terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Ele deu-nos o mote



António Barreto é impecável nas suas análises, João Miguel Tavares prova pela ironia que não há motivos para se não brindar, como faz o governo, que está visivelmente contente. Já o Velho do Restelo fazia desses avisos, leiamo-lo então, também, que é sempre um prazer encontrarmos quem tão bem escreve ou escreveu. Afinal há sempre quem saiba sentenciar, mesmo entre nós que somos uns perdidos nesta “praia lusitana”. Quanto ao tema… o mesmo de sempre, não há que fugir da “apagada e vil tristeza” – eu diria agora que “do aceso e também vil terror”  que nos rói as entranhas, embora já estejamos habituados. Leiamo-los, então, para nos recrearmos - com o discurso oratório, o de precisão argumentativa, o de precisão pelo humor. O Velho bem que nos avisou, mas a coisa remonta a Adão, afinal, puras desculpas das nossas aleivosias:
O Velho do Restelo)  Lus., IV
94
"Mas um velho d'aspeito venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
C'um saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:
95
"Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C' uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!
96
"Dura inquietação d'alma e da vida,
Fonte de desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios:
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo digna de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana!
97 
“A que novos desastres determinas
De levar estes reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas
Debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos, e de minas
D'ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? que histórias?
Que triunfos, que palmas, que vitórias?
98
"Mas ó tu, geração daquele insano,
Cujo pecado e desobediência,
Não somente do reino soberano
Te pôs neste desterro e triste ausência,
Mas inda doutro estado mais que humano
Da quieta e da simples inocência,
Idade d' ouro, tanto te privou,
Que na de ferro e d'armas te deitou ….»

Causas do não crescimento...
António Barreto
DN, 11/12/16 – SEM EMENDA
A ausência de crescimento económico é o grande problema da sociedade portuguesa actual. Com crescimento médio de zero desde o início do século, desaparecem as hipóteses de emprego, de financiamento da Segurança Social e de suporte dos sistemas de educação, de saúde e de justiça.
Com a globalização, foram criadas condições tais para os países fornecedores de mão-de-obra barata que Portugal perdeu grande parte da sua capacidade de manufactura. O rápido desaparecimento da indústria transformadora aumentou a fragilidade da economia. Nalguns países europeus, a indústria em declínio foi substituída por outros sectores, designadamente de serviços. Entre nós, esse processo foi lento e insuficiente. Com o que aumentaram os problemas da balança comercial e diminuiu a capacidade de criação de emprego.
Depois dos grandes apoios que constituíram os fundos, a União Europeia acabou por se transformar num colete-de-forças que retirou a Portugal capacidade de tratar da sua própria economia, dos seus custos e da sua moeda. O euro foi talvez o mais duro obstáculo às eventuais políticas de promoção de competitividade da economia portuguesa. Com o euro, não se conseguiu a tão necessária disciplina financeira dos políticos portugueses. Qualquer abrandamento ou qualquer recessão na Europa transforma-se num desastre em Portugal.
As políticas públicas portuguesas seguidas nestas últimas décadas acrescentaram prejuízos e tiveram efeitos muito negativos. A instabilidade e a demagogia, seguramente. O favoritismo e a corrupção, como se sabe. A visão eleitoral e de curto prazo, sem dúvida. Ao que se acrescenta uma administração pública de má qualidade, dependente do governo, com uma burocracia excessiva, uma corrupção permanente e uma justiça muito insuficiente e morosa.
O crescimento permanente do Estado, da respectiva despesa e em especial das despesas sociais criou mais défice e aumentou o endividamento. Para que o Estado cresça sem travão, é necessária uma fiscalidade sem abrandamento. Tudo leva a crer que esta tenha chegado a níveis insuportáveis, incompatíveis com a expansão do investimento. Este último é desencorajado como raramente na história do país.
Ainda por cima, a falta de capital (e de capitalistas...) é agora crónica e quase irremediável. Falta porque não existe. Falta porque não tem atractivos. Falta porque fugiu para locais mais seguros e produtivos. Falta porque procura sítios com menor fiscalidade e menores ameaças de esbulho. Fogem finalmente os capitais à procura de sociedades com mais tolerância para o investimento privado e com governos mais dispostos a programas de segurança.
As causas da falta de crescimento são de diversa ordem. Podem ser externas e nacionais. Estas últimas são as políticas. Porque têm maus resultados, evidentemente. Mas o pior é o facto de terem enfraquecido o país, de lhe terem destruído recursos e de o terem impedido de reagir melhor aos males que vêm de fora. O colossal endividamento português é o lugar geométrico das políticas públicas erradas, do crescimento ilimitado do consumo e das prestações sociais e da debilidade do capitalismo português.
Finalmente, um sindicalismo agressivo, politizado e partidário. Já foi mais agressivo nos anos 70, hoje é menos nos sectores privados, mas ainda é áspero e pouco dado a negociação nos sectores públicos, como na educação, na saúde, na administração central, nas autarquias, no caminho-de-ferro e nos portos, assim como nos sectores, nos transportes, por exemplo, com grande influência do Estado. Os governos de direita não sabem nem querem negociar com os sindicatos. Os governos de esquerda submetem-se aos sindicatos. O resultado não é bom para ninguém, trabalho, Estado ou capital.

Esqueçam o diabo: o país está espectacular
João Miguel Tavares
Público, 19 de Novembro de 2016
Tem sido uma emoção enorme, só comparável à vitória no Europeu de futebol: Portugal, sob a batuta de António Costa, acaba de obter o maior crescimento de toda a zona euro no terceiro trimestre de 2016, uns estrondosos 0,8 pontos percentuais (1,6% em termos homólogos), coisa que já não se via desde 2013. Isso foi o suficiente para ministros e deputados saltarem para a frente de todas as câmaras de televisão a celebrar o resultado, e para o primeiro-ministro deixar palavras de amor ao seu ministro das Finanças, o homem “que vai conseguir o melhor défice do país dos últimos 42 anos”. Perante a frieza dos números, só nos resta a nós, os amigos do diabo, colocar a cauda bifurcada entre as pernas e ir atormentar outras terras menos pujantes, porque Portugal, esse, está espectacular.
Não há como não nos juntarmos a este coro de entusiasmo. O país celebra efusivamente o facto de o governo ter acertado pela primeira vez nas previsões de crescimento, depois de a sua meta ter sido sempre revista em baixa, desde as promessas de Agosto de 2015 até aos dias de hoje. As previsões de crescimento para 2016 começaram em 2,4% (programa eleitoral do PS), desceram para 2,1% (primeira versão do Orçamento de Estado de 2016), passaram para 1,8% (Orçamento de Estado de 2016 após negociações com Bruxelas) e agora vão em 1,2% (Orçamento de Estado para 2017). Perante isto, como não romper em aplausos quando se conclui que os estrondosos 1,2% talvez sejam mesmo possíveis? Sim, sim, é verdade que há ano e meio, quando a direita estava no governo e errava as contas, o deputado João Galamba denunciava a falta de credibilidade do PSD. “Falharam colossalmente na sua primeira estimativa”, escandalizava-se ele. Mas isso, caros leitores, era antigamente. Agora o poucochinho é o novo muitíssimo, porque o país está espectacular.
E, por favor, não sobrevalorizem o valor da dívida, está bem? Em Março deste ano estava em 128,9% do PIB e no final do primeiro semestre já tinha subido para os 131,6%. Mais um recorde para o país. No Programa de Estabilidade 2016-2020, o governo comprometeu-se com uma redução da dívida pública para os 124,8% em 2016. Agora já aponta para 129,7%. É a vida. Se por acaso ainda for daqueles que se lembra do então líder da oposição António Costa a indignar-se com as “más notícias” que representava a chegada da dívida portuguesa aos 128,7% do PIB em 2014, clamando por uma “economia sã” para ter “finanças públicas sãs”, esqueça lá isso. Foi há muito, muito tempo, quando o verdadeiro diabo ainda estava no governo. Hoje em dia, quem é que se chateia com um pequeno desvio de cinco pontos percentuais no PIB? Mais nove mil milhões de euros, menos nove mil milhões, interessam pouco quando o país está tão espectacular.
E quanto aos juros da dívida a 10 anos, deixem lá isso, que o pessimismo nunca fez bem a ninguém. Há que sorrir, ter confiança e seguir em frente. Não vamos dizer que não seja um bocadinho aborrecido os juros já se terem aproximado dos 3,8%. Não vamos dizer que estes valores não são o dobro da Espanha e o quádruplo da Irlanda. Não vamos dizer que a DBRS não avisou que estava “confortável” com a sua notação do país “com taxas até 3,5% ou 4%”. Não vamos dizer nada disto, porque já todos sabemos que existem dificuldades. Mas vejam o lado positivo. O ambiente está óptimo. As pessoas estão felizes. A esperança voltou. Que maravilha: voltámos a viver num país espectacular.

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