Já se previa que o país iria dar a
cambalhota, isso estava há muito intuído nas lutas intestinas dos socialistas,
nauseados com as figuras brandas, “as vindas vendo das varandas”, do
pobrezinho do Seguro, brincando ainda às “berlindas” e às Gatas
Borralheiras do sapatinho caído na escadaria, depois da meia noite. Posto assim
de parte, pelos do alfobre de varapaus e apitos que há muito se preparam para o
novo rumo, e que fizeram incidir primeiro os varapaus sobre o príncipe do
sapatinho, para prosseguirem a eito sobre os “príncipes de outras belas” – as
da lisura no tratamento do saldo – o inócuo Seguro é tratado agora com os
salamaleques do cinismo, para se convencer de que é pessoa grada, porque lhes
deu possibilidades, a eles e aos seus varapaus, que são a arma preferida dos
exaltados vendilhões de cravo ao peito.
Costa, mandatado pelos
guardiães-mores, vendilhões primeiros, avançou, pois, no caminho da conquista
do sapato caído, sem nunca se comprometer, e passou-o ao Ferro, que está agora nas
suas tamanquinhas, o sapatinho da Cinderela provavelmente não lhe entrando no
pé, unicamente reservado ao pezinho da princesa, a tamanca lhe servindo q. b..
E diz Ferro que faz sacrifício, no novo cargo, menos lucrativo, mas está feliz,
porque está no combate, disposto ao piparote. Como, de resto, Costa continua de
Câmara, não ardente mas refrigerante, até 2017, ao que diz, e já recolheu ao
seu redil das quintas-feiras bem falantes, que, juntamente com os dessa câmara,
lhe devem fornecer os rendimentos e a projecção suficientes, para se governar, além
de que, despachado Seguro, é provável que não queira agora arriscar a
demonstrar as suas desconhecidas teorias salvadoras da pátria lesada, Ferro
parece surgir como boia salvadora neste impasse em que a primeira medida a
fazer é deitar abaixo o Governo.
Ele aí está, pois, o Ferro, o do
segredo de Costa, o homem do varapau, que me lembrou o Sr. Joãozinho das Perdizes,
do nosso amado Júlio Dinis. Procurei-o na Internet para lhe transcrever o retrato magistral à borla e sem
esforço. De facto, encontrei-o na Internet,
o retrato de “uma verdadeira potência eleitoral”, morgado e
proprietário na freguesia de Pinchões, embora sempre embaraçado em demandas e
hipotecas, mas quem copiou o texto dinisino, usou-o apenas em proveito próprio
e tenho que desistir da transcrição sem esforço para o paralelo. Aliás, o
morgado Joãozinho das Perdizes possuía algumas
virtudes de bom acolhimento e generosidade para com o povoléu que o seguia e a
quem ele pagava os copos da cordialidade coscuvilheira. Não sei se tais
características se adaptam à figura aguerrida de fortes beiços ávidos de
combate que se revelou esplendidamente disposto a iniciar o novo período na
história pós-abrilina, aberta a mais uns rapaces.
Todavia, outra figura me lembrou este
Ferro, ao ouvi-lo e vê-lo, do mesmo romance “A Morgadinha dos Canaviais” - a do missionário pregador que põe a chorar
baba e ranho o mulherio da igreja, na audição a que assistem Madalena, a
Morgadinha, a sua prima Cristina e o cavaleiro de ambas, Henrique de Souselas.
Cena, pois, de enorme efeito emotivo, tais as certezas infundidas pelo padre
sobre os castigos pendentes sobre os hereges – e esses discursos inflamados
sendo tão específicos dos que pretextam defender as bondades democráticas, com
as contrapartidas acusatórias e demolidoras dos governantes menos convictos,
como dos que fazem das religiões o meio de difusão do medo – segundo um Deus
castigador, no caso da antiga Inquisição, ou do missionário em questão, ou, nos
tempos de hoje, mais universais, como capciosa expurgação das impurezas, na sequência
dos princípios de um fundamentalismo primitivo e vil segundo o terrorismo
vingador e facínora.
Vejamos só um pouco do descritivo de
Júlio Dinis, que é um extraordinário escritor e nem escreveu tão leve como
denunciou Eça de Queirós - embora assim tenha morrido, na flor de uma vida
plena de criatividade, tendo retratado com mestria tipos sociais, intrigas novelescas, costumes e paisagens da aldeia e da cidade, em estilo claro e
escorreito, não isento de caricatura, e de um profundo sentir humanitário e
crítico, que lemos com prazer em todas as idades.
A excitação de Ferro Rodrigues,
na euforia do seu novo posto de combate,
em promessas ameaçadoras que há muito pedem os seus toscos congéneres, me
lembrou a inflamação oratória do padre orador, que transcrevo:
…«No
fim de alguns minutos aparecia no púlpito a figura bem nutrida e pouco atraente
do famigerado educador dos povos.
Fitou
com sobranceria os ouvintes e com particular insistência fixou em Henrique, que
lhe estava fronteiro, um olhar, que ele sustentou com firmeza.
Esta
tácita provocação durou alguns minutos, no fim dos quais poderia talvez, quem
estivesse prevenido, distinguir nos lábios do padre um sorriso rancoroso e
perceber-lhe um movimento de cabeça quase ameaçador.
…
Ainda se eu pudesse transmitir aos leitores o tom rouco de voz, a extravagância
de gestos, o descomposto dos movimentos com que o orador acompanhava a
recitação dos descosidos períodos daquela indigesta prática, talvez me
animasse à empresa, para lhes dar um
exemplo da vigorosa eloquência, com que se anda arrasando a civilização do povo
e prejudicando a verdadeira religião, a despeito dos bons sacerdotes, cuja voz
é abafada por aquela gritaria.
As
mais tétricas e pavorosas imagens adornavam o discurso.
Era
o enxofre a ferver, o chumbo derretido, as caldeiras de pez, as fornalhas
ardentes, inúmeras torturas, ao menor delito, tal como um jejum mal guardado,
uma confissão mal feita, uma involuntária falta à missa, uma penitência
esquecida, uma oração suprimida, arriscava as almas por toda a eternidade. Para
cada pecado venial, uma perspectiva de tormentos sem fim. O Tribunal de Deus,
arvorado em Tribunal do Santo Ofício, onde os autos-de-fé, os potros e
cavaletes aguardavam os delinquentes arrastados até ali; eis o resumo da
oração….
…
À medida que a oração progredia, animava-se a voz do orador; aumentava a
desordem dos gestos e refinava a selvajaria das imagens.
Ao
mesmo tempo os gemidos, os soluços e os ais do auditório, e principalmente da
parte feminina dele, ia crescendo em choro manifesto, em gritos e alaridos.
Cedo era já um angustioso clamor em toda a igreja …..»
Ele
aí está, o Ferro Rodrigues, novel instalado onde poderá ser veículo sagaz de um
enxotamento definitivo dos governantes, que Seguro também pedia, mas de forma timorata.
Ferro, protegido pela camarilha dos
patrões velhos, não se coibirá das alianças à esquerda para a arremetida final, jihadista empunhando
a faca.
Voltemos
ao Seguro das varandas, à poesia simbolista do jogo musical, sugeridor dos estados de alma, momentaneamente
descansemos:
SAUDADE
DADA
Em horas inda louras, lindas
Clorindas e Belindas, brandas,
Brincam no tempo das berlindas,
As vindas vendo das varandas.
De onde ouvem vir a rir as vindas
Fitam a fio as frias bandas.
Mas em torno à tarde se entorna
A atordoar o ar que arde
Que a eterna tarde já não torna!
E em tom de atoarda todo o alarde
Do adornado ardor transtorna
No ar de torpor da tarda tarde.
E há nevoentos desencantos
Dos encantos dos pensamentos
Nos santos lentos dos recantos
Dos bentos cantos dos conventos...
Prantos de intentos, lentos, tantos
Que encantam os atentos ventos.
Brincam no tempo das berlindas,
As vindas vendo das varandas.
De onde ouvem vir a rir as vindas
Fitam a fio as frias bandas.
Mas em torno à tarde se entorna
A atordoar o ar que arde
Que a eterna tarde já não torna!
E em tom de atoarda todo o alarde
Do adornado ardor transtorna
No ar de torpor da tarda tarde.
E há nevoentos desencantos
Dos encantos dos pensamentos
Nos santos lentos dos recantos
Dos bentos cantos dos conventos...
Prantos de intentos, lentos, tantos
Que encantam os atentos ventos.
FERNANDO PESSOA
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