sábado, 17 de dezembro de 2016

Um Prefácio que é um “banho de luz”



Sabia que havia diferenças, já por curiosidade lera excertos dos Evangelhos em termos comparativos, mas nunca pensara nisso a fundo. A Bíblia é, para mim, o maior livro da Humanidade, mesmo encarando-o com a mente leviana de quem não acredita muito no que lê, a não ser no seu aspecto de aventura mirífica para os mais diversos gostos, que preenche os espíritos de crianças e adultos, em verdadeiras histórias de encantar, fornecedoras de diversidade criativa mas onde também o cunho de verdade histórica, com a referência a nomes e lugares e casos, apontando para as origens, é mais um motivo de reflexão e êxtase, que tantos escritores e artistas inspiraria pelos tempos fora. E hoje, na minha necessidade de ablução espiritual, em avidez de leitura de Frederico Lourenço e dos arcanos das versões bíblicas, apenas me fiquei pelos “prolegómenos” (a solenidade apelando ao rebuscamento linguístico), na apresentação da Bíblia Grega que Frederico Lourenço descreve nas suas divergências com a Vulgata Latina da tradução de S. Jerónimo, do século IV,  adoptada pela Igreja Católica, com risco para quem tentasse a leitura do original grego ou hebraico: Se João Ferreira de Almeida, (o mangualdense que no século XVII, foi o pioneiro na tradução da Bíblia para português) pôde dedicar-se à sua meritória actividade, foi porque fugiu de Portugal e abjurou o catolicismo. Tendo falecido em 1691, no Extremo Oriente, Ferreira de Almeida nunca chegou a ver publicada a sua tradução da Bíblia (de resto deixada incompleta à data da sua morte); tal publicação só ocorreria em terra estrangeira, em meados do século XVIII, nos primeiros anos do reinado de D. José”. (Assim aconteceria também com as dezasseis cartas do Padre Barbadinho da Congregação de Itália, publicadas em Nápoles, também em meados do século XVIII, com o nome de “O Verdadeiro Método de Estudar” de Luís António Verney, afinal, também ele judeu e sábio, como tantos, há milhares de anos, dos quais partiu a descrição das “origens”, sempre errantes e perseguidos, talvez por serem “o povo eleito”.)
Assim, a Apresentação nos dá não só a referência à composição da Bíblia Grega e às suas divergências relativamente à composição da Bíblia Hebraica no número de livros do Antigo Testamento, e não contendo, esta última, naturalmente, o Novo Testamento, mas também a diferente distribuição dos capítulos segundo os cânones protestante e católico: Os 24 livros em hebraico constituindo os 39 do A.T. segundo o cânone protestante, 46 segundo o cânone católico, acrescentado de 7 livros escritos apenas em grego, sendo o A.T. grego ainda mais extenso do que o católico, com mais sete livros, num total de 53.
«Em suma: a presente tradução dará os 27 livros do Novo Testamento e os 53 do Antigo Testamento grego. Será, assim, a Bíblia mais completa que existe em português».
Segue-se, na «Apresentação», a referência às origens da Bíblia Grega, que terá nascido no Egipto, em Alexandria, no século III A.C., «com a adaptação para grego do Pentateuco (Torah)» feita por “72 estudiosos judeus” – (“daí a tradicional denominação «Septuaginta» ou «Bíblia dos Setenta»), reunidos no Egipto para esse fim pelo rei Ptolomeu Filadelfo”) – o que “reflecte a crescente helenização da cultura judaica da Diáspora, no período helenístico”.
Outros Livros foram sendo acrescentados durante os séculos seguintes.
“Pelo exposto - e não esquecendo a sua belíssima urdidura poético-literária – a Bíblia Grega é de inestimável importância para o estudo histórico tanto do judaísmo como do cristianismo. Note-se que é a partir da versão grega do Antigo Testamento que o judeu Jesus Cristo, pela mão dos evangelistas, cita a Escritura judaica. Outro judeu, Saulo/Paulo, cujos escritos gregos podemos ler no Novo Testamento, é um profundo conhecedor da Bíblia Grega e é com base nela que está construída a sua teologia. Na verdade, a primeira Bíblia das comunidades cristãs foi justamente a versão grega (recorde-se que o latim só passou a ser a língua da Igreja romana a partir do final do século II, quando, pela primeira vez, houve um bispo de Roma falante do latim: o papa São Victor, que morreu em 199. Para todos os padres da Igreja que escreveram em Grego, a “Bíblia dos Setenta” era, simplesmente, a Bíblia».
Outra vantagem da versão grega sobre a hebraica, é a de que, além de conter mais 14 livros do que esta, revela “subtis diferenças” do texto semítico, mais recente –“O texto massorético, que constitui há mil anos a nossa Bíblia Hebraica, foi estabelecido entre os séculos VII e X da era cristã. O Antigo Testamento grego reflecte, por conseguinte, um texto hebraico mais antigo” “frequentemente considerado melhor que o original hebraico”. “Trata-se de um marco da cultura universal que – pelo seu valor religioso, estético e histórico - urge conhecer.”
Para mais, é um texto que “tanto no que toca à tradução como aos comentários, privilegia de forma não-doutrinária, não confessional e não apologética a compreensão do texto grego”, que lhe dá a vantagem de privilegiar “a materialidade histórico-linguística do texto, sem a interferência de pressupostos religiosos.” É uma tendência, de resto, que igualmente se observa nas grandes universidades do mundo, a do estudo da Bíblia, “nos cursos de graduação e pós-graduação em Humanidades”, sem pressupostos de apologética religiosa.
Será esse o objectivo de Frederico Lourenço, de “explicar de forma clara e não tendenciosa as dificuldades linguísticas que o texto grego oferece um tantos momentos. No caso dos volumes referentes ao Antigo Testamento será também minha preocupação comentar comparativamente as versões grega e hebraica, de modo a fazer ressaltar diferenças e complementaridades”, não deixando, por vezes, de apontar as dificuldades da tradução, dada a ambiguidade dos termos.
Segue-se a referência à história conturbada da adopção da Bíblia, em Portugal, com as condicionantes impostas pela Igreja de Roma e adoptadas com maior ou menor rigor no nosso país, (onde o ensino jesuítico imperou, retardador ou mesmo impeditivo de uma dinâmica cultural de evolução racionalista e naturalista, bem distante dos tais pressupostos religiosos implicando prémio e castigo eternos, ou outros, de uma filosofia de rebuscado e vão artifício silogístico…).
A II Parte do longo Prefácio -  «Introdução aos Quatro Evangelhos” – é um historiar de diferenças entre os quatro Evangelhos que aproximam de nós figuras humanas - as dos quatro Evangelistas - em que mal pensáramos – (os que lemos a Bíblia como manancial de enredos mirabolantes) – e simultaneamente não só as circunstâncias do viver da família divina ao longo da sua caminhada na Terra com as respectivas divergências entre os relatos a respeito dos dados conhecidos, retomados ou não por cada um deles ou diferentemente circunstanciados. Frederico Lourenço os refere, proporcionando uma leitura de habitual enorme prazer, de argumentação clara e sempre enriquecedora, cujo início não posso deixar de transcrever, no referir sintético da Velha História e os motivos da sua imediata e explosiva divulgação, que acompanharia os séculos (Foi, de resto, a primeira obra a ser impressa na oficina  de Gutemberg, por meados do século XV):
«Na segunda metade do século I da era cristã, o manancial (já de si tão rico) de textos em língua grega veio a enriquecer-se ainda mais com o aparecimento de quatro textos que mudaram para sempre a História da Humanidade.
Nestes textos, o leitor escolarizado da época ter-se-ia confrontado com uma temática muito diferente da que conhecia Homero, Sófocles ou Platão. Pois nestes quatro textos não se falava das façanhas heróicas de reis e de guerreiros, nem se reportavam as conversas de aristocratas atenienses com o lazer e o dinheiro para se dedicarem à filosofia. Aqui falava-se de pescadores e de leprosos, falava-se de pessoas desprezadas pela sua baixa condição na sociedade, pelas suas deficiências físicas, pelos seus problemas de saúde mental, falava-se de figuras femininas que não eram as rainhas e princesas da epopeia e da tragédia gregas mas sim mulheres normais da vida real (a queixarem-se da lida da casa (Lucas, 10.: 40) , ou a exercerem, talvez, a mais antiga profissão do mundo). Acima de tudo, nestes quatro textos falava-se de um homem, filho de um carpinteiro nazareno: um homem carismático, cheio de compreensão por todo o tipo de sofrimento humano; um homem que, apesar de não ter praticado qualquer crime, acabou por morrer crucificado como se fosse um criminoso, no meio de dois ladrões. Esse homem - que muitos foram reconhecendo como “Ungido” (Khristós: Cristo) de Deus e até como Filho de Deus – era portador da mais extraordinária das mensagens, transmitida com palavras simples, por vezes sob a forma de pequenas histórias singelas, compreensíveis em qualquer aldeia (e, por isso, muitos termos por ele utilizados eram palavras da aldeia – como “estrume” (Lucas, 14: 35).
Por terem sido descritos num grego despretensioso, sem vestígio da sumptuosidade verbal dos grandes escritores helénicos, é provável que estes quatro textos nem merecessem ao leitor culto da época o alto estatuto de literatura. No entanto estes textos conquistaram o mundo antigo, tanto grego como romano. Lendo-os dois mil anos depois, não é difícil perceber porquê. Sobre um destes textos já se escreveu que se trata do “mais divino de todos os livros divinos” (a respeito do Evangelho de S. João): na verdade essa descrição assenta a qualquer um deles. São textos que, com a sua mensagem sublime veiculada por palavras cuja beleza desarmante ainda deixa arrepiado quem os leu e releu ao longo de uma vida inteira – estão simplesmente numa categoria à parte.»
E eis que Frederico Lourenço passa a referir as muitas interrogações sobre o quem, o onde e o quando da sua escrita que apetece reter, as múltiplas diferenças entre os chamados “Evangelhos sinópticos”, de Mateus, Marcos e Lucas, em que Jesus tem pudor em ser reconhecido como “Filho de Deus” ou “Ungido” (Cristo), ao contrário do Evangelho de João, “o discípulo amado”, em que Jesus “assume publicamente a natureza divina: “Eu e Pai somos um” (João, 10: 30).
São dezoito páginas elucidativas sobre as lacunas e as divergências entre os quatro Evangelhos, a texturamanta de retalhosdos “Evangelhos sinópticos” parecer muitas vezes um “emaranhado de plágios” recíprocos ou proveniente de uma fonte comum. “Quanto ao Evangelho de João, o seu estilo coeso evoca a imagem contrária à manta de retalhos (daí que se tenha querido associá-lo à própria túnica de Cristo, una e isenta de costuras.»
Não vou prosseguir com as transcrições, lembrando apenas o apontar das muitas divergências nos quatro Evangelhos sobre a vida dos pais de Cristo, e a virgindade de Maria, e os irmãos e os primos de Jesus, as condições e o local do  nascimento, e os múltiplos dados de todos conhecidos, com Reis Magos ou ausência deles, e Judas que se enforcou apenas num dos Evangelhos (S. Mateus), com a Última Ceia e o martírio final de Jesus, e a sua ressurreição contada de diferente modo em todos eles. Uma abordagem de 18 páginas  plena de referências a paralelismos e contrastes e argumentos ou sugestões que tanto elucidam e encaminham quem deseje ler ou reler uma obra extraordinária com mais atenção ainda, e que conclui o Prefácio ainda com os títulos «O grego dos Evangelhos e a presente tradução» mostrando que as divergências do grego clássico e  do bíblico resultam da natural evolução da língua nos 5 ou 6 séculos que medeiam entre os escritores antigos e os evangelistas, além do diferente público destinatário destes. E as dificuldades duma maneira de escrever sem pontuação nem separação de palavras que implica a repetição dos e, e, e ou o mas, ou logo ou então, necessariamente sobrecarregando e empobrecendo o discurso. Mas “o que as leitoras e os leitores encontram aqui em português não é nem mais nem menos do que aquilo que está no texto original.”
Uma tradução, pois, literal, que estou desejosa de iniciar.

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