quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

«O Sol é grande»



A questão da velhice como algo irrecuperável no Homem, ao contrário da natureza que rejuvenesce em cada ano, já muitos o apontaram na desolação do sentimento do efémero, mas Vasco Pulido Valente justifica-o numa reflexão de impaciência e azedume contra uma sociedade de hipocrisia e demérito de actuação, no calor das suas efusões e contrassensos que não correspondem ao equilíbrio e racionalidade em que aparentemente viveu antes.
Direi que isso que ele sente, o sentem muitos, novos e velhos, pela desmesura mentecapta e  sensacionalista, perfidamente intriguista e manipuladora de opiniões de que a televisão portuguesa faz gala, quer nas explosões televisivas de certos acontecimentos, quer na exploração frequente das sensibilidades populares, quer no excesso encomiástico do herói nacional, quer na referência prolongada aos casos melodramáticos do quotidiano, quer na exposição abrutalhada de comezainas ou músicas ou danças populares, paradigmas da uma cultura de espalhafato e penúria mental. Pulido Valente o resume magistralmente, quer seja por motivos de envelhecimento, quer de enriquecimento racional imparável, quer, enfim, de distanciamento caprichoso e certeiro ao “indígena”. «Envelhecer» é o título do seu artigo do “Público”, de 8/2/15, onde sintetiza os sete primeiros casos do seu exaspero. Do seu desespero:

«Envelhecer»
«Crescentemente, quando vejo televisão (sobretudo os noticiários), este Portugal onde nasci e, mal ou bem, vivi setenta anos, me parece um sítio desconhecido e hostil, em que não posso continuar. Os velhos são assim e já Chateaubriand dizia: é muito duro envelhecer, mesmo se o mundo à nossa volta não muda ou muda pouco, mas muito mais duro é envelhecer num mundo que mudou. Precisava de um livro para explicar o que me irrita neste país novo da crise e da miséria e, como não tenho força e paciência para começar um livro, resolvi ir escrevendo sobre as coisas que me exasperam mais. Por exemplo:
1. A desvergonha com que a esquerda usa a desgraça dos portugueses como argumento político. Desemprego, impostos, salários ou, no dia-a-dia, urgências que não funcionam, o remédio para a hepatite C que não há, outro desconto ou proibição – tudo serve, não se percebe como, para demonstrar a enorme virtude do PS e a imensa maldade do governo. Nós bem fugimos desta ladainha. Só que ela nunca pára e não nos larga.
2. A multidão de salvadores da Pátria, que prometem o céu e que entretanto se juntam e separam, avançam e recuam, como se andassem num jogo de possessos sem sentido e sem fim. E que berram e se esgadanham por esses debates, despejando lugares-comuns com uma estranha importância e uma grande satisfação.
3. A maneira como o jornalismo gira à volta do desastre, do crime e da pequena história de “interesse humano”, numa altura em que Portugal e a Europa se desfazem.
4. A obsessão incrível e paradoxal com restaurantes, que abrem às centenas (apesar do IVA) e que se pretendem sempre pioneiros de uma especial cozinha ou de uma extraordinária ideia; e que têm na cave vinhos sem igual. Quem lá vai? A classe média que se destruiu, os banqueiros que faliram, os corruptos mascarados que esperam a sua hora?
5. A obsessão geral com o espectáculo; com qualquer sítio onde se juntam milhares de bípedes, saltando e pulando e muitas vezes guinchando, para seu contentamento e nossa aflição. Os “festivais” da carne, da fruta, do queijo, do enchido, do mexilhão, do doce regional ou nacional, da primeira coisa que dê para armar a tenda e ganhar uns tostões.
6. A futilidade da conversa sobre a economia, como se por aqui ainda não se percebesse que a economia não é uma ciência, é um capítulo da política.
7. A inferioridade que revela o culto de Ronaldo – nome obrigatoriamente precedido por o “melhor do mundo” – e o de uma dúzia de personagens menores que se tornaram “os melhores” de qualquer coisa ínfima ou gratuita.

Pedro Abrunhosa, por outros motivos, explodiria num “Não posso mais viver assim” de sensualidade primária embrulhada em expressivo ritmo e interpretação modernos. Vasco Pulido Valente merece-me, como homenagem de paralelo, no pessimismo e agudeza de engenho, o extraordinário soneto de Sá de Miranda:

O sol é grande, caem co’a calma as aves,
do tempo em tal sazão, que sói ser fria;
esta água que d’alto cai acordar-m’-ia
do sono não, mas de cuidados graves.
Ó cousas, todas vãs, todas “mudaves”,
qual é tal coração que em vós confia?
Passam os tempos vai dia trás dia,
incertos muito mais que ao vento as naves.
Eu vira já aqui sombras, vira flores,
vi tantas águas, vi tanta verdura,
as aves todas cantavam d’amores.
Tudo é seco e mudo; e, de mistura,
também mudando-me eu fiz doutras cores:
e tudo o mais renova, isto é sem cura!

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