Nas suas crónicas do Público, João
Miguel Tavares tem enveredado por uma via pedagógica – simultaneamente didáctica
e ética - que apraz ler. Assim o quisessem escutar, muitos dos visados que
passam indiferentes, ante a honestidade das suas críticas, resultantes,
naturalmente, do desejo de contribuir para esclarecer e formar, embora recebendo
muita vez em troca a animosidade dos
inamovíveis. Eu sou dos que o lê sempre com agrado, e por isso lhe transcrevo
os textos, feliz porque é um exemplo de jovem português bem formado – o primeiro
artigo sobre Nuno Crato e a sua honestidade intelectual; o segundo sobre
Francisco Louçã e as suas argúcias de hipocrisia verbalística – na questão de
um ditador da sua paixão, real ou imaginária; o terceiro sobre Marcelo e o seu
vedetismo refinado e incómodo. Bem-haja.
Para acabar de vez com três
ideias feitas
João Miguel Tavares
10
de Dezembro de 2016
A
propósito do artigo “Justiça para Nuno Crato” recebi vários comentários
pertinentes de leitores, além de um texto de Bárbara Wong neste jornal (“Os pais e as
mães do sucesso dos alunos portugueses”) onde me era atribuída a
profissão de cantador “de loas a Nuno Crato”. Aproveito a embalagem do tema e
algumas dessas críticas para tentar clarificar a minha posição e desmontar três
ideias feitas a propósito da escola pública.
Primeira ideia feita: Nuno Crato,
seguindo o maquiavélico plano de destruição do Estado Social congeminado pelo
anterior governo em colaboração com a troika, tentou desmantelar a escola
pública. Esta ideia feita entronca numa outra, que me é frequentemente
atribuída – a de que a direita liberal considera o governo de Passos Coelho a
melhor coisa que passou pela Península Ibérica desde Ulisses. Qualquer breve
visita ao Google desmente isso com facilidade, mas ninguém se dá ao trabalho.
Eu ajudo: tirando Miguel Relvas e Paulo Portas, Nuno Crato foi o ministro que
mais ataquei nos últimos anos, tendo inclusivamente defendido neste mesmo
jornal (“Caro
Nuno Crato: ainda aí está?”) a sua saída após a desastrada abertura
do ano lectivo de 2014. Isso não significa, porque o mundo não é a preto e
branco, que Crato não tenha tido mérito nalgumas das suas políticas, em
particular no aumento da exigência no domínio da Matemática. Essa
exigência foi agora premiada via TIMMS, e é nesse sentido que lhe deve ser
feita justiça. Tal como deve ser feita justiça ao governo de Passos Coelho – e
à honestidade intelectual, já agora –, sublinhando que a tão propagandeada
narrativa da “destruição do Estado Social”, que não é uma narrativa só da
extrema-esquerda mas também do PS, é pura e simplesmente patética.
segunda ideia
feita tem a ver com a questão da exigência: muitos dizem
que hoje em dia é só laxismo, e que antigamente a escola era mais exigente. É
mentira. E das grandes. Tenho uma filha de 12 anos no 7.º ano, um filho de 10
no 5.º ano, um filho de oito no 3.º ano, todos no ensino público, e uma filha
de quatro no pré-escolar. Aquilo que eles trabalham, comparado com aquilo que
eu trabalhava, e aquilo que eles hoje têm de saber, coloca a qualidade da sua
educação muitos degraus acima da minha. A geração dos meus filhos vai ser bem
mais qualificada do que a dos seus pais – saiba o país aproveitá-la e ter o
dinamismo necessário para que eles não tenham de emigrar. Era nesse sentido que
falava de exigência. Não se trata de maltratar as crianças, mas de potenciar as
suas qualidades e verificar a sua enorme capacidade de resposta quando bem
ensinadas e bem estimuladas.
Terceira ideia feita: existe uma
coisa homogénea chamada “os professores”. Esta terceira ideia feita está
aqui para eu próprio me penitenciar do seu uso em excesso. Houve quem me
tivesse justamente criticado por confundir os professores com aquilo a que
Mário Nogueira chama “os professores”. Toda a linguagem tem limitações. Claro
que cada professor é um indivíduo. Claro que os professores não são um rebanho
a balir em uníssono. Claro que a posição dos professores não se confunde com a
da Fenprof. Nada faria melhor à educação em Portugal, aliás, do que os
professores libertarem-se da imagem de classe homogénea que tenta resistir a
qualquer novidade. Conheci professores extraordinários. Conheci professores
muito maus. É pena que tenha de chamar a mesma coisa a uns e outros. E que uns
e outros recebam o mesmo ordenado no final de cada mês.
Entre
Trump e Fidel, o coração de Louçã balança
João
Miguel Tavares
15 de Dezembro de 2016,
6:54
Eu
tenho um problema com a articulação dos érres entre vogais. Quando digo
“pereira” sai-me “pegueiga”. As pessoas gozam comigo por causa disso. Francisco
Louçã tem um problema com a articulação da palavra “ditador” junto ao
substantivo próprio “Fidel”. Quando diz “Fidel” sai-lhe “vencedor”.
É uma afasia política muito engraçada. Se ainda hoje Bernardino Soares é
gozado por ter dito que a Coreia do Norte era uma democracia, Francisco Louçã
merece ser gozado por não ser capaz de dizer que Cuba é uma ditadura.
Um
tipo injusto diria que a morte de Fidel Castro foi a rabanada de vento que fez
voar o capachinho democrático de Francisco Louçã, revelando a sua careca
trotskista. Mas eu não sou um tipo injusto. Em bom rigor, ao longo da
nossa mini-polémica Louçã nunca disse que Fidel era um ditador, mas
também nunca disse que não era. Simplesmente, evitou dizer. Quando um leitor,
nos comentários do blogue Tudo
Menos Economia, o convidou a clarificar a sua posição – sim ou não
–, ele respondeu: “Não facilitarei revisionismos históricos que ofendem a
memória dos antifascistas.” É uma resposta extraordinária. A ideia que
fica é esta: em casa, Louçã sente-se livre para criticar Fidel e a boina de
Che Guevara; em público, considera ser seu dever vestir a farda Coronel Tapioca
e defender a mitologia da revolução cubana. Do alto da minha generosidade,
não considero, pois, que Louçã tenha um genuíno fascínio por ditadores. Tem
apenas um fascínio pela manipulação das palavras e pela retórica
revolucionária, não tendo qualquer problema em levantar o braço direito da
pessoa que tem à sua frente só para lhe poder chamar fascista.
É
esse, diga-se, o ponto que me fez voltar ao tema. Convido toda a gente as ler
as respostas que Louçã deu aos leitores do texto A selfie de Marcelo e o ódio sonso de Tavares.
Muitos criticaram-no pela sua posição ambígua em relação a Cuba, e a todos eles
respondeu com a invocação de Donald Trump e das suas posições primárias.
Qualquer leitor que tenha considerado Fidel um ditador foi despachado por Louçã
com formulações como: “Também li o comunicado de Trump; ainda bem que há em
Portugal quem o repita, assim percebe-se para onde vai a direita.” Ou: “Esta
discussão é só sobre o trumpismo: sobre as classificações simplistas, sobre as
discussões falsificadoras.” À hora a que escrevo, Louçã já tinha repetido 14
vezes as palavras “Trump” ou “trumpismo” a propósito da morte de Fidel, sem que
Trump alguma vez tivesse sido invocado por quem quer que fosse. É esta
manipulação de que falo: o que era uma conversa sobre Fidel passa a ser uma
conversa sobre Trump. Trump. Trump. Trump. Sabendo nós que Louçã continua a ser
o flautista de Hamelin do Bloco de Esquerda, convém prepararmo-nos para o que
aí vem: o reductio ad Trumpum. Durante os próximos quatro anos, qualquer
alma de direita que concorde com Donald Trump acerca do estado do tempo em Nova
Iorque passa a ser trumpista, que não é mais do que a antecâmara do velho
fascista.
A
extrema-esquerda precisa de companhia no outro lado do espectro ideológico, nem
que para isso tenha de chamar fanáticos de direita a pacatos liberais. Ao longo
dos últimos anos não tenho assistido a outra coisa. Louçã é o que sempre foi, e
ninguém espera que ele mude. Mas convém denunciar o truque, e repetir as vezes
que forem precisas que não, nós não somos todos iguais. Nem todos sofremos de
afasia política. E nem todos confundimos ditadores com vencedores.
As
marcelices de Marcelo
João Miguel
Tavares
Público, 22 de Dezembro de 2016
Gosto
muito de ter um Presidente da República espontâneo. Não gosto nada de ter um
Presidente da República impulsivo. O Presidente da República espontâneo foi
aquele que andou este Verão pela Madeira, a consolar as pessoas que tinham
perdido tudo nos fogos do Funchal. O Presidente da República impulsivo foi o
que esteve no fim-de-semana passado na Cornucópia, a tentar consolar as pessoas que
haviam decido encerrar a companhia de teatro à qual dedicaram uma vida. Não sei
se é possível manter a espontaneidade sem perder a impulsividade, mas sei que o
Presidente da República devia esforçar-se por perceber a diferença entre uma
coisa e outra. A bem do país, e do seu próprio cargo, Marcelo tem de se deixar
de marcelices, e parar de agir duas vezes antes de pensar.
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No
seu raide relâmpago à Cornucópia, o Presidente da República conseguiu o
prodígio de embaraçar, em simultâneo, o ministro da Cultura, o director da
companhia, a separação de poderes, o Estado de Direito e ele próprio. Não é
coisa pouca. Embaraçou o ministro da Cultura porque o pobre senhor se viu
obrigado a desmarcar uma visita planeada a Castelo Branco assim que soube que
Marcelo tinha resolvido apresentar-se na Cornucópia para o espectáculo de
despedida, arrastando as câmaras de televisão atrás de si. Depois de chegar
afobadíssimo ao teatro, Castro Mendes teve ainda o desprazer de ser humilhado
em directo, sentado no palco a ouvir reprimendas do senhor professor, e a
ver-se obrigado a balbuciar palavras de circunstância só para não parecer
mal-educado, como se aquele fosse não o fim, mas o princípio, de um longo processo
de diálogo entre o ministério e a companhia.
Embaraçou
Luís Miguel Cintra, que no dia seguinte sentiu necessidade de emitir um
comunicado, onde afirma, com extraordinária elegância: “O Teatro da Cornucópia
acaba no princípio do ano, na realidade já acabou. Não se tratará, portanto,
agora de [pedir] um estatuto de excepção, porque somos provavelmente excepção.
A empresa dissolve-se nos próximos dias. Às pessoas que elegemos para nos
governarem e que se dispõem a ouvir-nos, não nos passa pela cabeça mentir. Para
com eles, para com todos, mantivemos sempre as mais leais relações. Assim foi,
assim será.” A única vantagem deste comunicado é mostrar, mais uma vez, que
Luís Miguel Cintra é um senhor, recusando tanto a mão estendida como a
vitimização, e despedindo-se com uma dignidade só ao alcance dos grandes
homens.
Marcelo
embaraçou também a separação de poderes, porque não tem nada que andar a meter
o nariz num assunto que não é da sua competência. Se queria exercer a sua
magistratura de influência convidava Luís Miguel Cintra e Luís Filipe Castro
Mendes para almoçarem em Belém. Aparecer à vigésima quinta hora para tentar
resolver um problema de vários anos à frente das câmaras de televisão é
uma marcelice cruzada com uma costice, ou seja, um excesso de
voluntarismo que se esgota num paleio inconsequente.
Embaraçou
ainda o Estado de Direito porque esse excesso de voluntarismo é um
nepotismozinho light, uma forma de pedir um tratamento de favor para um
artista da sua preferência. É claro que Luís Miguel Cintra é um vulto maior da
cultura portuguesa, mas é igualmente claro que mesmo os maiores vultos têm
limitações no acesso ao financiamento do Estado. Marcelo foi meter uma cunha ao
ministro. Foi em directo na TV, mas não deixou de ser uma cunha. E é por isso
que, em última análise, Marcelo acabou por se embaraçar a si próprio.
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