quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Continuação do estudo da matéria anterior



São tão espectaculares os artigos de Vasco Pulido Valente, nas perspectivas históricas e sociais e nos confrontos desassombrados que nos apresenta sobre as marionetes  do nosso palco tragiburlesco diário, que o meu gosto consiste em guardá-los “para mais tarde recordar”, ciente de que os jornais são coisa de reciclagem, em breve perdidos, e nem sabemos se Vasco Pulido Valente os reunirá em apetecível volume de prosas histórico-satíricas, se é que podemos emparelhar os dois epítetos numa comum caracterização.
Aqui vai, pois, mais um, como continuação do texto anterior, complemento da nossa cultura e esclarecimento. Mas socorramo-nos também, como corolário de paralelismo crítico, uma vez mais do nosso épico, cujo estado de espírito de intelectual clarividente e frustrado não seria, no seu tempo, de menor desespero e indignação do que o de V. P. V. nos seus comentários e sentenças de uma altivez esclarecida, embora a apóstrofe inflamada seja enfiada na boca do Gama, como alter ego ditando o seu excurso próprio:
«Ó tu, Sertório, ó nobre Coriolano,
Catilina, e vós outros dos antigos
Que contra vossas pátrias com profano
Coração vos fizestes inimigos:
Se lá no reino escuro de Sumano
Receberdes gravíssimos castigos,
Dizei-lhe que também dos Portugueses
Alguns traidores houve algumas vezes.
(Lus., IV, 33)
Não se tratando, todavia, no caso presente, de traição pátria, definitivamente repostas pessoas e coisas nos lugares respectivos, segundo o lema bíblico “a César o que é de César” há mais de 40 anos repescado, poderemos equiparar os discursos arrebatados dos dois concorrentes ao cargo de futuros primeiros ministros, que é, em última análise o propósito de artimanha ambiciosa de cada um, antes a um trabalho de sapa, em proveito próprio, como interpretação-síntese do discurso de V.P.V., e assim  mudando os versos imortais:
Dizei-lhe que também dos Portugueses
Sapadores houve algumas vezes.
O aviário
Vasco Pulido Valente,
Público, 4/10/2014
António Costa resolveu dividir o partido de acordo com os resultados das primárias. Aproximadamente, dois terços para ele e um terço para Seguro, ou seja, para a gente que apoiou Seguro.
Na Quadratura do Círculo, explicou que o PS não tinha o hábito, como o PSD, de afastar quem perdia nas querelas domésticas. O PS aproveitava sempre os vencidos e aceitava colectivamente como sua a história da “família”, fosse ela a que fosse: o “soarismo”, o “guterrismo”, o “socratismo”, o “segurismo” e agora o “costismo”. O símbolo desta trapalhada é, neste momento, o amável Eduardo Ferro Rodrigues, que já subiu passo a passo a escada do partido, de “militante de base” a secretário-geral, e anteontem aceitou ser presidente da bancada do grupo parlamentar socialista, com uma grande variedade de espécies criadas com desvelo no mesmo aviário.
Com certeza não ocorreu a Costa que os portugueses queriam remover Seguro da sua vida, mas também estavam fartos das personagens secundárias, que desde 1976 ajudam à missa. O apadrinhamento de Costa pelas relíquias do PS (Mário Soares, Almeida Santos, Jardim e Alegre) não anunciava nada de bom. A pesca miraculosa de amigos de muitas famílias, que só se distinguem na vida pública pela sua idade e pelo sossego com que atravessaram a democracia, piorou as coisas. Quando a procissão sair do adro com a velha tropa à frente, tropeçando e tossindo, não haverá um único cidadão activo que lhes conceda a mais remota confiança. “Lá voltam eles!”, dirão desconsoladamente os basbaques do costume. “Isto não muda”.
Como, aliás, no PSD, não se ouve no PS um nome conhecido pela sua importância autónoma. Parece que nem um médico, nem um advogado, nem um arquitecto, nem um empresário jamais se dignou a pôr os pés no casarão do Largo do Rato. E parece pior. Parece que o mundo do Largo do Rato não comunica com o mundo do cidadão comum. Existia uma esperança, embora ténue, de que a Câmara de Lisboa tivesse transmitido a Costa uma noção do que sucedia cá fora. Seguro até garantiu que ele não largava “a janela”. Talvez não largasse. O pior é que o “novo rumo” com que ele sonhava era a manifestação de “carbonários”, que, em 1910, para nosso mal, proclamou a República. O cozinhado de facções que António Costa esta semana perpetrou (e se prepara para continuar) não anima ninguém. A mediocridade ganhou.»

 Mas antes, em 13/9/14, já o Público tinha publicado um outro artigo de esclarecimento sobre o Socialismo na dimensão impressa por António Costa e António José Seguro nos seus discursos bem timbrados, ambos em unanimidade de parecer a respeito da necessidade de o país crescer economicamente e de se reindustrializar, o que, de resto, parece que é opinião do consenso geral, a começar pelo Sr. De La Palice, caso estivesse ainda vivo, como estava pouco antes de falecer.
E por aqui me fico, nas banalidades destes registos de incompetências ou ingenuidades de aparência, que assim vão prometendo e enganando um povo que há muito espreita no ninho, de biquinho escancarado, a comida dos pássaros progenitores.

*    http://s.publico.pt/eduardo-ferro-rodrigues/1671806O socialismo em 2014
*      Vasco Pulido Valente
13/09/2014  
Dois candidatos andam por aí melancolicamente a explicar ao “povo socialista” o que fariam com o poder, no largo do Rato ou em Portugal inteiro. A parte mais curiosa deste peculiar exercício é a concordância final de Seguro e Costa para nos tirar da miséria em que vivemos. Tanto um como outro acham que o segredo da felicidade está no “crescimento” da economia. Se a economia “crescesse”, eles mudariam a Pátria de alto abaixo. Seguro quer mesmo mais. Quer “re-industrializar” um país que nunca foi industrializado, uma avaria quase metafísica. Mas, no meio disto tudo, fica uma pergunta perturbadora: onde pára, no “pensamento” destes próceres, o “povo” que o capitalismo, de propósito ou por acidente, empurrou pouco a pouco para a pobreza e o desespero?
Presumindo que nem Costa nem Seguro tencionam ressuscitar a URSS e o dr. Álvaro Cunhal para reconstruir a próspera sociedade que existia no leste da Europa, só se pode concluir que eles querem uma sociedade de mercado, com o Estado reduzido a algumas tarefas de inspecção e regulamentação e com um pequeno banco (o novo Banco de Fomento) para ajudar de quando em quando meia dúzia de empresas perto da falência. Em 1970, o nome que se dava a esta actividade dos socialistas era “gerir com fidelidade o capitalismo”. Agora ninguém acha estranho e muita gente pede aos Céus que lhe tragam um segundo Cavaco, na pele de Seguro ou Costa, e um bando de meninos, saídos de fresco da Universidade Católica ou da Universidade Nova, para tratar dos pormenores.
Insistindo no “crescimento”, nenhum dos dois mágicos do PS percebe que fica submetido às regras do mercado. O dinheiro vem de fora (porque não há cá dentro) e com certeza imporá as suas condições: nas finanças, na justiça, nas leis do trabalho e por aí fora até à política pura e dura. O Estado Social passará a ser uma preocupação secundária e a margem de lucro a preocupação principal. Ora o dr. Costa e o dr. Seguro, empregados públicos desde pequenos, não sabem o que é uma empresa, como ela funciona e o que precisa para funcionar. O risco para qualquer um deles de cair na asneira sistemática à portuguesa é enorme e provavelmente inevitável. Olhem bem para eles, ouçam as conversas pedantes que eles dia a dia nos fornecem e, depois, tentem imaginar um desses abencerragens a dirigir uma economia. Não se concebe, pois não?

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