São tão espectaculares os artigos
de Vasco Pulido Valente, nas perspectivas históricas e sociais e nos confrontos
desassombrados que nos apresenta sobre as marionetes do nosso palco tragiburlesco diário, que o
meu gosto consiste em guardá-los “para mais tarde recordar”, ciente de que
os jornais são coisa de reciclagem, em breve perdidos, e nem sabemos se Vasco
Pulido Valente os reunirá em apetecível volume de prosas histórico-satíricas,
se é que podemos emparelhar os dois epítetos numa comum caracterização.
Aqui vai, pois, mais um, como
continuação do texto anterior, complemento da nossa cultura e esclarecimento.
Mas socorramo-nos também, como corolário de paralelismo crítico, uma vez mais
do nosso épico, cujo estado de espírito de intelectual clarividente e frustrado
não seria, no seu tempo, de menor desespero e indignação do que o de V. P. V.
nos seus comentários e sentenças de uma altivez esclarecida, embora a apóstrofe
inflamada seja enfiada na boca do Gama, como alter ego ditando o seu
excurso próprio:
«Ó
tu, Sertório, ó nobre Coriolano,
Catilina, e vós outros dos antigos
Que contra vossas pátrias com profano
Coração vos fizestes inimigos:
Se lá no reino escuro de Sumano
Receberdes gravíssimos castigos,
Dizei-lhe que também dos Portugueses
Alguns traidores houve algumas vezes. (Lus., IV, 33)
Catilina, e vós outros dos antigos
Que contra vossas pátrias com profano
Coração vos fizestes inimigos:
Se lá no reino escuro de Sumano
Receberdes gravíssimos castigos,
Dizei-lhe que também dos Portugueses
Alguns traidores houve algumas vezes. (Lus., IV, 33)
Não se tratando, todavia, no caso
presente, de traição pátria, definitivamente repostas pessoas e coisas nos
lugares respectivos, segundo o lema bíblico “a César o que é de César”
há mais de 40 anos repescado, poderemos equiparar os discursos arrebatados dos
dois concorrentes ao cargo de futuros primeiros ministros, que é, em última
análise o propósito de artimanha ambiciosa de cada um, antes a um trabalho de
sapa, em proveito próprio, como interpretação-síntese do discurso de V.P.V., e
assim mudando os versos imortais:
Dizei-lhe
que também dos Portugueses
Sapadores houve algumas vezes.
Sapadores houve algumas vezes.
O
aviário
Vasco Pulido
Valente,
Público, 4/10/2014
António Costa resolveu dividir o partido de acordo com os
resultados das primárias. Aproximadamente, dois terços para ele e um terço para
Seguro, ou seja, para a gente que apoiou Seguro.
Na
Quadratura do Círculo, explicou que o PS não tinha o hábito, como o PSD, de
afastar quem perdia nas querelas domésticas. O PS aproveitava sempre os
vencidos e aceitava colectivamente como sua a história da “família”, fosse ela
a que fosse: o “soarismo”, o “guterrismo”, o “socratismo”, o “segurismo” e agora
o “costismo”. O símbolo desta trapalhada é, neste momento, o amável Eduardo
Ferro Rodrigues, que já subiu passo a passo a escada do partido, de “militante
de base” a secretário-geral, e anteontem aceitou ser presidente da bancada do
grupo parlamentar socialista, com uma grande variedade de espécies criadas com
desvelo no mesmo aviário.
Com
certeza não ocorreu a Costa que os portugueses queriam remover Seguro da sua
vida, mas também estavam fartos das personagens secundárias, que desde 1976
ajudam à missa. O apadrinhamento de Costa pelas relíquias do PS (Mário Soares,
Almeida Santos, Jardim e Alegre) não anunciava nada de bom. A pesca miraculosa
de amigos de muitas famílias, que só se distinguem na vida pública pela sua
idade e pelo sossego com que atravessaram a democracia, piorou as coisas.
Quando a procissão sair do adro com a velha tropa à frente, tropeçando e
tossindo, não haverá um único cidadão activo que lhes conceda a mais remota
confiança. “Lá voltam eles!”, dirão desconsoladamente os basbaques do costume.
“Isto não muda”.
Como,
aliás, no PSD, não se ouve no PS um nome conhecido pela sua importância
autónoma. Parece que nem um médico, nem um advogado, nem um arquitecto, nem um
empresário jamais se dignou a pôr os pés no casarão do Largo do Rato. E parece
pior. Parece que o mundo do Largo do Rato não comunica com o mundo do cidadão
comum. Existia uma esperança, embora ténue, de que a Câmara de Lisboa tivesse
transmitido a Costa uma noção do que sucedia cá fora. Seguro até garantiu que
ele não largava “a janela”. Talvez não largasse. O pior é que o “novo rumo” com
que ele sonhava era a manifestação de “carbonários”, que, em 1910, para nosso
mal, proclamou a República. O cozinhado de facções que António Costa esta
semana perpetrou (e se prepara para continuar) não anima ninguém. A
mediocridade ganhou.»
Mas antes, em
13/9/14, já o Público tinha publicado um outro artigo de esclarecimento sobre o
Socialismo na dimensão impressa por António Costa e António José Seguro nos
seus discursos bem timbrados, ambos em unanimidade de parecer a respeito da
necessidade de o país crescer economicamente e de se reindustrializar, o que,
de resto, parece que é opinião do consenso geral, a começar pelo Sr. De La
Palice, caso estivesse ainda vivo, como estava pouco antes de falecer.
E por aqui me fico, nas banalidades destes registos de
incompetências ou ingenuidades de aparência, que assim vão prometendo e enganando um povo que
há muito espreita no ninho, de biquinho escancarado, a comida dos pássaros
progenitores.
O socialismo em 2014
Vasco Pulido Valente
13/09/2014
Dois
candidatos andam por aí melancolicamente a explicar ao “povo socialista” o que
fariam com o poder, no largo do Rato ou em Portugal inteiro. A parte mais
curiosa deste peculiar exercício é a concordância final de Seguro e Costa para
nos tirar da miséria em que vivemos. Tanto um como outro acham que o segredo da
felicidade está no “crescimento” da economia. Se a economia “crescesse”, eles
mudariam a Pátria de alto abaixo. Seguro quer mesmo mais. Quer
“re-industrializar” um país que nunca foi industrializado, uma avaria quase
metafísica. Mas, no meio disto tudo, fica uma pergunta perturbadora: onde pára,
no “pensamento” destes próceres, o “povo” que o capitalismo, de propósito ou
por acidente, empurrou pouco a pouco para a pobreza e o desespero?
Presumindo
que nem Costa nem Seguro tencionam ressuscitar a URSS e o dr. Álvaro Cunhal
para reconstruir a próspera sociedade que existia no leste da Europa, só se
pode concluir que eles querem uma sociedade de mercado, com o Estado reduzido a
algumas tarefas de inspecção e regulamentação e com um pequeno banco (o novo
Banco de Fomento) para ajudar de quando em quando meia dúzia de empresas perto
da falência. Em 1970, o nome que se dava a esta actividade dos socialistas era
“gerir com fidelidade o capitalismo”. Agora ninguém acha estranho e muita gente
pede aos Céus que lhe tragam um segundo Cavaco, na pele de Seguro ou Costa, e
um bando de meninos, saídos de fresco da Universidade Católica ou da
Universidade Nova, para tratar dos pormenores.
Insistindo
no “crescimento”, nenhum dos dois mágicos do PS percebe que fica submetido às
regras do mercado. O dinheiro vem de fora (porque não há cá dentro) e com
certeza imporá as suas condições: nas finanças, na justiça, nas leis do
trabalho e por aí fora até à política pura e dura. O Estado Social passará a
ser uma preocupação secundária e a margem de lucro a preocupação principal. Ora
o dr. Costa e o dr. Seguro, empregados públicos desde pequenos, não sabem o que
é uma empresa, como ela funciona e o que precisa para funcionar. O risco para
qualquer um deles de cair na asneira sistemática à portuguesa é enorme e
provavelmente inevitável. Olhem bem para eles, ouçam as conversas pedantes que
eles dia a dia nos fornecem e, depois, tentem imaginar um desses abencerragens
a dirigir uma economia. Não se concebe, pois não?
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