Um livro sério, no seu tom tantas
vezes faceto, um livro muito belo, na sua temática sobre uma doença que escolhe
um filho para desgraçar uma família, unida em todo o caso no amor centrado
nesse, incapacitado para uma vida de racionalidade, mas não para ser como meiga
bênção apaziguadora e redentora dos sofrimentos dos que o amam. «O meu
irmão”, um livro de Afonso Reis Cabral, Prémio LeYa 2014.
Uma vez mais uma acção de intriga
ziguezagueante, com deslocações frequentes nos espaços e nos tempos, tempo
presente o do Tojal dos começos da narração, o qual vai alternando com
evocações dos tempos e espaços passados, ordenados por capítulos não numerados,
a justificar a amálgama indiferente dos acontecimentos vividos, todos eles correspondendo-se
na catástrofe de um ser deficiente na família, tempo de memória ao sabor do
pensamento, centrado sobretudo nesse irmão Miguel, menino por vezes amável, por
vezes birrento, e sempre amado com pleno amor. E nessa disparidade de eventos
do passado ou do presente, nos capítulos sem numeração, vão alternando
igualmente comentários em letra diminuta, como que pronunciados entre dentes
pelo narrador, como espectador fora do contexto, em pensamento percuciente
aclarando ou justificando procedimentos, poetizando-os, ironizando-os, ou mesmo
introduzindo novos dados narrativos.
E a narração desse mundo passado,
justificativo do seu mundo presente, assim vai surgindo em episódios, que a
sensibilidade do narrador, feita de um misto de dorida revolta pela condenação
sem culpa, que criou dureza, e um amor absoluto pelo irmão, vai envolvendo na
poeticidade do seu discurso, também caricato, também de crítica, como disfarce
de sentimentos que não pretendem resvalar em pieguice, outras vezes de um
descritivo conciso, de beleza e precisão figurativa: ”Ponte da Telha é
uma farpa humana nas costelas do monte”. Mundo da infância, da
adolescência, com os pais e irmãs e o irmão mongolóide, a dor disfarçada em
sorrisos de muito amor, as conveniências da família por vezes sobrepondo-se,
como naquela semana passada na praia da Amália, tendo decidido que Miguel, que
usava fraldas, ficaria entregue à APPACDM (Associação Portuguesa de
Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental) e logo o arrependimento pairara,
uma das irmãs “não aguentou”, indo buscá-lo e levando-o consigo
para casa do namorado, telefonando a seguir:
«A
Inês telefonou-nos à noite. Tínhamos comido os percebes (apanhados pelo
pai, nas rochas) e eu estava com a cara às bolas por causa das alergias.
-
Fui buscá-lo e estou na quinta do Pedro. Não aguentei.
A
minha mãe sempre teve um jeito feliz de sorrir e disfarçar. Também ela, mais do
que qualquer um de nós, sentia remorsos.
-
Fez bem – respondeu.
-
Eu ouvia a voz de Inês por entre os inchaços e sabia que vinha aí coisa, mas
aquelas pústulas ardiam e eu estava desconsolado porque perdera a oportunidade
de assustar o meu irmão. Bastava mostrar-lhe a cara.
Depois
rebentou uma frase assim de passagem.
-
Hoje o Miguel foi sozinho à casa de banho pela primeira vez.
Ouvi
o clique a desligar. Era um telefone retro, daqueles de roda com números. A
minha mãe desligou-o com força.»
Um enredo carregado de episódios, que põem em destaque
actuações de uns e outros, episódios por vezes hilariantes, como aquele, da
adolescência, no rio Paiva, em que flutuavam nas suas bóias a mãe, Miguel e o
irmão/narrador - a mãe ora afastando-se de Miguel, ora aproximando-se dele para
lhe molhar a cabeça com carinho, o narrador vivendo os êxtases sensuais do
enredo do livro de Proust “À Sombra das Raparigas em Flor” - mas atentos
uns nos outros, em invisível elo protector. De repente, Miguel ia causando o
afogamento da mãe, a cuja bóia se agarrara, “na necessidade
animal de sobreviver” por ter perdido pé, e o irmão, em vez de acorrer
imediatamente aos gritos da mãe, foi pôr a salvo primeiro, na margem, o
livro das suas íntimas emoções, que não queria molhar. Os remorsos e a vergonha
descarregaram-se posteriormente em fúria contra o irmão, cujo susto se
manifestava no choro e no apelo lancinante a “Luciana”,
a sua amada: «A minha mãe (salva pelo marido),chegou por
fim à margem, retomando o sorriso de antes. Estendeu a mão húmida sobre a
cabeça do Miguel, deu-lhe um beijo na testa e subiu devagar até casa.»
Luciana! A menina feia e demente por quem Miguel se
apaixonara, na APPACDM, causa de rixas frequentes de Miguel com os companheiros
da escola, que lha disputavam ou não, mas de quem ela se servia para provocar tantas
vezes ciúmes no seu amado. Desde a adolescência, já antes de o irmão partir
para Lisboa, em busca de um mundo de maior realização do que naquele Porto em
que a casa se movia em torno de Miguel. Amor absoluto, causa das ingénuas
explosões de alegria de Miguel perante os pais, quando bem sucedido, e de
cólera animal, quando contrariado por Luciana. Amor que o tempo não destrói,
que terá o seu clímax, muito após a morte dos pais, na busca tresloucada do
narrador, pelas ruas do Porto, pelo irmão fugitivo, que ele encontrou
finalmente na espelunca onde haviam vivido Luciana e a mãe e de que resultará a
morte de Luciana, pela violência descontrolada do perseguidor, contrariado pelos
dois fugitivos em todas as suas propostas de solução.
Já então Miguel vivia com o irmão, ambos quarentões,
este último libertando as irmãs, casadas e mães, do encargo de Miguel, no
arrependimento por o ter abandonado quando jovem, indo estudar para Lisboa.
É no contexto da morte dos pais que surge a casa
do Tojal, comprada pelos pais, onde viviam nas férias, e que o narrador
compra às irmãs, aparente refúgio libertador dos pesos da vida, do trabalho e
da preocupação pelos problemas sentimentais do irmão, incapaz de compreender o
desaparecimento dos pais na sua vida. E de Luciana, “A Luciana”
que “era dele, Luciana” que “era ele.”: «Isto vai passar-se no Tojal. Ora o Tojal é
perto de Arouca e longe de tudo o resto.”
Um Tojal de isolamento e de toscas figuras de barbárie,
as dos caseiros, - a mulher – senhora Olinda - que acima de tudo
ama o filho doente – Quim- rapaz imbecil e mau, centrado em si e
nos seus ódios, com a habilidade única de saber conduzir o tractor – o marido
esquivo, somítico e infeliz, desprezado pela mulher – Aníbal. Uma
família boçal, vivendo da terra e para a terra, bichos imundos e solitários nos
sentimentos, mas afinal manhosos e ferinos nas relações com os “fidalgos” da
cidade, como é exemplo o diálogo entre as duas mães, em dada visita destes à
sua casa no Tojal: “A senhora Olinda costumava comparar o Miguel ao Quim,
dizendo à minha mãe “O meu filho hoje sente-se melhor. E o seu?” Comparava o
doente ao deficiente, o dependente ao dependente, mas a minha mãe sentia-se
constrangida porque comparar é admitir conceitos abstractos e o Miguel correspondia
a tudo menos a critérios predefinidos. O Miguel não era comparável ao Quim.
Porém a srª Olinda insistia “E o seu?” e a minha mãe ripostava: “O meu está
óptimo. É muito respeitado na área dele, dizem que é uma autoridade”. A senhora
Olinda não percebia a resposta, bebia o resto do vinho e retirava-se.»
«Ao meu pai bastava a vista para se consolar. Também
nunca lhe ocorrera comparar o Miguel ao Quim. Não se intrometia, limitava-se a
beber o copo de vinho até ao fim.»
Ao contrário, pois, de seu trisavô José Maria de
Eça de Queirós, o escritor crítico das burguesias endinheirada ou
intelectual, ou governativa, já esgotadas na graça mágica do
universo queirosiano, Afonso Reis Cabral, 25 anos precoces,
não repudia as figuras de uma ou mais realidades toscas, condizentes com um
sentido existencial de proximidade democrática, sem distinções sociais, que lhe
permitirão extravasar os seus dons de ironia e o seu sentido crítico. Tal irá
acontecer também com o universo demencial da APPACDM, nos descritivos
comportamentais dos deficientes e métodos de acompanhamento no seu habitat. Ou
mesmo, na apologia irónica do verbete, a que se dedicou em função dos seus
trabalhos enciclopédicos, verbetes que recordo igualmente dos meus tempos de estudo,
coisa que não utilizei, ao contrário de colegas meus, por achar monótono, mais
próprio de arquivistas, mas cuja aplicação hoje me parece visivelmente
generalizada em todos os centros de pesquisa.
Um livro, afinal, também de suspense, uma figura hedionda
tornando-se o centro da atenção de um pobre ser simpático e meigo, com o
síndrome de Down, menino protegido pelos pais e mais tarde pelo irmão que
acabará por matar – digamos sem querer, após a busca do irmão fugido - essa horrorosa e raquítica doente mental,
elo de separação de afectos, mulherzinha teimosa, polarizadora da paixão do seu
companheiro, e sobre a qual o narrador se lançará com sanha assassina, após ele
próprio ter sido zurzido pelos dois “amantes”. Ao levá-la ao hospital, com a
ajuda do irmão, suspeitando a sua morte e para se livrar de sarilhos policiais,
terá ocasião de a transportar, deixando o irmão fechado no carro, para os lados
de um vale, na serra do Valongo, onde a depositou “pequena, serena, quase bela”, numa cama de folhas secas, que arranjou para ela, quer
para maior comodidade, no caso de estar viva, quer em homenagem poética, em
caso da sua morte.
Miguel terá longa crise de raivas, apelos e acusações
de meses, igual a outras que teve antes. Mas a história terminará com os dois
irmãos apaziguados. E amigos, como sempre foram. No espaço de Tojal, prontos a
regressar ao seu apartamento, no Porto:
«O nevoeiro, mais forte sobre o rio, tapa-se sobre nós
numa mudança de vento. Não consigo ver o Miguel, ele que ainda agora estava à
minha frente. Estico o braço mas não o alcanço. Chamo-o e logo a mão dele agarra-se
à minha com força. Quer-me próximo porque tem medo do que o rodeia. Tal como
eu, também não vê no nevoeiro.
Regressamos lado a lado, devagar, tacteando. Perto do
caminho que sobe para nossa casa, estreito-o com força. Murmuro-lhe ao ouvido
«Miguel, não sei o que dizer», e ele responde “Não digas nada».
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