação uma mistificação, a
cobrança de impostos uma violência, a subordinação do gentio uma utopia e a
viação um esforço grosseiro”.
A expedição, baseada na actual Pemba, capital da
província de Cabo Delgado, passaria um ano em Moçambique dedicada a tentar
suprir as carências de mobilidade que comprometiam a acção de um exército
moderno, sujeito a deslocações de centenas de quilómetros com toneladas de
víveres e equipamentos. O seu legado para a expedição que se lhe seguiu
consistiu na instalação de uma linha telegráfica e na construção de uma estrada
que ligaria Porto Amélia a Mocímboa do Rovuma, com uns 450 km de extensão. Mas
mesmo a permanência na belíssima baía de Pemba, num ecossistema e num clima
apesar de tudo mais favorável que os de Palma ou de Mocímboa da Praia, não
evitaram que, de acordo com o historiador António José Telo, a expedição tenha
sofrido “21% de baixas por doença nos primeiros seis meses, sem entrar em
combate e mesmo sem sair de Porto Amélia”.
Nem esses dados alarmantes serviram de lição. Nada
mudou na preparação das expedições seguintes, que depois de Março de 1916
tinham de viver em estado de guerra declarada com os alemães. Pelo contrário, a
segunda e terceira expedições, com mais de seis mil soldados da metrópole,
acentuariam os erros da primeira. Numa das sessões secretas da Câmara de
Deputados e do Senado da República destinadas a discutir a situação da guerra,
que decorreram entre 11 e 31 de Julho de 1917, o líder do Partido Unionista,
Brito Camacho, daria conta da lassidão e negligência com que as missões eram
preparadas: “Não é segredo para ninguém que se têm mandado tropas para a África
como se não mandam reses para o matadouro”.
“A guerra dos outros”
Mais de 2000 soldados europeus mortos, uma derrota
copiosa em todas as frentes, a cedência aos ingleses do comando operacional
após o desastre do Verão austral de 1917: a linha de fronteira traçada pelo
curso do Rovuma tornou-se “o mais fantástico atoleiro da história militar
portuguesa moderna”, na opinião do historiador francês René Pélissier,
especialista no estudo do passado das ex-colónias portuguesas em África. Cada
relatório, cada fonte, militar ou civil, portuguesa ou alemã, oferece visões
desencontradas sobre os custos humanos da guerra entre os soldados enviados da
metrópole. Mas há nesta contabilidade um valor aproximado, ao menos. O que se
torna impossível em relação ao balanço das vítimas entre a população local. Na
Conferência de Paz, Portugal avançou com uma estimativa de 120 mil mortos entre
os habitantes do Norte de Moçambique, mas é provável que haja aqui algum
exagero destinado a inflacionar o valor da indemnização que se estava a pedir à
Alemanha.
No final da guerra, Gavicho de Lacerda, administrador
da Zambézia, dizia que o seu prazo tinha fornecido 25 mil carregadores ao
exército e desses, em 1919, havia ainda cinco mil por repatriar. Estavam
"em tal estado que fazia horrores olhar para eles"
Certo é que morreram muitas dezenas de milhar de
nativos moçambicanos. Menos os que vestiram a farda do exército português e
integraram as companhias indígenas, muitos mais os que foram capturados nas
suas aldeias natais e obrigados ao trabalho forçado de carregador. Carlos
Selvagem, um alferes que integrou a terceira expedição, em 1916, olhava-os “com
piedade, angulosos, nus, esquálidos, tiritando de frio debaixo dos pobres
farrapos da manta, aglomerados em rebanho nos seus cercados de capim,
deslocando-se lentamente, em lentas filas de comboios, ajoujados sob os fardos
que os esmagam, e passivos, sonâmbulos, mecânicos, o olhar ausente, a face
vaga, como quem vaga no indefinido dum sonho remoto, duma remota visão de
palhotas e aldeias natais”.
Quantos terão morrido de fome, de sede, de exaustão,
de maus-tratos é impossível saber. Não faziam parte da contabilidade
administrativa do exército. “Não são homens porque não têm nome; também não são
soldados, porque não têm número. Não se chamam, contam-se. Formam-se a varapau,
põe-se-lhes uma carga à cabeça e pronto”, lamentaria o sargento Cardoso Mirão,
da expedição de 1917.
Ao infortúnio dos carregadores (só no ano final da
campanha foram recrutados 30 mil para apoio das tropas britânicas a operar em
Moçambique) junta-se a violência e as razias feitas por exércitos famintos em
marcha nos campos e armazéns dos aldeões. Com a presença do exército no Norte
de Moçambique, a Companhia do Niassa tratou finalmente de cobrar impostos aos
macondes, usando métodos que arrepiavam até a sensibilidade dos soldados
embrutecidos pela guerra. “Um dia, em Mocímboa, vi chegar uma estranha
procissão: à frente e atrás, um sipaio [polícia indígena], no meio uma longa
bicha de mulheres, que foram metidas num redil de arame farpado. Surpreendido
perguntei a significação daquilo. Era a cobrança coerciva do m’soco [imposto de
palhota]. Como os pretos não pagavam, encarceravam as mulheres até que os
respectivos maridos, saudosos, as viessem resgatar pagando o almejado m’soco”,
lembraria Américo Pires de Lima, um alferes médico. As sublevações indígenas,
no Barué, perto da Beira, ou no planalto dos macondes foram duramente
reprimidas. No Norte de Moçambique, entre Abril e Junho de 1917 foram
incendiadas mais de 150 povoações maconde, na contabilidade de René Pélissier.
Moçambique e os moçambicanos foram sem dúvida as
maiores vítimas da guerra, mas nem isso motivou qualquer interesse entre a
comunidade académica sobre o tema. António Sopa, historiador moçambicano da
época contemporânea, explica este alheamento dizendo que a I Guerra Mundial é
vista como “uma guerra dos outros”. Sem fontes escritas, com os arquivos
militares e coloniais transportados para Lisboa, resta a memória oral como
objecto de estudo. Ou a ficção, fácil de prosperar numa guerra entre europeus
errantes pela selva. O escritor João Paulo Borges Coelho recuperou esse tempo
para escrever o romance que lhe valeria o Prémio Leya de 2009, O Olho de
Hertzog. E pouco mais.
Uma guerra ainda viva
Logo após o conflito, nos anos 20, os militares e a
História ainda se dedicaram a tentar perceber as razões para o desastre na
guerra do Norte de Moçambique. Outros fizeram-no em tom de ajuste de contas.
Foi o caso do general Gomes da Costa, que em 1918 comandou a última expedição a
Moçambique e teve a oportunidade de arrolar todas as omissões e de compilar uma
síntese de todos os erros cometidos. Escreveu o militar que encabeçaria o golpe
de 28 de Maio de 1926 sobre o estado de impreparação das missões enviadas para
Moçambique: “Não se conhecem nem os recursos militares das colónias, nem os
seus recursos económicos, nem a sua topografia; nem há cálculos feitos para a
quantidade de víveres necessários para um dado número de homens; nem estudo da
ração mais própria; nem contratos ou combinações para os fornecimentos a fazer
com regularidade; nem fixação das formas de acondicionamento; nem estudo dos
nossos navios para se conhecer o que cada um pode transportar em homens,
animais e carga; numa palavra, nada há feito, nada se sabe, para nada
serve". As campanhas em Moçambique desenrolaram-se "sem objectivo,
sem plano, sem nexo, até à derrota".
Em 1926, uma Ordem do Exército que serviria de
avaliação ao relatório do comandante da terceira expedição, o general Ferreira
Gil, acentuava as responsabilidades dos políticos e desculpava os militares
pelas perdas materiais e humanas e pelas derrotas. “O estudo deste período da
campanha na África Oriental mais uma vez demonstra que as estações superiores
não puderam ou não souberam convenientemente preparar, nem superiormente
orientar a nossa intervenção militar nesse teatro de operações. Em tudo se
revela uma grande desorganização, a mais completa ausência de previsão e de uma
conveniente preparação, e a carência de recursos em dinheiro e em material
indispensável nas campanhas coloniais, factores estes acrescidos com a falta de
um plano de guerra previamente estabelecido, onde tivessem sido fixados os
objectivos políticos e militares da nossa acção, como beligerantes, nesse
teatro de operações. E, como se tudo isso não bastasse, foi ainda por vezes
agravado com a intervenção, nem sempre oportuna, de poderes superiores aos
Comandos das expedições na direcção das operações, e com o fraco apoio que,
também por vezes, foi dado a estes Comandos pelo Governo central”.
Há nesses relatos vontade de denunciar, mas é mais
fácil encontrar palavras contra os hábitos dos negros ou contra os monhés do
que contra os oficiais ou contra os políticos
Alguns dos soldados e oficiais que resistiram às
agruras das campanhas africanas elevaram o tom das críticas, publicando as suas
memórias nos anos finais da Primeira República. Na maior parte dos casos são
relatos vívidos, pungentes, mais destinados a celebrar o milagre da
sobrevivência do que em analisar as causas da incompetência do comando. São
livros que nos falam dos hábitos dos indígenas, que relatam o sofrimento das
grandes caminhadas, que descrevem os horrores da fome e da sede, que situam as
bases ou os campos de batalha, que narram detalhes do quotidiano dos bivaques
ou dos acampamentos dos indígenas. Há nesses relatos vontade de denunciar, mas
é mais fácil encontrar palavras contra os hábitos dos negros ou contra os
monhés (indianos) do que contra os oficiais ou contra os políticos.
Ainda que o volume de obras memorialísticas da guerra
em Moçambique seja muito inferior às que se escreveram a partir da experiência
na Flandres, as suas narrativas são cruciais para se perceber o que aconteceu
aos cerca de 20 mil soldados que o Governo da República enviou para travar os
alemães (em Angola, onde os conflitos duraram apenas entre 19 de Outubro e 18
de Dezembro de 1914, o número de praças europeias ascendeu a 13 mil). Américo
Pires de Lima, um médico do Porto que se viria a destacar como professor universitário
e como criador do Jardim Botânico que ainda hoje existe na Rua do Campo Alegre,
deixou-nos uma ideia brutal do efeito que as doenças tropicais provocaram nas
expedições baseadas em Palma e em Mocímboa da Praia, entre 1916 e 1917. Carlos
Selvagem e António de Cértima relataram com detalhes a marcha pela actual
Tanzânia que culminou com a conquista e abandono do forte alemão de Nevala.
Cardoso Mirão, Ernesto Moreira dos Santos e José Teixeira Jacinto guardaram em
texto a inenarrável odisseia da Coluna do Lago, uma viagem desnecessária de 900
km pelo interior da selva que acabou com as derrotas de Negomano e de Serra
Mecula, em Novembro de 1917.
A maior parte dessas memórias foi publicada na década
que se seguiu à guerra e, com excepção do livro Epopeia Maldita de António de
Cértima, ainda hoje um objecto de culto para os bibliófilos, caiu depressa no
esquecimento. Cardoso Mirão decidiu imprimir o seu Kináni (palavra maconde que
significa “quem vem lá” ou “quem vive”) já na vigência do Estado Novo e, como
seria de esperar, a obra foi censurada por instilar o “derrotismo” no país e
por conter relatos considerados “desprestigiantes para o Exército Português”. O
livro, emocionante, misto de tragédia e de aventura, seria publicado em 2001. A
memória de Teixeira Jacinto permaneceu 70 anos guardada num invólucro de papel
grosso, atado com fio do Norte, até que há três anos o seu neto Armando
Jacinto, um coronel na reserva, a descobriu num baú – seria revelada em
primeira mão pelo PÚBLICO em Outubro de 2011 e entretanto publicada pela Câmara
Municipal de Espinho.
Com o Estado Novo, o processo de apagamento da memória
avançou. As derrotas da Primeira Guerra em África seriam anotadas como um
acidente de percurso, causado pela República jacobina, impreparada e carente de
sentido patriótico. Os valores do nacionalismo ou a glória do Império
coexistiam mal com as derrotas de Namoto ou Negomano. Os mitos africanistas de
Mouzinho de Albuquerque não se podiam associar à tragédia de Nanguar ou da
Serra Mecula. Craveiro Lopes, Presidente da República entre 1951 e 1958, foi
ainda capaz de visitar alguns dos lugares do conflito em 1956, mandando
recolher os restos mortais dos soldados dispersos por vários campos de batalha
e transladando-os para Portugal ou para um ossário construído de propósito em
Mocímboa da Praia – hoje ao abandono. Mas esse seu gesto fez-se mais por um
desígnio pessoal do que pelo imperativo de moral pública. Craveiro Lopes fora
um alferes que, aos 23 anos, fizera parte da Coluna de Massassi e participara
na conquista de Nevala, em Outubro/Novembro de 1916. A sua bravura na defesa do
fortim conquistado aos alemães pelo curto prazo de uma semana tinha-lhe
merecido uma Cruz de Guerra. Era natural que um militar que vivera as agruras
da guerra na selva africana se preocupasse em homenagear os que nela pereceram.
Muitas das localidades que serviram de bases aos
soldados das quatro expedições entre 1914 e 1918 seriam usadas pelas tropas
coloniais que combateram a Frelimo quatro décadas mais tarde. Muitos dos eixos
de penetração da guerrilha foram muito antes abertos pelas incursões alemãs
A guerra colonial regressaria a muitos dos lugares por
onde andaram os soldados portugueses de há cem anos. Francisco Dinis esteve em
Negomano até 1974 mas não se recorda de ter ouvido falar da batalha que lá se
travara 57 anos antes. Muitas das localidades que serviram de bases aos
soldados das quatro expedições entre 1914 e 1918 seriam usadas pelas tropas
coloniais que combateram a Frelimo quatro décadas mais tarde. Muitos dos eixos
de penetração da guerrilha foram muito antes abertos pelas incursões alemãs.
Entre estas duas gerações há, por isso, memórias em comum. Em Mecula, um lugar
remoto do Niassa, onde Agostinho Mesquita sofreu um atentado com uma mina que o
tornou deficiente, morreu o tenente Viriato de Lacerda em Dezembro de 1917
vítima dos ataques alemães.
René Pélissier considera que o facto de a guerra de
libertação da Frelimo se ter iniciado no território dos macondes, onde se deram
as mais duras batalhas da Grande Guerra e onde a população civil sofreu as
agruras da escravidão ou da pilhagem, não é por acaso. “Não se deve esquecer
que apenas 47 anos separam a ‘submissão’ de 1917 do início da guerrilha da
Frelimo”, escreve o historiador francês. A verdade é que as marchas forçadas
entre a selva no Niassa ou no planalto dos macondes, as razias dos bens das
populações, a violência sobre as mulheres ou a escravidão da Grande Guerra dão
corpo a uma linha de acontecimentos que esteve longe de se concluir quando os
alemães depõem as armas, a 11 de Novembro de 1918. Por muito que em Portugal
essa guerra distante tenha sido estranhamente engavetada na História, os seus
efeitos perduraram no tempo. E, como o PÚBLICO pôde constatar, ainda hoje
resistem na memória dos seus habitantes.»
Notícia alterada a 29/7: Craveiro Lopes recebeu a Cruz
de Guerra e não a Cruz de Ferro
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