Um artigo curioso de Rui Tavares, que me faz pensar que o estudo torna as
pessoas mais abertas a uma visualização dos factos históricos menos impregnada
de utopia ou facciosismo cego. Julgo que a análise de Rui Tavares é disso
prova, tentando pôr os pontos nos ii, equiparando os homens na sua avidez de
domínio, no fundo, insinuantemente, lembrando o Iraque e a responsabilidade
americana para desculpabilizar Putin e a sua responsabilidade em Alepo. E na
onda panegírica, sobressai Guterres, o homem que quer salvar as vidas humanas
custe o que custar. Há muito que os ensaios de infiltração terrorista dos
difusores islamitas deixaram de estar na ordem do dia, a Europa tem que ser
receptáculo de todos os que fogem desvairadamente, e com razão, da guerra e da
fome. Guterres vai resolver esse caos, embora tenha abandonado o seu
país no pântano, há quinze anos, segundo nos contam Maria Lopes e Sofia
Rodrigues em “Há quinze anos, do pântano ao país de tanga” do
artigo seguinte, saído hoje, que refere as opiniões de vários políticos sobre o
tal abandono de Guterres de um país que se vai atamancando à medida das nossas facécias
políticas.
Vou lavar-me destas preocupações, no café,
com o primeiro volume da Bíblia que Frederico Lourenço está a
traduzir directamente do grego e que contém os quatro Evangelhos. Que Deus dê
muita vida a este grande português dos nossos tempos, para continuar a sua obra
monumental de tão impecáveis traduções que nos tem dado dos monumentos
literários gregos. Que Deus dê muita vida à minha irmã, que me ofereceu este
primeiro volume bíblico como prenda de Natal.
Testes, trabalhos e
tribulações
Rui Tavares
14 de Dezembro de 2016
O mundo não
pode silenciar algumas exigências simples perante o que se está a passar em
Alepo.
Na crónica de
segunda-feira mencionei uma universidade russa que tinha sido há uns
anos fechada temporariamente pelos bombeiros, num aparente ato de pressão pelas
autoridades do regime de Putin. Não disse o seu nome, não fosse o diabo
tecê-las, mas já não teria sido preciso: a Universidade Europeia de São
Petersburgo viu ser-lhe retirado o seu alvará e está à beira de fechar
definitivamente pelo crime de ser independente.

Quando
me perguntam porque volto ao tema da Rússia de Putin, é por isto. Não pela
Rússia e pelos russos, mas por Putin. Para impedir a normalização da sua
arbitrariedade no meio das falsas equivalência morais, do “ai eles são todos
iguais” e do “há hipocrisia em todo o lado”. Se forem todos iguais e houver
hipocrisia em todo o lado, Putin e a normalização de Putin terão dado uma
grande ajuda.
A
história voltou com requintes de vingança, como disse António Guterres ao fazer
o juramento da Carta das Nações Unidas para ser o próximo Secretário-Geral da
ONU. O discurso de Guterres foi claro, foi preciso — nos dois sentidos do
termos — e tudo menos cauteloso. Foi bom ver que o terramoto político
que vivemos com Trump nos EUA não moderou Guterres entre o dia da sua eleição e
o da sua tomada de posse. É bom que tenhamos também consciência de que isso
pode fazer dele um Secretário-Geral de um mandato só. Não creio que ele o
procure, mas também não me parece querer evitá-lo se o custo for demasiado
alto. Precisamos dessa atitude também.
Nestes
novos tempos da história não podemos esperar facilidades. Só podemos esperar
testes, trabalhos e tribulações, como nas histórias bíblicas e nas cantigas
de blues que eram a música sofrida dos escravos.
Os
testes, trabalhos e tribulações de outras partes do mundo são incomparavelmente
mais difíceis do que os nossos. Há quem escolha ignorá-los. Há quem escolha nem
saber deles. Um candidato à presidência dos EUA, quando perguntado sobre o
cerco e agora tomada de Alepo, na Síria, respondeu com sincera ingenuidade:
“que coisa é Alepo?” — ele não sabia mesmo do que se estava a tratar.
O
mundo não pode dar-se ao mesmo luxo. O mundo não pode silenciar algumas
exigências simples perante o que se está a passar em Alepo.
Pelo menos duas exigências simples: a organização de ajuda humanitária aos
habitantes da cidade e a permissão de acesso a observadores independentes.
É
já uma triste consequência do estado do mundo que até estas simples exigências
sejam confundidas sob um manto de confusão e desconversa sobre quem tem mais
culpas na Guerra da Síria e o que faz ou fez cada uma das partes em todas as
guerras no médio-oriente desde o início do século. Tal como a Europa deve
receber refugiados da Síria, por obrigações humanitárias, sem ter a ilusão de
que isso resolva as raízes da guerra, também à Rússia deve ser exigido o
respeito pelo direito internacional humanitário, ainda que nos seus mínimos, independentemente
da visão global que tenhamos sobre o conflito.
E
não, o facto de os americanos terem invadido o Iraque não faz diminuir o que
deve ser a nossa exigência moral, política ou legal da Rússia. Pelo contrário;
esse era o argumento — o de que os outros eram iguais ou piores — de quem
defendia a Guerra do Iraque. Quem esteve na rua contra a Guerra do Iraque tem
exatamente a mesma razão que tinha para protestar contra as violações do
direito internacional na Síria.
Se
isso era popular então e é impopular agora pouco importa. O que importa é
que se está a passar no nosso tempo aquilo que sabemos ter acontecido no
passado e que costumamos arquivar na memória coletiva sob as perguntas: “como é
que deixaram acontecer? por que não houve mais indignação?”.
O
teste que há a passar não é, porém, um teste de história mas um teste de moral.
Depois dele, só virão mais trabalhos e tribulações. Se é assim o nosso tempo,
perseveremos.
Há
quinze anos, do pântano ao país de tanga
Hecatombe eleitoral autárquica do PS que motivou a
demissão de António Guterres foi na noite de 16 de Dezembro de 2001. Que
“pântano” era este que ainda hoje o termo se lhe cola à pele?
Público, 16 de Dezembro
de 2016
Há
quinze anos, o agora secretário-geral da ONU fechava a noite eleitoral
autárquica a anunciar, de forma inesperada, quase à uma da manhã, em directo na
televisão, que iria pedir ao Presidente da República a sua demissão do cargo de
primeiro-ministro, depois de conhecida a hecatombe dos socialistas nas urnas. António
Guterres justificou a sua saída com a necessidade de evitar que o país
mergulhasse no “pântano”.
Recuando
no tempo, a ministra da Saúde e da Igualdade dos executivos de Guterres, Maria
de Belém, justifica tal decisão com a “incapacidade” do Governo de Guterres de
aplicar políticas estratégicas de longo prazo, devido à geometria partidária
pulverizada do Parlamento. O mesmo argumento é usado por um ministro do
executivo de Durão Barroso, que se lhe seguiu: “Saímos de um país do pântano
para o reconhecimento de um país de tanga”, lembra José Luís Arnaut.
Tal
como a sua imagem titubeante, à porta dos Hospitais da Universidade de Coimbra,
a tentar calcular 6% do PIB nacional, o termo “pântano” colou-se à pele de
Guterres e talvez não tenha sido bem percebido pela opinião pública.
Já a oposição aproveitou o termo para o acusar de “incapacidade de governar”,
lembram Maria de Belém Roseira e Alberto Arons de Carvalho, secretário de
Estado da Comunicação Social dos dois governos de Guterres.
Até
certo ponto era, de facto, incapacidade – não por ignorância mas por falta
de condições para governar. Com exactamente metade do Parlamento, 115
deputados, o PS conseguiu rechaçar três moções de censura, mas precisou da mão
do CDS para aprovar o orçamento de 2000 e da do deputado Daniel Campelo (contra
o resto do CDS) para o do ano seguinte. E não conseguia fazer passar
políticas estratégicas, recorda Roseira. “Há mínimos denominadores comuns que é
possível encontrar em muitas matérias e temos que estar unidos em questões de
regime. Mas em muitos casos a política partidária parece que tem a cultura
do futebol”, diz a ex-ministra, que acrescenta que a oposição “infernizou a
vida” do Governo de Guterres. Lembra a ridicularização da “paixão pela
educação”, quando foi lançada a rede do pré-escolar que hoje a direita
considera essencial.
Arons
de Carvalho admite que as autárquicas foram o “espelho” da crise política
parlamentar e que Guterres preferiu “clarificar” a questão do poder para evitar
continuar com um país “paralisado e enfraquecido”. Até porque, considera, se
Guterres prolongasse a tomada de decisão, o PS ficaria “ainda mais fragilizado
quando tivesse que ir às eleições”.
As
legislativas antecipadas de Março de 2002 deram a vitória ao PSD de Durão
Barroso que formou um Governo de coligação com o CDS. Nesse
executivo, José Luís Arnaut foi ministro-adjunto do primeiro-ministro,
depois de ter sido o coordenador autárquico do PSD nas eleições de 2001. O
antigo governante recorda que “havia uma grande instabilidade do Governo
socialista”, já que nem o PSD nem o PCP eram parceiros do executivo. “O PS
começava a estar cansado”, diz.
Apontando
o “pântano” como um previsível “impasse político”, José Luís Arnaut considera
que o então primeiro-ministro “teve lucidez e interpretou as eleições como
os portugueses interpretaram”, mostrando que “não estava apegado ao poder”.
O antigo secretário-geral do PSD lembra que a situação económica “estava
complicada” por não terem sido feitas as reformas necessárias como aconteceu em
Espanha, por exemplo. Daí que o discurso do pântano se tivesse transformado num
outro celebrizado por Durão Barroso: “Saímos de um país do pântano para o
reconhecimento de um 'país de tanga'.”
Outro
ministro desse Governo de Durão Barroso, Luís Marques Mendes, também atribui
a demissão de Guterres à falta de condições de governabilidade. Mas lembra
que as leituras nacionais de eleições autárquicas não devem ser a regra. Para o
antigo ministro dos Assuntos Parlamentares, o “pântano” existia desde que Guterres
tinha sido reeleito em 1999 sem maioria parlamentar: “Não há situação mais
pantanosa do que o Orçamento do Queijo Limiano”.
O
cansaço e o desgaste de um executivo minoritário são também os motivos
apontados por outro membro do então Governo PSD/CDS para justificar a atitude
de Guterres. “O eng. António Guterres tinha perdido a mão no Governo e no
partido”, afirma Nuno Magalhães, na altura secretário de Estado da
Administração Interna, indicado pelo CDS. O actual líder da bancada centrista
considera que o então primeiro-ministro fez uma “boa leitura” dos resultados
eleitorais. Essa derrota foi compreendida por Guterres “como pessoa
inteligente que é” e foi “o pretexto de que precisava”, observa Nuno Magalhães.
Esta
é também a leitura do politólogo António Costa Pinto, que diz que foi uma
maneira airosa de Guterres preservar algum capital para o seu futuro político –
ainda que tenha acabado por preferir, até agora, uma carreira exclusivamente
internacional. O “pântano” a que se referia Guterres era a soma da sua
falta de capacidade de manobra parlamentar com a crise internacional que se
adivinhava à porta e que exigia, disse então, “uma resposta denodada”. E o
então primeiro-ministro, com Almeida Santos, Ferro Rodrigues e António
Vitorino, foi explícito naquela noite: se ele passasse pelas eleições como se
nada fosse, “o país cairia inevitavelmente num pântano político que minaria
as relações de confiança entre governantes e governados que são indispensáveis
para que Portugal possa vencer os desafios que tem pela frente”.
Costa
Pinto diz que o pântano foi o “grande exemplo da extrema dificuldade do PS de
formar governos maioritários à esquerda” e lembra que Guterres “encerrou o
ciclo virtuoso da adesão à CEE e subsequente desenvolvimento económico e
mudança social e abriu o ciclo da estagnação”, ou seja, o tal pântano que
dizia querer evitar. Se evitou o pântano político, acabou por não evitar o
económico.
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