Faz Vasco Pulido Valente referência à bota queirosiana d’ Os
Maias para nos definir como povo de imitadores, e sobretudo, no tempo de Eça, imitadores
das escolas e jeitos literários, artísticos e de moda dos franceses, o que, apesar da aversão actual
pelo estudo do francês nas escolas, que eliminaram num ápice não só os
escritores que possibilitavam paralelismos com os nossos, no estudo da nossa
literatura, como erradicaram mesmo o francês, da maioria das programações
escolares, não deixa de ser verdade ainda hoje, graças aos meios mediáticos
disponíveis.
Mas o fenómeno é mais antigo ainda do que do que afirma
Vasco Pulido Valente. O próprio Esopo o descreveu na sua rã que inchou a ponto
de rebentar, pois não alcançou o tamanho do boi, apesar de tanto se esforçar.
Não é exclusivo nosso, ele explica-se por vaidades, interesses, exibicionismos,
fraquezas, desejo de ostentação. No tempo do D. Manuel dos grandes Descobrimentos,
a ostentação era muita, e cada nobre que saía à rua montado no seu cavalo
fazia-se acompanhar de sete ou oito escravos com as funções mais ridículas da
sua pompa exibicionista; um segurava-lhe o chapéu, outro enfiava-lhe o sapato
no estribo, e por aí fora. A vaidade o explica, mas a incompetência também. Quem
precisa do escravo para enfiar o pé no estribo, nunca será capaz de construir
pólders, arrancando ao mar as terras do seu alargamento territorial, como
fizeram os Holandeses, embora construa monumentos grandiosos para lhe exaltar a
glória. Mas os monumentos são coisas inertes que não produzem grandes resultados
no avanço económico e mental, como os pólders, e por isso merecemos sempre as
análises críticas dos argutos comentadores. Por isso, Eça justifica a abulia de
uma juventude inerte, pelas esquinas, na mesmice de uma repetição de gestos
invariáveis, segundo Carlos da Maia, ao fim de dez anos de ausência, na resenha
derrotista dos dois amigos a que Vasco Pulido Valente faz referência e que
transcrevo, como páginas inapagáveis de definição da nossa idiossincrasia de
conforto parasita, justificativa do nosso atraso de séculos.
Ao afirmá-lo, Vasco Pulido Valente deseja esclarecer e
corrigir, o que é próprio do historiador e do escritor satírico. O mesmo fez
Eça, no seu propósito realista e de dinamização literária que ajudasse ao
rebate das consciências para uma mudança apetecida.
Eis o texto de Vasco Pulido Valente, Público, 28/9:
Um antigo sonho
«Eça,
peço desculpa de o citar, dizia que Portugal era uma espécie de França,
traduzida em vernáculo ou em calão. Os Maias, coisa que pouca gente tem
percebido, são o romance da nossa irresistível tendência para a imitação e do
fracasso a que sempre levou. A última conversa entre Ega e Carlos trata do destino
dos sapatos franceses quando chegam a Lisboa. E a primeira, no consultório de
Carlos, sobre uma civilização importada, que nos fica “curta nas mangas”.
Nada
disto é estranho. Portugal não podia escolher o modelo da Espanha, de que um
velho antagonismo nos separava. Nem o de Inglaterra, que exercia sobre nós um
protectorado humilhante. Nem da Alemanha, um país radicalmente estranho e uma
língua radicalmente diferente. Sobrava a França. E os portugueses copiavam com
entusiasmo a moda francesa, a literatura francesa e a política francesa, que se
discutia com ardor nos cafés.
Salazar
interrompeu esta tradição. Mas mesmo ele admirava Maurras e protegeu os restos
da “Acção Francesa” no fim da guerra. De qualquer maneira, a esquerda
clandestina ou discreta continuava a admirar fervorosamente a prosa e poesia
que o PCP (ou amigos do PCP) contrabandeavam de França e alguns livreiros
vendiam por baixo do balcão. Até jornais cá chegavam, ajudados pela distracção
dos CTT ou pela ignorância da polícia. No “25 de Abril”, evidentemente,
Portugal queria como a França copiar a revolução de Lenine e ascender depressa
à prosperidade do Ocidente. A esquerda penava quase exclusivamente pelo
marxismo académico francês. As massas prendiam os capitalistas mais notórios.
Como
se sabe, a França pouco a pouco enfraqueceu. É hoje uma potência menos que
média; perdeu a sua supremacia cultural (que vinha do século XVIII); e já não
interessa seriamente ninguém. Mas deixou uma herança envenenada, a “Europa”,
montada por um francês, o sr. Delors, à imagem da burocracia francesa. A grande
ambição de Portugal mudou: agora só pensava em ser “como na Europa” ou, pelo
menos, “como a média da Europa”. Não ocorreu a Soares, nem a Cavaco, nem ao
cristianíssimo eng. Guterres que o país não tinha os meios desta simpática
ambição. E assim nasceram auto-estradas, o papel social do Estado (que não
acaba na saúde, na educação, e nas reformas) e 700 mil funcionários públicos
para atender às necessidades dos portugueses. Não, não gastámos de mais. O que fizemos
foi seguir a nossa natureza e os desejos de gerações que se perderam na
obscuridade e na frustração.»
Eis
o texto de Eça, Capítulo XVIII de «Os
Maias»:
:
«Pela
sombra passeavam rapazes, aos pares, devagar, com flores na lapela, a calça
apurada, luvas claras fortemente pespontadas de negro. Era toda uma geração
nova e miúda que Carlos não conhecia. Por vezes Ega murmurava um olá!, acenava
com a bengala. E eles iam, repassavam, comum arzinho tímido e contrafeito, como
mal acostumados àquele vasto espaço, a tanta luz, ao seu próprio chic. Carlos
pasmava. Que faziam, ali, às horas de trabalho, aqueles moços tristes, de calça
esguia? Não havia mulheres. Apenas num banco adiante uma criatura adoentada, de
lenço e chale, tomava o sol; e duas matronas, com vidrilhos no mantelete, donas
de casa de hóspedes arejavam um cãozinho felpudo. O que atraía pois ali aquela
mocidade pálida? E o que sobretudo o espantava eram as botas desses
cavalheiros, botas despropositadamente compridas, rompendo para fora da calça
colante com pontas aguçadas e reviradas como proas de barcos varinos...
-
Isto é fantástico, Ega!
Ega
esfregava as mãos. Sim, mas precioso! Porque essa simples forma de botas
explicava todo o Portugal contemporâneo. Via-se por ali como a coisa era.
Tendo abandonado o seu feitio antigo, à D. João VI, que tão bem lhe ficava,
este desgraçado Portugal decidira arranjar-se à moderna: mas sem originalidade,
sem força, sem carácter para criar um feitio seu, um feitio próprio, manda vir
modelos do estrangeiro - modelos de ideias, de calças, de costumes, de leis, de
arte, de cozinha... Somente, como lhe falta o sentimento da proporção, e ao
mesmo tempo o domina a impaciência de parecer muito moderno e muito
civilizado - exagera o modelo, deforma-o, estraga-o até à caricatura.
O figurino da bota que veio de fora era levemente estreito na ponta; -
imediatamente o janota estica-o e aguça-o até ao bico do alfinete. Por seu lado
o escritor lê uma pagina de Goncourt ou de Verlaine em estilo precioso e
cinzelado; - imediatamente retorce, emaranha, desengonça a sua pobre frase até
descambar no delirante e no burlesco. Por sua vez o legislador ouve dizer que
lá fora se levanta o nível da instrução; - imediatamente põe no programa dos
exames de primeiras letras a metafísica, a astronomia, a filologia, a
egiptologia, a cresmatica, a crítica das religiões comparadas, e outros
infinitos terrores. E tudo por aí adiante assim, em todas as classes e profissões,
desde o orador até ao fotógrafo, desde o jurisconsulto até ao sportsman...
é o que sucede com os pretos já corrompidos de S. Tomé, que vêem os europeus de
lunetas - e imaginam que nisso consiste ser civilizado e ser branco. Que fazem
então? Na sua sofreguidão de progresso e de brancura acavalam no nariz três ou
quatro lunetas, claras, defumadas, até de cor. E assim andam pela cidade, de
tanga, de nariz no ar, aos tropeções, no desesperado e angustioso esforço de
equilibrarem todos estes vidros – para serem imensamente civilizados e
imensamente brancos...
Carlos
ria:
-
De modo que isto está cada vez pior...
-
Medonho! É dum reles, dum postiço! Sobretudo postiço! Já não há nada genuíno
neste miserável país, nem mesmo o pão que comemos!
Carlos,
recostado no banco, apontou com a bengala, num gesto lento:
-
Resta aquilo, que é genuíno...
E
mostrava os altos da cidade, os velhos outeiros da Graça e da Penha, com o seu
casario escorregando pelas encostas ressequidas e tisnadas do sol. No cimo
assentavam pesadamente os conventos, as igrejas, as atarracadas vivendas
eclesiásticas, lembrando o frade pingue e pachorrento, beatas de mantilha, tardes
de procissão, irmandades de opa atulhando os adros, erva-doce juncando as ruas,
tremoço e fava-rica apregoada às esquinas, e foguetes no ar em louvor de Jesus.
Mais alto ainda, recortando no radiante azul a miséria da sua muralha, era o
castelo, sórdido e tarimbeiro, de onde outrora, ao som do hino tocado em
fagotes, descia a tropa de calça branca a fazer a bernarda! E abrigados por
ele, no escuro bairro de S. Vicente e da Sé, os palacetes decrépitos, com
vistas saudosas para a barra, enormes brasões nas paredes rachadas, onde entre
a maledicência, a devoção e a bisca, arrasta os seus derradeiros dias,
caquética e caturra, a velha Lisboa fidalga!
Ega
olhou um momento, pensativo:
-
Sim, com efeito, é talvez mais genuíno. Mas tão estúpido, tão sebento! Não
sabe a gente para onde se há de voltar... E se nos voltamos para nós mesmos, ainda pior!»
Muito
negativos, os analistas do nosso temperamento acomodado. A corrupção não está
contida na sua análise, só a pasmaceira e a vaidade. A corrupção prova as
nossas grandes capacidades intelectuais, ela nos iliba da mantilha e do bigode
ou da bota de biqueira e da própria fivela agigantada, que encalhou e não
livrou o peralta de Nicolau Tolentino de apanhar bordoada do pai da namorada:
Em curto josezinho rebuçado,
Loiro peralta a rua passeava;
Seus votos pela adufa lhe aceitava
Com brando riso um rosto delicado;
O pai da moça, que era ginja honrado,
E o caso havia dias espreitava,
De membrudo caixeiro se escoltava,
Com bengala na mão, chambre traçado:
Fugira o moço, qual ligeira péla,
Se as fivelas, de marca agigantada,
Deixassem navegar a nau à vela;
Mas viu uma entre esquinas encalhada;
E, se ninguém comprou maior fivela,
Também ninguém levou maior maçada.
Loiro peralta a rua passeava;
Seus votos pela adufa lhe aceitava
Com brando riso um rosto delicado;
O pai da moça, que era ginja honrado,
E o caso havia dias espreitava,
De membrudo caixeiro se escoltava,
Com bengala na mão, chambre traçado:
Fugira o moço, qual ligeira péla,
Se as fivelas, de marca agigantada,
Deixassem navegar a nau à vela;
Mas viu uma entre esquinas encalhada;
E, se ninguém comprou maior fivela,
Também ninguém levou maior maçada.
Mas são males gerais, afinal, como conclui La Fontaine na
maravilhosa adaptação que faz da fábula da Rã: «La Grenouille qui se veut
faire aussi grosse que le Bœuf»:
Le monde est plein de gens qui ne sont pas plus sages :
Tout bourgeois veut bâtir comme les grands seigneurs,
Tout petit prince a des ambassadeurs,
Tout marquis veut avoir des pages.
Tout bourgeois veut bâtir comme les grands seigneurs,
Tout petit prince a des ambassadeurs,
Tout marquis veut avoir des pages.
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