sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Escola formativa, a do jornalismo



Nas suas crónicas do Público, João Miguel Tavares tem enveredado por uma via pedagógica – simultaneamente didáctica e ética - que apraz ler. Assim o quisessem escutar, muitos dos visados que passam indiferentes, ante a honestidade das suas críticas, resultantes, naturalmente, do desejo de contribuir para esclarecer e formar, embora recebendo muita vez em troca a  animosidade dos inamovíveis. Eu sou dos que o lê sempre com agrado, e por isso lhe transcrevo os textos, feliz porque é um exemplo de jovem português bem formado – o primeiro artigo sobre Nuno Crato e a sua honestidade intelectual; o segundo sobre Francisco Louçã e as suas argúcias de hipocrisia verbalística – na questão de um ditador da sua paixão, real ou imaginária; o terceiro sobre Marcelo e o seu vedetismo refinado e incómodo. Bem-haja.

Para acabar de vez com três ideias feitas
João Miguel Tavares
10 de Dezembro de 2016
A propósito do artigo “Justiça para Nuno Crato” recebi vários comentários pertinentes de leitores, além de um texto de Bárbara Wong neste jornal (“Os pais e as mães do sucesso dos alunos portugueses”) onde me era atribuída a profissão de cantador “de loas a Nuno Crato”. Aproveito a embalagem do tema e algumas dessas críticas para tentar clarificar a minha posição e desmontar três ideias feitas a propósito da escola pública.
Primeira ideia feita: Nuno Crato, seguindo o maquiavélico plano de destruição do Estado Social congeminado pelo anterior governo em colaboração com a troika, tentou desmantelar a escola pública. Esta ideia feita entronca numa outra, que me é frequentemente atribuída – a de que a direita liberal considera o governo de Passos Coelho a melhor coisa que passou pela Península Ibérica desde Ulisses. Qualquer breve visita ao Google desmente isso com facilidade, mas ninguém se dá ao trabalho. Eu ajudo: tirando Miguel Relvas e Paulo Portas, Nuno Crato foi o ministro que mais ataquei nos últimos anos, tendo inclusivamente defendido neste mesmo jornal (“Caro Nuno Crato: ainda aí está?”) a sua saída após a desastrada abertura do ano lectivo de 2014. Isso não significa, porque o mundo não é a preto e branco, que Crato não tenha tido mérito nalgumas das suas políticas, em particular no aumento da exigência no domínio da Matemática. Essa exigência foi agora premiada via TIMMS, e é nesse sentido que lhe deve ser feita justiça. Tal como deve ser feita justiça ao governo de Passos Coelho – e à honestidade intelectual, já agora –, sublinhando que a tão propagandeada narrativa da “destruição do Estado Social”, que não é uma narrativa só da extrema-esquerda mas também do PS, é pura e simplesmente patética.  
 segunda ideia feita tem a ver com a questão da exigência: muitos dizem que hoje em dia é só laxismo, e que antigamente a escola era mais exigente. É mentira. E das grandes. Tenho uma filha de 12 anos no 7.º ano, um filho de 10 no 5.º ano, um filho de oito no 3.º ano, todos no ensino público, e uma filha de quatro no pré-escolar. Aquilo que eles trabalham, comparado com aquilo que eu trabalhava, e aquilo que eles hoje têm de saber, coloca a qualidade da sua educação muitos degraus acima da minha. A geração dos meus filhos vai ser bem mais qualificada do que a dos seus pais – saiba o país aproveitá-la e ter o dinamismo necessário para que eles não tenham de emigrar. Era nesse sentido que falava de exigência. Não se trata de maltratar as crianças, mas de potenciar as suas qualidades e verificar a sua enorme capacidade de resposta quando bem ensinadas e bem estimuladas.
Terceira ideia feita: existe uma coisa homogénea chamada “os professores”. Esta terceira ideia feita está aqui para eu próprio me penitenciar do seu uso em excesso. Houve quem me tivesse justamente criticado por confundir os professores com aquilo a que Mário Nogueira chama “os professores”. Toda a linguagem tem limitações. Claro que cada professor é um indivíduo. Claro que os professores não são um rebanho a balir em uníssono. Claro que a posição dos professores não se confunde com a da Fenprof. Nada faria melhor à educação em Portugal, aliás, do que os professores libertarem-se da imagem de classe homogénea que tenta resistir a qualquer novidade. Conheci professores extraordinários. Conheci professores muito maus. É pena que tenha de chamar a mesma coisa a uns e outros. E que uns e outros recebam o mesmo ordenado no final de cada mês. 

Entre Trump e Fidel, o coração de Louçã balança
João Miguel Tavares
15 de Dezembro de 2016, 6:54

Eu tenho um problema com a articulação dos érres entre vogais. Quando digo “pereira” sai-me “pegueiga”. As pessoas gozam comigo por causa disso. Francisco Louçã tem um problema com a articulação da palavra “ditador” junto ao substantivo próprio “Fidel”. Quando diz “Fidel” sai-lhe “vencedor”. É uma afasia política muito engraçada. Se ainda hoje Bernardino Soares é gozado por ter dito que a Coreia do Norte era uma democracia, Francisco Louçã merece ser gozado por não ser capaz de dizer que Cuba é uma ditadura.
Um tipo injusto diria que a morte de Fidel Castro foi a rabanada de vento que fez voar o capachinho democrático de Francisco Louçã, revelando a sua careca trotskista. Mas eu não sou um tipo injusto. Em bom rigor, ao longo da nossa mini-polémica Louçã nunca disse que Fidel era um ditador, mas também nunca disse que não era. Simplesmente, evitou dizer. Quando um leitor, nos comentários do blogue Tudo Menos Economia, o convidou a clarificar a sua posição – sim ou não –, ele respondeu: “Não facilitarei revisionismos históricos que ofendem a memória dos antifascistas.” É uma resposta extraordinária. A ideia que fica é esta: em casa, Louçã sente-se livre para criticar Fidel e a boina de Che Guevara; em público, considera ser seu dever vestir a farda Coronel Tapioca e defender a mitologia da revolução cubana. Do alto da minha generosidade, não considero, pois, que Louçã tenha um genuíno fascínio por ditadores. Tem apenas um fascínio pela manipulação das palavras e pela retórica revolucionária, não tendo qualquer problema em levantar o braço direito da pessoa que tem à sua frente só para lhe poder chamar fascista.
É esse, diga-se, o ponto que me fez voltar ao tema. Convido toda a gente as ler as respostas que Louçã deu aos leitores do texto A selfie de Marcelo e o ódio sonso de Tavares. Muitos criticaram-no pela sua posição ambígua em relação a Cuba, e a todos eles respondeu com a invocação de Donald Trump e das suas posições primárias. Qualquer leitor que tenha considerado Fidel um ditador foi despachado por Louçã com formulações como: “Também li o comunicado de Trump; ainda bem que há em Portugal quem o repita, assim percebe-se para onde vai a direita.” Ou: “Esta discussão é só sobre o trumpismo: sobre as classificações simplistas, sobre as discussões falsificadoras.” À hora a que escrevo, Louçã já tinha repetido 14 vezes as palavras “Trump” ou “trumpismo” a propósito da morte de Fidel, sem que Trump alguma vez tivesse sido invocado por quem quer que fosse. É esta manipulação de que falo: o que era uma conversa sobre Fidel passa a ser uma conversa sobre Trump. Trump. Trump. Trump. Sabendo nós que Louçã continua a ser o flautista de Hamelin do Bloco de Esquerda, convém prepararmo-nos para o que aí vem: o reductio ad Trumpum. Durante os próximos quatro anos, qualquer alma de direita que concorde com Donald Trump acerca do estado do tempo em Nova Iorque passa a ser trumpista, que não é mais do que a antecâmara do velho fascista.
A extrema-esquerda precisa de companhia no outro lado do espectro ideológico, nem que para isso tenha de chamar fanáticos de direita a pacatos liberais. Ao longo dos últimos anos não tenho assistido a outra coisa. Louçã é o que sempre foi, e ninguém espera que ele mude. Mas convém denunciar o truque, e repetir as vezes que forem precisas que não, nós não somos todos iguais. Nem todos sofremos de afasia política. E nem todos confundimos ditadores com vencedores.

As marcelices de Marcelo
João Miguel Tavares
Público, 22 de Dezembro de 2016

Gosto muito de ter um Presidente da República espontâneo. Não gosto nada de ter um Presidente da República impulsivo. O Presidente da República espontâneo foi aquele que andou este Verão pela Madeira, a consolar as pessoas que tinham perdido tudo nos fogos do Funchal. O Presidente da República impulsivo foi o que esteve no fim-de-semana passado na Cornucópia, a tentar consolar as pessoas que haviam decido encerrar a companhia de teatro à qual dedicaram uma vida. Não sei se é possível manter a espontaneidade sem perder a impulsividade, mas sei que o Presidente da República devia esforçar-se por perceber a diferença entre uma coisa e outra. A bem do país, e do seu próprio cargo, Marcelo tem de se deixar de marcelices, e parar de agir duas vezes antes de pensar.
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No seu raide relâmpago à Cornucópia, o Presidente da República conseguiu o prodígio de embaraçar, em simultâneo, o ministro da Cultura, o director da companhia, a separação de poderes, o Estado de Direito e ele próprio. Não é coisa pouca. Embaraçou o ministro da Cultura porque o pobre senhor se viu obrigado a desmarcar uma visita planeada a Castelo Branco assim que soube que Marcelo tinha resolvido apresentar-se na Cornucópia para o espectáculo de despedida, arrastando as câmaras de televisão atrás de si. Depois de chegar afobadíssimo ao teatro, Castro Mendes teve ainda o desprazer de ser humilhado em directo, sentado no palco a ouvir reprimendas do senhor professor, e a ver-se obrigado a balbuciar palavras de circunstância só para não parecer mal-educado, como se aquele fosse não o fim, mas o princípio, de um longo processo de diálogo entre o ministério e a companhia.
Embaraçou Luís Miguel Cintra, que no dia seguinte sentiu necessidade de emitir um comunicado, onde afirma, com extraordinária elegância: “O Teatro da Cornucópia acaba no princípio do ano, na realidade já acabou. Não se tratará, portanto, agora de [pedir] um estatuto de excepção, porque somos provavelmente excepção. A empresa dissolve-se nos próximos dias. Às pessoas que elegemos para nos governarem e que se dispõem a ouvir-nos, não nos passa pela cabeça mentir. Para com eles, para com todos, mantivemos sempre as mais leais relações. Assim foi, assim será.” A única vantagem deste comunicado é mostrar, mais uma vez, que Luís Miguel Cintra é um senhor, recusando tanto a mão estendida como a vitimização, e despedindo-se com uma dignidade só ao alcance dos grandes homens.
Marcelo embaraçou também a separação de poderes, porque não tem nada que andar a meter o nariz num assunto que não é da sua competência. Se queria exercer a sua magistratura de influência convidava Luís Miguel Cintra e Luís Filipe Castro Mendes para almoçarem em Belém. Aparecer à vigésima quinta hora para tentar resolver um problema de vários anos à frente das câmaras de televisão é uma marcelice cruzada com uma costice, ou seja, um excesso de voluntarismo que se esgota num paleio inconsequente.
Embaraçou ainda o Estado de Direito porque esse excesso de voluntarismo é um nepotismozinho light, uma forma de pedir um tratamento de favor para um artista da sua preferência. É claro que Luís Miguel Cintra é um vulto maior da cultura portuguesa, mas é igualmente claro que mesmo os maiores vultos têm limitações no acesso ao financiamento do Estado. Marcelo foi meter uma cunha ao ministro. Foi em directo na TV, mas não deixou de ser uma cunha. E é por isso que, em última análise, Marcelo acabou por se embaraçar a si próprio.

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