Não sei por que carga de água, a minha irmã embirra com
os ingleses e já há muito que me quer impingir o livro de João Magueijo, “Bifes
mal passados”. Cá por mim, que os conheço sobretudo dos filmes, sempre os
apreciei e nem sequer mostrei muito interesse pelos entusiasmos e risos da
minha irmã, como o José Pacheco Pereira mais votada aos clássicos, que me
ajudaram a reflectir, acrescentando dados às comunicações paternas da
adolescência. Mas ultimamente li dois livros de jovens portugueses que ela me
emprestou, no seu zelo fraterno pela minha actualização e pensei que, se gostei
de “O meu irmão” de Afonso Reis Cabral e “Terra de Milagres”, de João
Felgar, dois escritores jovens e portugueses, devia gostar do livro de João Magueijo,
pois a minha irmã é pessoa de bom gosto, por muitos escrúpulos que eu sinta em
penetrar na alcova de um povo que me habituei a admirar.
Realmente, foi um livro que me fez rir à gargalhada,
não tanto pela substância das referências críticas assanhadas, como pela forma
como conta, o próprio narrador/autor apresentando-se em tantas situações de
penúria e ridículo, amplamente gozado pelos seus companheiros jovens, que as
situações jocosas se impõem ao tom verrinoso dos ataques aos costumes e brios
ingleses que os colocam num plano de igualdade perante aqueles de quem se
julgam superiores.
Um livro bem estruturado, o de João Magueijo, de um
discurso em amálgama de apartes, analepses, prolepses, comentários críticos ou de
facécia oportuna, ele próprio referindo clássicos como Petrónio, em cujo “Satyricon”
pôde colher tanto do desplante e licenciosidade para a sua sátira de costumes,
que, apesar da má vontade antibritânica, não deixa de pôr em destaque o
temperamento cordial e de aceitação serena dos ingleses, das mazelas ditadas
pelo excesso de álcool ingerido – neste caso pelo narrador, em ocasional seguidismo
do costume geral de se enfrascarem em álcool – o qual se coloca sempre na
posição de humilhado e alvo de troça, no meio da folia arriscada dos
companheiros, em situações picarescas cheias de graça. E o contraste surge,
entre o clima e as praias do seu país soalheiro, e o clima brumoso e águas
escassas e sujas dos rios ingleses, para a diversão dos habitantes. Mas a sanha
no apontar de defeitos não esconde o reconhecimento dos valores de um povo
ambicioso, corajoso e determinado, cuja arrogante superioridade se revela até na
referência aos “do continente” de que parece não fazerem parte, no isolamento
da sua ilha poderosa e avassaladora, desprezo que, de resto, o insular Alberto João
Jardim copiou, com arreganho parecido, embora com menos motivo, em relação ao
seu país.
Mas é com uma cena hilariante do capítulo 6 – «Gostos
extremos» - que transcrevo do seu livro de episódios autobiográficos, que finalizo
este apontamento:
«Na triste ocasião que vou narrar, andava eu de amores
por certa menina, as figuras que um gajo faz nestas ocasiões, até o recreio em
Inglaterra se lhe afigura romântico. O mui
ordinário prosador romano Gaius Petronius, esse Quim Barreiros da
Antiguidade, avisava-nos que a beleza e o senso comum raramente andam de mão
dada, isto dizia ele há quase 2000 anos, Mariazinha deixa-me ir-te à cozinha.
No meu caso, a procura da beleza levou-me à prática do rock climbing
(escalada), para mal dos meus pecados, que são muitos e geralmente de baixa
qualidade.
Ia um grupo numeroso, madrugáramos, dois de nós éramos
estudiosos do Cosmos, o outro era um astrofísico que andava permanentemente com
os neurónios atulhados de ecstasy e LSD, dizia que só assim conseguia fazer
investigação científica, o rapaz fez carreira. E havia um tal de George que era
nobre, e tinha um sorriso de semicolcheia, nariz à Cyrano de Bergerac e orelhas
de abanico a condizer, fala-se muito de incestos na aristocracia britânica, de inbreeding, e de facto nota-se. A família do George
tinha terras ali perto, ficaríamos numa mansão sua na segunda noite, ele ainda
nos convidou para ir caçar raposas, mas mandaram-no calar com os direitos dos
animais e mais coisas de bife.
A concluir ia um lunático a quem chamavam Pete, imagino que quem se arrisca por prazer a
despenhar-se por uma falésia também não lhe faça mossa nenhuma fazer ultrapassagens
milimétricas. Contaram-me que uma vez o Pete partiu os dois retrovisores numa
única ultrapassagem, colhidos cada um pelo seu carro – pelo que ele ia a
ultrapassar e pelo que vinha na direcção oposta – e tomando como amostra o que
presenciámos nesse dia, esta história é credível. Enfim, ia já num grande sobressalto
antes de começar a escalar rochedo acima, morre-se menos nas estradas de
Portugal.
Para mim era um baptismo de fogo, nunca tinha feito
alpinismo. Ensinaram-me nesse mesmo dia os rudimentos da arte em coisa de
minutos, isto é fácil vais ver, e começaram eles por subir, tu vês os outros e
imitas, não custa nada. Havia no nosso grupo dois italianos, que assim que chegaram
as unhas às rochas exclamaram “Porco
Dio!” e passaram o resto do dia sentados à parte, refastelados a fumar e a mandar
bocas espirituosas, não percebi de imediato porquê.
Neste local de renome – Stanage, vem gente de todo o
mundo – as escaladas são feitas em paredes de rocha de uns 10 a 30 metros de
altura, que se estendem por centenas de metros em cada troço. A ideia é trepar
da base até ao topo por várias rochas marcadas, com ou sem a ajuda de cordas,
dependendo da habilidade de cada um, mas invariavelmente pode-se caminhar até
lá acima por uma vereda, é tudo um jogo, podíamos estar dentro de um pavilhão
desportivo.
Isto com uma pequena diferença. Ora porque é que os
italianos blasfemaram tão pouco cristãmente e desopilaram dali com tanta
sobranceria? Estamos no centro de Inglaterra e os rochedos estão gelados, até
no Verão, e isto deu-se em Janeiro. Metemos os dedos nas fissuras onde nos
podemos apoiar e parece que os mergulhámos em azoto líquido, que se vão
estilhaçar como borracha congelada. E é neste estado que temos de nos içar, com
dedos dormentes e insensíveis, começamos a subir e muito em breve fica tudo uma
abstracção, um estado etéreo, estamos a escalar com braços que não existem, a
puxar para cima um corpo que deixámos de sentir, ao menos se cairmos dói menos.
Chega a minha vez e começo a escalar atado a uma corda
de segurança pendurada lá de cima, passada por arneses e freios, e quem a
controla lá em baixo é “ela”, tens a minha vida nas mãos ó minha linda. E é também
ela que vai gritando instruções, eu estou todo embevecido, nem processo bem a
informação. Não só não faço ideia do que fazer, como sou incapaz de sentir o
mundo material, sou um cubo de gelo chamado João. Subo um metro ou dois, aquilo
no princípio nem é difícil, até que de repente acabam-se as brincadeiras; por
cima de mim estava um pilar de rocha com uns dez metros de altura e por muito
que esgravatasse e que a desgraçadinha lá de baixo me gritasse o que fazer, não
estava a ver como alçar-me por aquilo acima.
Ao fim de um quarto de hora o pessoal do nosso grupo
começa a perder a paciência, este gajo não se despacha, desata tudo a assobiar
e a berrar coisas desagradáveis e francamente desnecessárias, tipo estes gajos
portugueses não podem nem saem de cima, o espírito de Quim Barreiros está
connosco. E tudo isto em frente dela: os enxovalhos que um homem tem de sofrer
nesta vida!
Vou-me enregelando cada vez mais, deprimidíssimo, as
instruções que ela me vai dando vão fazendo cada vez menos sentido. Até que de
repente, não sei se pelas insinuações sexuais dos insultos, tive uma iluminação
Em vez de fazer o que dizem, enrolo as pernas e os braços em volta do pilar,
abraço bem a rocha, e com uma série de movimentos pélvicos começo a subir,
apoiado ora nas pernas ora nos braços, tal e qual um macaco a trepar uma
palmeira, ao que parece aquilo visto de baixo tinha um ar altamente obsceno, olha
para o que lhe havia de dar, agora está a ter relações sexuais com um penedo,
sai de cima que é melhor …….”
E o episódio caricato e perigoso continua, a lembrar
que as aventuras de Fernão Mendes Pinto por terras da Ásia, tão absurdas de
dificuldades e obstáculos, que deram origem à paródia com o seu nome – Fernão
Mentes? Minto – podem muito bem ser verdadeiras, continuadas que foram por um
corajoso e aventureiro português de agora, por muita galhofa que tenha sofrido
pelos companheiros da escalada, de humilhação
idêntica às que aquele sofreu e que referiu na sua «Peregrinação».
Mas a seriedade retoma, no pormenor social implicando
acerba crítica à desumanidade e vaidade inglesas, de interesse autoglorificador,
sob a máscara do proteccionismo social:
«Há em Inglaterra um submundo de gente que vive “on the dole” (do subsídio de desemprego) e não faz outra
coisa senão escalar com alucinogénios. Uma vez por semana vão à cidade angariar
fundos e víveres, organizar o reabastecimento de droga, e o resto do tempo
passam-no a escalar, acampados perto de rochedos, estão entre os melhores do um
mundo. Basta ler artigos sobre esta gente nas revistas da especialidade,
tipicamente elegias fúnebres a bacanos que se despenharam, dentro e fora do
crânio.»…
Ao menos, o nosso subsídio é distribuído sem exigência
de retribuição glorificadora nacional, esmoleres que somos, habituados a uma
generosidade sem estímulos.
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