Sabia
que havia diferenças, já por curiosidade lera excertos dos Evangelhos em termos
comparativos, mas nunca pensara nisso a fundo. A Bíblia é, para mim, o
maior livro da Humanidade, mesmo encarando-o com a mente leviana de quem não
acredita muito no que lê, a não ser no seu aspecto de aventura mirífica para os
mais diversos gostos, que preenche os espíritos de crianças e adultos, em
verdadeiras histórias de encantar, fornecedoras de diversidade criativa mas
onde também o cunho de verdade histórica, com a referência a nomes e lugares e
casos, apontando para as origens, é mais um motivo de reflexão e êxtase, que
tantos escritores e artistas inspiraria pelos tempos fora. E hoje, na minha
necessidade de ablução espiritual, em avidez de leitura de Frederico
Lourenço e dos arcanos das versões bíblicas, apenas me fiquei pelos “prolegómenos”
(a solenidade apelando ao rebuscamento linguístico), na apresentação da Bíblia
Grega que Frederico Lourenço descreve nas suas divergências com a Vulgata
Latina da tradução de S. Jerónimo, do século IV, adoptada pela Igreja Católica, com risco para
quem tentasse a leitura do original grego ou hebraico: “Se João Ferreira
de Almeida, (o mangualdense que no século XVII, foi o pioneiro na tradução da
Bíblia para português) pôde dedicar-se à sua meritória actividade, foi porque
fugiu de Portugal e abjurou o catolicismo. Tendo falecido em 1691, no Extremo
Oriente, Ferreira de Almeida nunca chegou a ver publicada a sua tradução da
Bíblia (de resto deixada incompleta à data da sua morte); tal publicação só
ocorreria em terra estrangeira, em meados do século XVIII, nos primeiros anos
do reinado de D. José”. (Assim aconteceria também com as dezasseis
cartas do Padre Barbadinho da Congregação de Itália, publicadas em Nápoles, também
em meados do século XVIII, com o nome de “O Verdadeiro Método de Estudar”
de Luís António Verney, afinal, também ele judeu e sábio, como tantos,
há milhares de anos, dos quais partiu a descrição das “origens”, sempre
errantes e perseguidos, talvez por serem “o povo eleito”.)
Assim,
a Apresentação nos dá não só a referência à composição da Bíblia Grega
e às suas divergências relativamente à composição da Bíblia Hebraica no
número de livros do Antigo Testamento, e não contendo, esta última,
naturalmente, o Novo Testamento, mas também a diferente distribuição dos
capítulos segundo os cânones protestante e católico: Os 24
livros em hebraico constituindo os 39 do A.T. segundo o cânone
protestante, 46 segundo o cânone católico, acrescentado de 7
livros escritos apenas em grego, sendo o A.T. grego ainda mais extenso do que o católico, com mais sete
livros, num total de 53.
«Em
suma: a presente tradução dará os 27 livros do Novo Testamento e os 53 do
Antigo Testamento grego. Será, assim, a Bíblia mais completa que existe em
português».
Segue-se,
na «Apresentação», a referência às origens da Bíblia Grega, que
terá nascido no Egipto, em Alexandria, no século III A.C.,
«com a adaptação para grego do Pentateuco (Torah)»
feita por “72 estudiosos judeus” – (“daí a tradicional
denominação «Septuaginta» ou «Bíblia dos Setenta»), reunidos no Egipto para esse
fim pelo rei Ptolomeu Filadelfo”) – o que “reflecte a crescente
helenização da cultura judaica da Diáspora, no período helenístico”.
Outros
Livros foram sendo acrescentados durante os séculos seguintes.
“Pelo
exposto - e não esquecendo a sua belíssima urdidura poético-literária – a Bíblia
Grega é de inestimável importância para o estudo histórico tanto do judaísmo
como do cristianismo. Note-se que é a partir da versão grega do Antigo Testamento
que o judeu Jesus Cristo, pela mão dos evangelistas, cita a Escritura judaica.
Outro judeu, Saulo/Paulo, cujos escritos gregos podemos ler no Novo Testamento,
é um profundo conhecedor da Bíblia Grega e é com base nela que está construída
a sua teologia. Na verdade, a primeira Bíblia das comunidades cristãs foi
justamente a versão grega (recorde-se que o latim só passou a ser a língua
da Igreja romana a partir do final do século II, quando, pela primeira vez,
houve um bispo de Roma falante do latim: o papa São Victor, que morreu
em 199. Para todos os padres da Igreja que escreveram em Grego, a “Bíblia dos
Setenta” era, simplesmente, a Bíblia».
Outra
vantagem da versão grega sobre a hebraica, é a de que, além de conter mais 14
livros do que esta, revela “subtis diferenças” do texto semítico, mais
recente –“O texto massorético, que constitui há mil anos a nossa Bíblia
Hebraica, foi estabelecido entre os séculos VII e X da era cristã. O
Antigo Testamento grego reflecte, por conseguinte, um texto hebraico mais
antigo” “frequentemente considerado melhor que o original hebraico”. “Trata-se
de um marco da cultura universal que – pelo seu valor religioso, estético e
histórico - urge conhecer.”
Para
mais, é um texto que “tanto no que toca à tradução como aos comentários,
privilegia de forma não-doutrinária, não confessional e não apologética a
compreensão do texto grego”, que lhe dá a vantagem de privilegiar “a
materialidade histórico-linguística do texto, sem a interferência de pressupostos
religiosos.” É uma tendência, de resto, que igualmente se observa nas
grandes universidades do mundo, a do estudo da Bíblia, “nos cursos de
graduação e pós-graduação em Humanidades”, sem pressupostos de apologética
religiosa.
Será
esse o objectivo de Frederico Lourenço, de “explicar de forma
clara e não tendenciosa as dificuldades linguísticas que o texto grego oferece
um tantos momentos. No caso dos volumes referentes ao Antigo Testamento será
também minha preocupação comentar comparativamente as versões grega e hebraica,
de modo a fazer ressaltar diferenças e complementaridades”, não
deixando, por vezes, de apontar as dificuldades da tradução, dada a ambiguidade
dos termos.
Segue-se
a referência à história conturbada da adopção da Bíblia, em Portugal,
com as condicionantes impostas pela Igreja de Roma e adoptadas com maior ou
menor rigor no nosso país, (onde o ensino jesuítico imperou, retardador ou
mesmo impeditivo de uma dinâmica cultural de evolução racionalista e
naturalista, bem distante dos tais pressupostos religiosos implicando prémio e
castigo eternos, ou outros, de uma filosofia de rebuscado e vão artifício
silogístico…).
A
II Parte do longo Prefácio - «Introdução
aos Quatro Evangelhos” – é um historiar de diferenças entre os quatro
Evangelhos que aproximam de nós figuras humanas - as dos quatro
Evangelistas - em que mal pensáramos – (os que lemos a Bíblia como
manancial de enredos mirabolantes) – e simultaneamente não só as circunstâncias
do viver da família divina ao longo da sua caminhada na Terra com as
respectivas divergências entre os relatos a respeito dos dados conhecidos, retomados
ou não por cada um deles ou diferentemente circunstanciados. Frederico Lourenço
os refere, proporcionando uma leitura de habitual enorme prazer, de
argumentação clara e sempre enriquecedora, cujo início não posso deixar de
transcrever, no referir sintético da Velha História e os motivos da sua
imediata e explosiva divulgação, que acompanharia os séculos (Foi, de resto, a primeira
obra a ser impressa na oficina de Gutemberg,
por meados do século XV):
«Na
segunda metade do século I da era cristã, o manancial (já de si tão rico) de
textos em língua grega veio a enriquecer-se ainda mais com o aparecimento de
quatro textos que mudaram para sempre a História da Humanidade.
Nestes
textos, o leitor escolarizado da época ter-se-ia confrontado com uma temática
muito diferente da que conhecia Homero, Sófocles ou Platão. Pois nestes quatro
textos não se falava das façanhas heróicas de reis e de guerreiros, nem se reportavam
as conversas de aristocratas atenienses com o lazer e o dinheiro para se
dedicarem à filosofia. Aqui falava-se de pescadores e de leprosos, falava-se de
pessoas desprezadas pela sua baixa condição na sociedade, pelas suas deficiências
físicas, pelos seus problemas de saúde mental, falava-se de figuras femininas
que não eram as rainhas e princesas da epopeia e da tragédia gregas mas sim
mulheres normais da vida real (a queixarem-se da lida da casa (Lucas,
10.: 40) , ou a exercerem, talvez, a mais antiga profissão do mundo). Acima
de tudo, nestes quatro textos falava-se de um homem, filho de um carpinteiro
nazareno: um homem carismático, cheio de compreensão por todo o tipo de
sofrimento humano; um homem que, apesar de não ter praticado qualquer crime,
acabou por morrer crucificado como se fosse um criminoso, no meio de dois
ladrões. Esse homem - que muitos foram reconhecendo como “Ungido” (Khristós:
Cristo) de Deus e até como Filho de Deus – era portador da mais extraordinária
das mensagens, transmitida com palavras simples, por vezes sob a forma de
pequenas histórias singelas, compreensíveis em qualquer aldeia (e, por isso,
muitos termos por ele utilizados eram palavras da aldeia – como “estrume” (Lucas,
14: 35).
Por
terem sido descritos num grego despretensioso, sem vestígio da sumptuosidade
verbal dos grandes escritores helénicos, é provável que estes quatro textos nem
merecessem ao leitor culto da época o alto estatuto de literatura. No entanto estes
textos conquistaram o mundo antigo, tanto grego como romano. Lendo-os dois mil
anos depois, não é difícil perceber porquê. Sobre um destes textos já se
escreveu que se trata do “mais divino de todos os livros divinos” (a respeito
do Evangelho de S. João): na verdade essa descrição assenta a qualquer um
deles. São textos que, com a sua mensagem sublime veiculada por palavras cuja
beleza desarmante ainda deixa arrepiado quem os leu e releu ao longo de uma
vida inteira – estão simplesmente numa categoria à parte.»
E
eis que Frederico Lourenço passa a referir as muitas interrogações sobre o quem,
o onde e o quando da sua escrita que apetece reter, as múltiplas diferenças
entre os chamados “Evangelhos sinópticos”, de Mateus,
Marcos e Lucas, em que Jesus tem pudor em ser reconhecido
como “Filho de Deus” ou “Ungido” (Cristo),
ao contrário do Evangelho de João, “o discípulo amado”,
em que Jesus “assume publicamente a natureza divina: “Eu e Pai somos um”
(João, 10: 30).
São
dezoito páginas elucidativas sobre as lacunas e as divergências entre os quatro
Evangelhos, a textura “manta de retalhos” dos “Evangelhos
sinópticos” parecer muitas vezes um “emaranhado de plágios”
recíprocos ou proveniente de uma fonte comum. “Quanto ao Evangelho de
João, o seu estilo coeso evoca a imagem contrária à manta de retalhos (daí que
se tenha querido associá-lo à própria túnica de Cristo, una e isenta de
costuras.»
Não
vou prosseguir com as transcrições, lembrando apenas o apontar das muitas
divergências nos quatro Evangelhos sobre a vida dos pais de Cristo,
e a virgindade de Maria, e os irmãos e os primos de Jesus, as condições
e o local do nascimento, e os múltiplos
dados de todos conhecidos, com Reis Magos ou ausência deles, e Judas que se enforcou
apenas num dos Evangelhos (S. Mateus), com a Última Ceia e o martírio final de
Jesus, e a sua ressurreição contada de diferente modo em todos eles. Uma abordagem
de 18 páginas plena de referências a paralelismos
e contrastes e argumentos ou sugestões que tanto elucidam e encaminham quem deseje
ler ou reler uma obra extraordinária com mais atenção ainda, e que conclui o Prefácio
ainda com os títulos «O grego dos Evangelhos e a presente tradução» mostrando
que as divergências do grego clássico e do bíblico resultam da natural evolução da
língua nos 5 ou 6 séculos que medeiam entre os escritores antigos e os
evangelistas, além do diferente público destinatário destes. E as dificuldades
duma maneira de escrever sem pontuação nem separação de palavras que implica a
repetição dos e, e, e ou o mas, ou logo ou
então, necessariamente sobrecarregando e empobrecendo o discurso.
Mas “o que as leitoras e os leitores encontram aqui em português não é
nem mais nem menos do que aquilo que está no texto original.”
Uma
tradução, pois, literal, que estou desejosa de iniciar.
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