Mais uma vez, a Grécia e os camaradas europeus do
Syriza, no caso português, mais por ódio ao Governo do que amor pelos gregos ou
pela Grécia. De tudo se aproveitam os que gostariam de ser um Syriza vitorioso
cá, e até mesmo os egrégios do rancor, que apontam o dedo de expulsão aos que
usaram, no seu país, um percurso de maior virilidade do que a que eles
manifestam agora, só votados ao enternecimento e pieguice enramelados, que as
cãs por vezes trazem, embora embrulhados em intenção cínica. João Miguel
Tavares conta-o com clareza, em argumentos lógicos, que tanto desmistificam
essas intenções como censuram a infantilização de alguns países em dívida,
preparando-se para continuar a comer da gamela alheia, sem intenção de se
ressarcir, comodamente instalados num posicionamento de aventureirismo
parasita, irresponsável e atrevido.
Eis os artigos de João Miguel Tavares, saídos
no Público, respectivamente em 17 e 19 de Fevereiro, onde, corajosamente,
defende um parecer oposto, valorizando, nessa questãs, a acção do nosso Governo:
Repitam, sff: nós não somos a
Grécia
17/02/2015
Desde
o início da crise que Portugal fez um enorme esforço para se afastar da Grécia
e se aproximar da Irlanda no campeonato dos países intervencionados.
Para
os mais desmemoriados, recordo que esse esforço é anterior ao actual Governo:
há bastas declarações de José Sócrates em 2010 sublinhando que as situações da
Grécia e de Portugal são “incomparáveis”. O mantra do Governo ao longo dos
últimos cinco anos foi “nós não somos os gregos”, e esse mantra pegou e pagou:
Portugal e a Irlanda concluíram com êxito o programa de intervenção, enquanto a
Grécia continua a coleccionar pacotes de austeridade.
Mas
como há por aí muita gente que não gosta que a realidade se intrometa no meio
das suas convicções, boa parte dos dinamizadores do famoso Manifesto dos 74 –
de Bagão Félix a Pacheco Pereira, de Freitas do Amaral a Carvalho da Silva, de
Ferro Rodrigues a Francisco Louçã – decidiu voltar a juntar-se para mais um
espectacular abaixo-assinado, desta vez aconselhando a pátria a ser mais
solidária com a Grécia. Portugal anda há cinco anos a tentar fugir desse barco
– os 74 insistem em empurrar-nos lá para dentro. Como gesto patriótico, diria
que é coxo e desinteligente, mas a verdade é que estamos a falar das mesmas
pessoas que em Março de 2014 – dois meses antes do final do programa de
ajustamento – acharam que era a altura ideal para informar o mundo de que a
dívida pública portuguesa era insustentável e teria de ser reestruturada.
O
problema de boa parte dos referidos signatários é que o seu ódio ao Governo é
ligeiramente superior ao seu amor a Portugal – e por isso insistem
numa colagem política que dá imenso jeito às suas teses, mas não dá jeito algum
ao país, sobretudo numa altura em que a possibilidade de a Grécia sair do euro
é uma hipótese que ganha cada vez mais força. Basta, aliás, ler os jornais para
verificar que a Irlanda está a criticar os gregos e a estratégia do Syriza com
a mesma intensidade que Portugal. É evidente que os países que foram
intervencionados, e cujas contas públicas ainda se encontram fragilizadas, têm
todo o interesse em aumentar o fosso que os separa da Grécia – não em
diminuí-lo. A razão é absolutamente óbvia: se a Grécia sair do euro, eles
não querem ser os próximos.
Só
mesmo quem acha que a dupla Tsipras/Varoufakis são o Astérix e Obélix da nova
Europa, resistindo hoje e sempre ao invasor, é que pode defender que a
solidariedade para com a Grécia é uma obrigação moral, que trará de caminho
grandes vantagens políticas. No entanto, para quem não acredita que
Varoufakis tenha um cantil com poção mágica escondido debaixo do casaco de
cabedal – como é o meu caso e parece ser também o caso do Governo e do
Presidente da República –, a conversa da solidariedade é muito pouco
persuasiva. Solidário com quê? Com as políticas do Syriza? Não contem comigo.
Com o sofrimento do povo grego? Bom, então se é de crises humanitárias que
estamos a falar, e tendo em conta que o PIB per capita grego é idêntico ao
português, diria que o Sudão, a Nigéria ou a Síria merecem mais atenção do que
a Grécia. O que me parece ridículo, de qualquer modo, é esperar que um Governo
que durante anos procurou afastar-se da Grécia, mesmo quando ela era dirigida
por um partido de centro-direita, venha agora saltar para os braços do Syriza
só porque Atenas engrossou a voz. Não, senhores: Passos Coelho já cometeu
muitos erros políticos, mas manter os gregos ao longe não é certamente um
deles.
A infantilização de um país
19/02/2015
- 06:27
Os
defensores do Syriza costumam criticar fervorosamente a proliferação daquilo a
que eles chamam “caricaturas da Grécia”: as cabeleireiras e os trombonistas que
se reformam aos 53 anos porque a sua profissão é considerada “árdua e
insalubre”; os 45 jardineiros contratados por um hospital público para tomar
conta de meia dúzia de árvores; o Instituto para a Protecção do Lago Kopais,
seco desde 1930; ou, para citar a famosa peça de José Rodrigues dos Santos para
a RTP, os falsos paralíticos que se passeiam a pé diante da casa do ex-ministro
da Defesa grego para “receber mais um subsidiozinho”.
Ora,
eu não duvido por um momento que estes coloridos exemplos possam contribuir
para formar um retrato simplista da Grécia, certamente injusto para muitos
gregos trabalhadores. Só que o inverso é igualmente verdadeiro: o Syriza e a
sua vasta trupe de admiradores utilizam a mesma demagogia para criticar a
posição alemã, colocando bigodinhos em Merkel, recuperando histórias de uma
guerra que acabou há 70 anos e considerando a Alemanha a grande vilã da crise –
como se ela fosse a encarnação da bruxa má da floresta, que atraiu os pobres
gregos para a sua casa de chocolate, para poder aí praticar as maiores
malfeitorias.
De
facto, entre os mais impressionantes resultados da crise está esta espécie de
infantilização dos países em dificuldades: não há políticas historicamente
erradas, nem governos responsáveis pelo endividamento excessivo, nem
eleitorados que tenham dado os seus votos a maus partidos – há apenas pobres
vítimas de tenebrosos esquemas neoliberais. Para quê darmo-nos ao trabalho de
assumir os erros, se podemos inventar tão bonitas teorias da conspiração? Para
a esquerda europeia pró-Syriza, é como se a Alemanha e os seus bancos andassem
a preparar um assalto aos países da periferia desde tempos imemoriais.
E,
no entanto, basta pesquisar um pouco para encontrarmos as incoerências dessa
tese. Notícia de Junho de 2011: “60% dos alemães consideram que o país tem de
ajudar a Grécia a recuperar da crise de dívida soberana em que se encontra,
gostando ou não.” Isto foi escrito há três anos e meio. Ou seja, já houve uma
época em que a Alemanha defendeu a solidariedade para com os gregos.
Simplesmente, essa confiança foi-se esfarelando com as sucessivas falhas nos
pacotes de reformas. O esquematismo do grego mandrião e o simplismo de tantas
abordagens em relação aos PIIGS é, em boa medida, uma consequência das
dificuldades na implementação dos programas da troika. Não é bonito. Mas é compreensível.
Infelizmente,
há uma abordagem da crise, muito popular, que é de tal forma desresponsabilizadora
que convida às mais tristes simplificações. Certas analogias à esquerda são de
molde a assustar qualquer um – ainda ontem, neste mesmo espaço, Rui Tavares ia
buscar Versailles e o pós-Primeira Guerra Mundial para falar da reunião do
Eurogrupo. E eu pergunto: mas houve alguma guerra na Grécia nos últimos anos de
que não tivemos conhecimento? O seu défice deve-se a alguma sucessão de
calamidades? Senhores: a Alemanha foi arrasada na década de 40, reunificada na
década de 90, não tem petróleo e é o motor económico da Europa. Se não queremos
ser caricaturados e simplificados, seja na Grécia ou em Portugal, convinha
começar por acabar de vez com um discurso de tal forma desculpabilizador que
nos transforma a todos em cidadãos inimputáveis. Se é esse o caminho único para
a salvação da Europa, por favor, deixem-me circular em
contramão.
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