Dois artigos saídos no Público sobre
Cavaco Silva: um de Opinião, de Vasco Pulido Valente, de 1/4/13,
tendo por título “Voto de não-confiança” e outro de 5/2, sob a rubrica “O
respeitinho não é bonito”, intitulado “Cavaco e a filosofia da linguagem”,
de João Miguel Tavares.
O primeiro expõe, com conhecimento
psicológico (e historiográfico, próprio de quem muito leu de meandros
mobilizadores nas decisões dos responsáveis pela evolução pátria), um dislate de
Cavaco Silva, envolvido nas artimanhas de Ricardo Salgado, ainda à solta, por
ter pago alta caução, procurando todos os argumentos que lhe retirem a si parte
da culpa, incriminando os dos meandros habituais da política de acossamento que nos
acompanha. Coelho e Portas não se escusarão a integrar mais um exame de uma embrulhada que
o não será para eles, ainda jovens e suficientemente aptos a defender-se,
conscientes do seu trabalho real no país que muitos Salgados enrascaram. Mas
Cavaco Silva, vaidoso, ansioso de um protagonismo de meia tigela, “perdeu uma
boa ocasião de ficar calado”, aquilo a que, de maneira tosca, se depreende do sério
artigo de Vasco Pulido Valente.
Realmente, com as suas justificações
entarameladas merece a crítica e o desdém das pessoas de alto gabarito
intelectual, os tais da intelligentzia de bom tom que defende a igualdade, a liberdade,
a não exploração, e não perdoam àqueles que, não tendo tanta perspicácia
ideológica, permanecem, todavia, de pedra e cal no seu posto, apesar da
gritaria em seu redor. Ajudando, julgo, os que se empenham numa governação de
esforço sem demagogia, para salvar uma pátria de atropelo.
Recordando outros presidentes, e
especialmente o Dr. Mário Soares, cujos discursos se esgotavam na referência à
liberdade conquistada, não compreendo muito bem, todavia, a ferocidade de Pulido Valente
para com Cavaco Silva, a quem não desculpa a tacanhez intelectual de Presidente,
apesar de uma política ministerial que lhe valeu, a seu tempo, um neologismo diferenciador
- o cavaquismo – tal como outrora haviam surgido o fontismo, o franquismo,
precedidos do eterno sebastianismo. Agora, Presidente sem poder, mas ainda no
poder, lembra o leão envelhecido da fábula, sujeito aos coices, dentadas ou
cornadas daqueles de que fora rei.
O artigo de João Miguel Tavares é
mais esfuziante de graça leve, tomando as declarações ambíguas ou fugidias de
Cavaco como forma de brincar com a linguagem e os seus estudos linguísticos que
finalmente pôde aplicar, mostrando como se pode ter razão sempre naquilo que se
diz ou não se diz de facto, e afirmar, assim, a duplicidade - a esperteza
saloia no pensamento de Pulido Valente – do Presidente Cavaco Silva.
O artigo de Vasco Pulido Valente:
Opinião
Voto de não-confiança
«O dr. Ricardo Salgado resolveu envolver o
Presidente da República, o primeiro- ministro e o vice primeiro-ministro na
suspeita e obscura falência do banco e do grupo Espírito Santo; e numa carta à
comissão parlamentar de inquérito anunciou que tinha falado com os três muito
antes do desastre se consumar. A manobra é inteligente. Sozinho e ainda à solta
(por uma caução de milhões de euros) Ricardo Salgado precisa de “politizar” as
coisas para turvar o caso ou, pelo menos, para reduzir a sua responsabilidade
nesta infecta história. A simples revelação de que se encontrou com os mais
poderosos representantes do Estado (sem revelar o que disse e o que lhe
disseram), insinua uma cumplicidade que provavelmente nunca existiu, mas que,
mesmo em hipótese, lhe fornece um saco de justificações.
Para sorte dele, o dr. Cavaco reagiu com uma
declaração embrulhada e comprometedora. Nada o impedia de reconhecer que vira
Salgado e de lembrar cordatamente o seu dever de reserva. Com alguma parcimónia
e gravidade, encerrava o assunto. Mas Cavaco, que sempre foi vingativo e
provinciano, não ficou pela solução mais lógica e acrescentou muito excitado
que nunca comentara a situação do BES, tinha citado simplesmente a opinião do
Banco de Portugal sobre o BES – o resto era “mentira”. Ora, como o país logo
concluiu, o Presidente da República não citaria a opinião do Banco, se não
concordasse com ela. E, como o Banco se enganara, isto levou à ruína uns
milhares de accionistas e depositantes do BES, que acreditavam na autoridade e
no bom senso do dr. Cavaco.
A memória dos portugueses não é famosa e ninguém se
lembrou do célebre episódio do “gato por lebre”, que inaugurou a carreira do
homem. Só a esquerda, que o odeia com uma intensidade assustadora, ferrou o
dente naquela miserável trapalhada e não a deixará tão cedo. E com razão. O dr.
Cavaco exibe a cada passo, até nos mais pequenos pormenores, a sua incapacidade
para o cargo em que infelizmente o puseram. Este incidente não é uma gaffe
inócua e desculpável, é uma intervenção profunda na vida material do país,
agravada por uma fuga desordenada à franqueza e à verdade política. O sr.
Presidente da República devia daqui em diante observar um silêncio penitente e
total, com o fim meritório de não assanhar a crise que ele consentiu e em parte
criou. Não merece a nossa confiança.»
O artigo de João Miguel Tavares:
Cavaco e a filosofia da linguagem
05/02/2015
«Cavaco
Silva, a 21 de Julho de 2014, na Coreia do Sul: “O Banco de Portugal tem sido
peremptório, categórico, a afirmar que os portugueses podem confiar no Banco
Espírito Santo, dado que as folgas de capital são mais do que suficientes para
cobrir a exposição que o banco tem à parte não financeira, mesmo na situação
mais adversa. E eu, de acordo com a informação que tenho do próprio Banco de
Portugal, considero que a actuação do banco e do governador tem sido muito,
muito correcta.”
Cavaco
Silva, a 30 de Janeiro de 2015: “Eu já reparei que alguns dos senhores, e
também alguns políticos, disseram e escreveram que o Presidente da República
fez alguma declaração sobre o BES. É mentira. É mentira! Alguns invocam uma
declaração que eu fiz na Coreia. Na Coreia, eu fiz três afirmações sobre o
Banco de Portugal. E mais nada.”
Ora
bem: perante estas duas declarações do senhor Presidente, há quem
apressadamente aponte o dedo ao seu carácter esquivo e o acuse de se estar a
contradizer em relação ao BES, sobretudo após Ricardo Salgado nos ter informado
que se reuniu duas vezes em 2014 com Cavaco Silva, a última das quais a 6 de
Maio, escassas três semanas antes do início do famoso aumento de capital do
BES. Pessoas mal-intencionadas olham para isto e desconfiam que Cavaco sabe
mais do que diz e se está outra vez a fazer passar por sonso.
Eu, pelo contrário, agradeço ao Presidente da República esta magnífica oportunidade para pôr em prática as centenas de horas de filosofia da linguagem que tive de digerir ao longo da universidade, e que nunca me tinham servido para nada. Até agora. Porque, de facto, há aqui um duplo problema de compreensão das palavras do senhor Presidente, certamente causado pelo pouco à-vontade da população portuguesa com a obra de Saussure, Wittgenstein, Austin ou Ricoeur, que há muito nos alerta para os escolhos na relação entre linguagem e realidade.
Eu, pelo contrário, agradeço ao Presidente da República esta magnífica oportunidade para pôr em prática as centenas de horas de filosofia da linguagem que tive de digerir ao longo da universidade, e que nunca me tinham servido para nada. Até agora. Porque, de facto, há aqui um duplo problema de compreensão das palavras do senhor Presidente, certamente causado pelo pouco à-vontade da população portuguesa com a obra de Saussure, Wittgenstein, Austin ou Ricoeur, que há muito nos alerta para os escolhos na relação entre linguagem e realidade.
O
primeiro problema do conflito de interpretações Cavaco/povo português é lógico.
Efectivamente, da conjugação das frases “O Banco de Portugal disse-me que o BES
está porreiro” e “O Banco de Portugal é bestial” não resulta necessariamente a
conclusão “O BES está porreiro”, na medida em que existe sempre uma hipótese de
o Banco de Portugal poder enganar-se e continuar bestial. O segundo problema
é performativo. Por trágico desconhecimento da Teoria dos Actos da Fala de
John Austin, o povo confundiu o acto ilocucionário (uma certa ênfase na
solidez do BES) com o acto perlocucionário (um convite para continuar a
investir no banco e não ir a correr vender as acções). É um erro lamentável. Razão
tem Nuno Crato: numa sociedade com tantas fragilidades educativas, não só não
vamos a lado algum como corremos o sério risco de nunca compreender o
Presidente da República.
A
ver se percebem este raciocínio de uma vez por todas. Se um dia se descobrir
que o Homem nunca foi à Lua, e os jornalistas pedirem um comentário a Cavaco,
ele dirá: “Eu já reparei que alguns dos senhores disseram e escreveram que o
Presidente da República fez declarações sobre a ida do Homem à Lua. É mentira.
É mentira! Eu nunca disse que o Homem foi à Lua. O que eu disse é que tinha
visto na RTP o Homem a ir à Lua. As declarações eram sobre a RTP. Não sobre o
Homem, e muito menos sobre a Lua. E mais nada.” Querem saber como alguém
raramente se engana e nunca tem dúvidas? É fácil: basta tornar-se um filósofo
da linguagem.»
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