quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Tempo de palavras cruzadas



Nem todas as propostas da tal PAAC foram charadas difíceis, até me senti de bem comigo, porque me pareceu ter acertado em algumas, em pouco tempo, como demonstrei, em alarido de satisfação, no domingo, no café das 10 horas, à minha irmã e à minha/nossa amiga, (aliás mais dela – da minha irmã – do que minha, o que já em tempos esclareci, com direitos de prioridade antiga, zambeziana por excelência e saudosismo, cujas memórias as fotos a branco e preto ajudam, por vezes, a recuperar.
A charada, por exemplo, que segue, item nº 5 da prova, era de caras, e só podia ter como resposta a alínea D, como revelei, com prazer lúdico, à mesa, sobre um guardanapo da casa e a caneta em acção:

«Item 5- A Júlia saiu de casa para visitar uma amiga: andou 1 km para oeste, 500 m para noroeste, 300 m para oeste, 500 m para sudeste e, por último, 1 km para sul. Para voltar a casa pelo mesmo caminho, a Júlia necessita de andar:
(A) 1 km para sul, 500 m para sudoeste, 300 m para oeste, 500 m para nordeste e 1 km para oeste. (B) 1 km para sul, 500 m para sudeste, 300 m para oeste, 500 m para noroeste e 1 km para oeste. (C) 1 km para norte, 500 m para nordeste, 300 m para este, 500 m para sudoeste e 1 km para este. (D)1 km para norte, 500 m para noroeste, 300 m para este, 500 m para sudeste e 1 km para este.»

Outra proposta foi a dos feijões, justificativos da crise com que nos debatemos, embora com excepções de vulto:

Itens 11 e 12
«A Ana, o João, a Patrícia e o Miguel vão jogar o «Jogo dos feijões». Cada jogador começa com o mesmo número de feijões. Durante o jogo, cada jogador pode perder ou ganhar feijões. O vencedor é aquele que, no final do jogo, tem mais feijões. No final do jogo, apurou-se o seguinte: o João tem o maior número de feijões; a Ana tem o dobro dos feijões do Miguel; a Patrícia tem metade dos feijões do Miguel.
11.
Qual foi o jogador que ficou em terceiro lugar neste jogo? (A)Patrícia (B)Ana (C)Miguel (D)João»

A mim deu-me , o João em 1º lugar, naturalmente, em 2º, a Ana, em 3º o Miguel e em 4º lugar a pobre da Patrícia, sendo a alínea C) Miguel, a minha resposta.

12.
«Qual das opções contém a expressão e o número que completam corretamente a frase seguinte?
Se a Patrícia ficou com 4 feijões no final deste jogo, pode afirmar-se que o João terá ficado,

/(A) exatamente; 16  - (B)exatamente; 17 - (C)no mínimo; 17 - (D) no mínimo; 16/

Respondi: (C )    No mínimo       com      17     feijões.

Pareceram-me de caras, mais, no entanto, a dos feijões, habituada que estou a usá-los na sopa (especialmente os da lata, do agrado do Bruno), ou no cozido à portuguesa, secos, que ponho de molho, antes. Mas embirrei com a dos aviões: charada maçuda, comprida, remexida como o rabo do lagarto do rabo cortado, que é rabo para aquém do lagarto: remexidamente, o que nos assusta e desgosta. Para mais, um enunciado pretensioso e mastigado, próprio apenas para quem conheça os aviões por dentro, o que não julgo que seja coisa comum, pelo menos entre os professores com poucos anos de curso, salvo se pertenceram ao Processo de Bolonha.
Eis a charada dos aviões, de que resultaram as explosões de descortesia da minha amiga, que muito deplorei, cortês que sou, embora a minha irmã também alinhasse na crítica, até porque já lera o artigo do Vasco Pulido Valente – “A estupidez à solta”, saído no Público de 30/1, com que Pulido Valente reiniciou a sua actividade, após um estranho interregno, que nos afundou em escuridão.
Mais parece, a dos aviões, romance neo-realista de outros tempos, comprovativo dos desníveis sociais ainda existentes, com diferenciação nos espaços para as pernas, incompreensíveis numa democracia de igualdade de direitos, que se conquistou em espalhafato festivaleiro, não merecedora de tais discrepâncias actuais em relação às pernas e à dimensão dos espaços sentados:

«Itens 8 a 10:
Uma companhia aérea transporta passageiros em classe económica e em classe executiva. As filas de A a C, com dois assentos de cada lado do corredor central, pertencem à classe executiva. A classe económica é composta pelas filas de D a M. De um lado do corredor, cada uma destas filas tem dois assentos. Do outro lado do corredor, cada fila tem três assentos, com exceção das filas G, H e I, que não existem nesse lado do corredor. Existem quatro saídas de emergência, duas sobre as asas, entre as filas J e K, e duas no topo da classe executiva, antes da fila A. Com esta disposição, os passageiros sentados nas filas D e K têm mais espaço para as pernas do que os restantes passageiros que viajam em classe económica. Todos os lugares em classe executiva têm mais espaço para as pernas. Os preços dos lugares variam de acordo com o voo e a classe pretendida.
8.
Num determinado voo, a classe executiva está completa e cada bilhete custou 300 euros. Dos lugares em classe económica, apenas seis ficaram por vender e cada bilhete custou 200 euros.
Qual é a receita deste voo?
(A)   11 800 € ; (B)10 600 €; (C) 10 000 €; (D) 8 800 €»

Fascinada com a questão dos espaços para as pernas, naturalmente em pânico de claustrofobia, nem me dei ao trabalho de tentar resolver, para mais baralhada com a distribuição das cadeiras e das pernas, que nem Hercule Poirot se daria ao cuidado de decifrar. Mas o problema continuou, com o alarde próprio de quem costuma singrar nos ares, tal como fizeram outrora os nossos antepassados nos mares, embora com muito mais incomodidades do que essas das pernas, coitados:

«9.
Em classe económica, os apoios de braços entre as cadeiras podem ser levantados, exceto nos lugares com mais espaço para as pernas. Quando o voo não está cheio e as condições atmosféricas são favoráveis, é permitido levantar estes apoios e esticar as pernas sobre duas ou três cadeiras. No máximo, quantos passageiros poderão usufruir desta vantagem?
(A)   Dezassete; (B) Treze; (C) Oito; (D) Quinze»

Todavia, acho execranda essa possibilidade de esticar as pernas sobre outras cadeiras, conquanto não duvide da imaculada limpeza das ditas numa viagem de tal envergadura aérea.

«10.
No plano de evacuação do avião, está previsto meio minuto, em média, para evacuar um passageiro por uma saída de emergência. A cada lugar corresponde uma saída de emergência, determinada pela fila e pelo lado do corredor. Num certo voo, viajam 20 passageiros nas seis primeiras filas do avião, metade de cada lado do corredor.
Em caso de necessidade, estes passageiros terão de ser evacuados pela saída de emergência localizada no topo da classe executiva. Os 25 passageiros que viajam nas restantes filas, 12 de um lado do corredor e 13 do outro lado, serão evacuados pela saída de emergência que está localizada sobre a asa do avião.
As quatro saídas de emergência funcionam em simultâneo. Quanto tempo está previsto demorar a evacuação dos 45 passageiros deste voo?
(A)   22 min 30 s; (B) 22 min 50 s; (C) 6 min 30 s; (D) 6 min 50 s»

A minha amiga não aguentou tanta pressão causada pelo problema da evacuação do avião, receosa de que este explodisse antes da evacuação total e ela própria explodiu:
«- Um tipo que promove tal enormidade parece maluquinho. Coisa tão estranha aquilo que inventa! O homem não está bom da cabeça!”
Eu ainda quis defender o Nuno Crato, desresponsabilizando-o da elaboração da prova, mas também me senti paralisada com a tragédia da evacuação, que nem os examinandos poupa, os quais. antes de estarem ali, já tinham feito os cursos e os estágios competentes, só lhes faltando a prática lectiva que decorre no tempo e na aplicação.
E a minha irmã concluiu piedosamente:
- Coitados dos professores assim humilhados por quem tem a faca e o queijo na mão para lhes cortar as pernas! O Vasco Pulido Valente tem toda a razão.
E estendeu-me o artigo, que leio já em casa, pois esgotara-se o nosso tempo de café. E, claro, Vasco Pulido Valente aponta mais algumas anomalias da prova, a charada dos futebóis, por exemplo, item 6, que não podiam faltar no nosso panorama cultural, mesmo ao nível de um exame. Para além do tal alarido em torno dos erros ortográficos que Pulido Valente não aceita que se condenem, na flutuação de uma ortografia acéfala, criada na penúria e na subordinação.

A estupidez à solta
30/01/2015
Dezenas de analfabetos que gostam de se dar ares fizeram um escândalo com o aparente excesso de erros de ortografia, pontuação e sintaxe dos 2490 professores que se apresentaram à “Prova de Avaliação de Conhecimentos e Capacidades” (PACC). Deus lhes dê juízo.
Para começar, não há em Portugal uma ortografia estabelecida pelo uso ou pela autoridade. Antes do acordo com o Brasil – um inqualificável gesto de servilismo e de ganância –, já era tudo uma confusão. Hoje, mesmo nos jornais, muita gente se sente obrigada a declarar que espécie de ortografia escolheu. Pior ainda, as regras de pontuação e de sintaxe variam de tal maneira que se tornaram largamente arbitrárias. Já para não falar na redundância e na impropriedade da língua pública que por aí se usa, nas legendas da televisão, que transformaram o português numa caricatura de si próprio; ou na importação sistemática de anglicismos, derivados do “baixo” inglês da economia e de Bruxelas.
De qualquer maneira, a pergunta da PACC em que os professores mais falharam acabou por ser a seguinte: “O seleccionador nacional convocou 17 jogadores para o próximo jogo de futebol (para que seria?). Destes 17 jogadores, 6 ficarão no banco como suplentes. Supondo que o seleccionador pode escolher os seis suplentes sem qualquer critério que restrinja a sua escolha, poderemos afirmar que o número de grupos diferentes de jogadores suplentes (é inferior, superior ou igual) ao número de grupos diferentes de jogadores efectivos.” Excepto se a palavra “grupo” designar um conceito matemático universalmente conhecido, a pergunta não faz sentido. Grupos de quê? De jogadores de ataque, de médios, de defesas? Grupos dos que jogam no estrangeiro e dos que, por acaso, jogam aqui? Não se sabe e não existe maneira de descobrir ou de responder. O dr. Crato perdeu a cabeça.
Na terceira pergunta em que os professores mais falharam, o dr. Crato agarrou nas considerações tristemente acéfalas de um cavalheiro americano sobre “impressão e fabrico” de livros. Esse cavalheiro pensa que há “livros em que a beleza é um desiderato” (ou seja, a beleza do objecto) e outros “em que o encanto não é factor de importância material” (em inglês, “material” não significa o que o autor da PACC manifestamente julga). E o homenzinho acrescenta pressurosamente: “Quando tentamos uma classificação, a distinção parece assentar entre uma obra útil e uma obra de arte literária”. A obra de arte pede beleza ao tipógrafo (ao tipógrafo?), a obra útil só pede “legibilidade e comodidade de consulta”. Perante este extraordinário cretinismo, a PACC exige que os professores digam se o “excerto” “ilustra” os dois termos de uma comparação, o primeiro, o segundo ou nenhum deles. Uma pessoa pasma como indivíduos com tão pouca educação e tão pouca inteligência se atrevem a “avaliar” alguém.

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