quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

O Humor de João Magueijo



Não sei por que carga de água, a minha irmã embirra com os ingleses e já há muito que me quer impingir o livro de João Magueijo, “Bifes mal passados”. Cá por mim, que os conheço sobretudo dos filmes, sempre os apreciei e nem sequer mostrei muito interesse pelos entusiasmos e risos da minha irmã, como o José Pacheco Pereira mais votada aos clássicos, que me ajudaram a reflectir, acrescentando dados às comunicações paternas da adolescência. Mas ultimamente li dois livros de jovens portugueses que ela me emprestou, no seu zelo fraterno pela minha actualização e pensei que, se gostei de “O meu irmão” de Afonso Reis Cabral e “Terra de Milagres”, de João Felgar, dois escritores jovens e portugueses, devia gostar do livro de João Magueijo, pois a minha irmã é pessoa de bom gosto, por muitos escrúpulos que eu sinta em penetrar na alcova de um povo que me habituei a admirar.
Realmente, foi um livro que me fez rir à gargalhada, não tanto pela substância das referências críticas assanhadas, como pela forma como conta, o próprio narrador/autor apresentando-se em tantas situações de penúria e ridículo, amplamente gozado pelos seus companheiros jovens, que as situações jocosas se impõem ao tom verrinoso dos ataques aos costumes e brios ingleses que os colocam num plano de igualdade perante aqueles de quem se julgam superiores.
Um livro bem estruturado, o de João Magueijo, de um discurso em amálgama de apartes, analepses, prolepses, comentários críticos ou de facécia oportuna, ele próprio referindo clássicos como Petrónio, em cujo “Satyricon” pôde colher tanto do desplante e licenciosidade para a sua sátira de costumes, que, apesar da má vontade antibritânica, não deixa de pôr em destaque o temperamento cordial e de aceitação serena dos ingleses, das mazelas ditadas pelo excesso de álcool ingerido – neste caso pelo narrador, em ocasional seguidismo do costume geral de se enfrascarem em álcool – o qual se coloca sempre na posição de humilhado e alvo de troça, no meio da folia arriscada dos companheiros, em situações picarescas cheias de graça. E o contraste surge, entre o clima e as praias do seu país soalheiro, e o clima brumoso e águas escassas e sujas dos rios ingleses, para a diversão dos habitantes. Mas a sanha no apontar de defeitos não esconde o reconhecimento dos valores de um povo ambicioso, corajoso e determinado, cuja arrogante superioridade se revela até na referência aos “do continente” de que parece não fazerem parte, no isolamento da sua ilha poderosa e avassaladora, desprezo que, de resto, o insular Alberto João Jardim copiou, com arreganho parecido, embora com menos motivo, em relação ao seu país.
Mas é com uma cena hilariante do capítulo 6 – «Gostos extremos» - que transcrevo do seu livro de episódios autobiográficos, que finalizo este apontamento:

«Na triste ocasião que vou narrar, andava eu de amores por certa menina, as figuras que um gajo faz nestas ocasiões, até o recreio em Inglaterra se lhe afigura romântico. O mui ordinário prosador romano Gaius Petronius, esse Quim Barreiros da Antiguidade, avisava-nos que a beleza e o senso comum raramente andam de mão dada, isto dizia ele há quase 2000 anos, Mariazinha deixa-me ir-te à cozinha. No meu caso, a procura da beleza levou-me à prática do rock climbing (escalada), para mal dos meus pecados, que são muitos e geralmente de baixa qualidade.
Ia um grupo numeroso, madrugáramos, dois de nós éramos estudiosos do Cosmos, o outro era um astrofísico que andava permanentemente com os neurónios atulhados de ecstasy e LSD, dizia que só assim conseguia fazer investigação científica, o rapaz fez carreira. E havia um tal de George que era nobre, e tinha um sorriso de semicolcheia, nariz à Cyrano de Bergerac e orelhas de abanico a condizer, fala-se muito de incestos na aristocracia britânica, de inbreeding, e de facto nota-se. A família do George tinha terras ali perto, ficaríamos numa mansão sua na segunda noite, ele ainda nos convidou para ir caçar raposas, mas mandaram-no calar com os direitos dos animais e mais coisas de bife.
A concluir ia um lunático a quem chamavam Pete, imagino que quem se arrisca por prazer a despenhar-se por uma falésia também não lhe faça mossa nenhuma fazer ultrapassagens milimétricas. Contaram-me que uma vez o Pete partiu os dois retrovisores numa única ultrapassagem, colhidos cada um pelo seu carro – pelo que ele ia a ultrapassar e pelo que vinha na direcção oposta – e tomando como amostra o que presenciámos nesse dia, esta história é credível. Enfim, ia já num grande sobressalto antes de começar a escalar rochedo acima, morre-se menos nas estradas de Portugal.

Para mim era um baptismo de fogo, nunca tinha feito alpinismo. Ensinaram-me nesse mesmo dia os rudimentos da arte em coisa de minutos, isto é fácil vais ver, e começaram eles por subir, tu vês os outros e imitas, não custa nada. Havia no nosso grupo dois italianos, que assim que chegaram as unhas às rochas exclamaram “Porco Dio!” e passaram o resto do dia sentados à parte, refastelados a fumar e a mandar bocas espirituosas, não percebi de imediato porquê.
Neste local de renome – Stanage, vem gente de todo o mundo – as escaladas são feitas em paredes de rocha de uns 10 a 30 metros de altura, que se estendem por centenas de metros em cada troço. A ideia é trepar da base até ao topo por várias rochas marcadas, com ou sem a ajuda de cordas, dependendo da habilidade de cada um, mas invariavelmente pode-se caminhar até lá acima por uma vereda, é tudo um jogo, podíamos estar dentro de um pavilhão desportivo.
Isto com uma pequena diferença. Ora porque é que os italianos blasfemaram tão pouco cristãmente e desopilaram dali com tanta sobranceria? Estamos no centro de Inglaterra e os rochedos estão gelados, até no Verão, e isto deu-se em Janeiro. Metemos os dedos nas fissuras onde nos podemos apoiar e parece que os mergulhámos em azoto líquido, que se vão estilhaçar como borracha congelada. E é neste estado que temos de nos içar, com dedos dormentes e insensíveis, começamos a subir e muito em breve fica tudo uma abstracção, um estado etéreo, estamos a escalar com braços que não existem, a puxar para cima um corpo que deixámos de sentir, ao menos se cairmos dói menos.
Chega a minha vez e começo a escalar atado a uma corda de segurança pendurada lá de cima, passada por arneses e freios, e quem a controla lá em baixo é “ela”, tens a minha vida nas mãos ó minha linda. E é também ela que vai gritando instruções, eu estou todo embevecido, nem processo bem a informação. Não só não faço ideia do que fazer, como sou incapaz de sentir o mundo material, sou um cubo de gelo chamado João. Subo um metro ou dois, aquilo no princípio nem é difícil, até que de repente acabam-se as brincadeiras; por cima de mim estava um pilar de rocha com uns dez metros de altura e por muito que esgravatasse e que a desgraçadinha lá de baixo me gritasse o que fazer, não estava a ver como alçar-me por aquilo acima.
Ao fim de um quarto de hora o pessoal do nosso grupo começa a perder a paciência, este gajo não se despacha, desata tudo a assobiar e a berrar coisas desagradáveis e francamente desnecessárias, tipo estes gajos portugueses não podem nem saem de cima, o espírito de Quim Barreiros está connosco. E tudo isto em frente dela: os enxovalhos que um homem tem de sofrer nesta vida!
Vou-me enregelando cada vez mais, deprimidíssimo, as instruções que ela me vai dando vão fazendo cada vez menos sentido. Até que de repente, não sei se pelas insinuações sexuais dos insultos, tive uma iluminação Em vez de fazer o que dizem, enrolo as pernas e os braços em volta do pilar, abraço bem a rocha, e com uma série de movimentos pélvicos começo a subir, apoiado ora nas pernas ora nos braços, tal e qual um macaco a trepar uma palmeira, ao que parece aquilo visto de baixo tinha um ar altamente obsceno, olha para o que lhe havia de dar, agora está a ter relações sexuais com um penedo, sai de cima que é melhor …….”

E o episódio caricato e perigoso continua, a lembrar que as aventuras de Fernão Mendes Pinto por terras da Ásia, tão absurdas de dificuldades e obstáculos, que deram origem à paródia com o seu nome – Fernão Mentes? Minto – podem muito bem ser verdadeiras, continuadas que foram por um corajoso e aventureiro português de agora, por muita galhofa que tenha sofrido pelos companheiros da escalada, de humilhação  idêntica às que aquele sofreu e que referiu na sua «Peregrinação».
Mas a seriedade retoma, no pormenor social implicando acerba crítica à desumanidade e vaidade inglesas, de interesse autoglorificador, sob a máscara do proteccionismo social:

«Há em Inglaterra um submundo de gente que vive “on the dole” (do subsídio de desemprego) e não faz outra coisa senão escalar com alucinogénios. Uma vez por semana vão à cidade angariar fundos e víveres, organizar o reabastecimento de droga, e o resto do tempo passam-no a escalar, acampados perto de rochedos, estão entre os melhores do um mundo. Basta ler artigos sobre esta gente nas revistas da especialidade, tipicamente elegias fúnebres a bacanos que se despenharam, dentro e fora do crânio.»…

Ao menos, o nosso subsídio é distribuído sem exigência de retribuição glorificadora nacional, esmoleres que somos, habituados a uma generosidade sem estímulos.

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