sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Tópicos da «Nota Introdutória» de Frederico Lourenço a «Evangelho segundo Marcos»




«E elas, saindo, fugiram do sepulcro, pois dominava-as um tremor e um êxtase. E nada disseram a ninguém: tinham medo, pois » (16:8) (*)

1- Começando pelo fim:
(*) Nota final de F L: 16:8: «O Evangelho de Mateus termina aqui porque foi este o desfecho pretendido pelo autor? Terá o evangelista adoecido ou morrido antes de terminar a sua obra? Ou terá ele escrito uma continuação  que se perdeu? Se foi esse o caso, em que circunstâncias? Danificação ou perda de papiro(s)? Ou será concebível que  essa continuação tenha avultado incómoda, por alguma razão, e foi por isso eliminada? São perguntas para as quais não temos respostas. Certo é que os versículos, fraquíssimos, que foram mais tarde acrescentados, são quase universalmente considerados espúrios. Para quem gosta de ver no fim abrupto em termos musicais, uma “cadência interrompida”), uma bela maneira de fechar o texto, com tudo no ar relativamente à realidade da ressurreição, há uma dúvida que tem de ser levantada: é concebível que um livro em língua grega possa terminar com a palavra “pois” (a partícula gár)? É que o Evangelho termina com as palavras ephoboûnte gár (tinham medo, pois). É um desfecho muito pouco usual na literatura grega. Contudo, podemos dizer em seu abono que há um paralelo no final do 32º tratado do filósofo neoplatónico Plotino (cf. Enéadas, 5.5) que escreveu no séc. III da era cristã. (V. bibliogr. citada).

2-Estilo:
-  «simples, popular, mas de intenso encanto literário».
-  «Não se trata de uma manta de retalhos que partiu de informações várias.
-  «Redacção tersa, o ritmo é veloz e as frases estão carregadas de dramatismo.
-  «Foi aproveitado (para não dizer plagiado) por Lucas e Mateus.
– «Sobre o Evangelho de Marcos podemos dizer que é um dos livros mais arrebatadores que alguma vez foram escritos.(bibliogr.)»

3- Quem foi Marcos?
a) - O texto não faz referência ao narrador.
b) - «Uma assinatura encriptada, à maneira de Hitchcock, a referência ao jovem nu? (14:51-52)”: “E os discípulos , deixando-o, fugiram todos. Um certo jovem seguia-o envolto apensas num lençol por cima da nudez. Prenderam-no, mas ele, deixando o lençol, fugiu nu.”  Nota de F. L.: «Já muitas pessoas se perguntaram se este jovem que foge, nu, do local onde Jesus é preso, será como que a assinatura cifrada do autor do Evangelho. O jovem (neanískos) será Marcos? Claro que a própria estranheza desta insólita ocorrência tem provocado todo o tipo de leitura simbólica (pensando uns que se trata de uma alegoria da ressurreição; outros do baptismo – e por aí fora).»
c) - «De acordo com a História Eclesiástica (3.39.14) de Eusébio, escrita no séc. IV mas que se apoia em fontes mais antigas, Marcos foi companheiro e tradutor-intérprete (hermêneutês) de Pedro. Marcos, segundo esta tradição da Igreja primitiva, terá registado tudo o que Pedro lhe contou sobre Jesus com exactidão (akribôs), ainda que não ordenadamente (ou méntoi táxei).»
d) - A informação de Eusébio é contestada durante o séc. XIX.
e) - «Hoje também parece improvável, à maior parte dos estudiosos, que o evangelista possa ser identificado com João Marcos referido como companheiro de Paulo nos “Actos dos Apóstolos” (12:12-17); 15:37-39).»
f) - «Por outro lado, a primeira carta atribuída a Pedro no NT alude à presença em Roma (metaforicamente referida como “Babilónia”)  de um tal Marcos como companheiro do autor da carta (1 Pedro 5:13). Que esta carta, atendendo à beleza e à perfeição do seu grego, tenha sido escrita por Pedro, pescador da Galileia, é algo que legitimamente podemos pôr em causa; contudo a presença em Roma de alguém chamado Marcos, ligado a um círculo de primeiros cristãos, é plausível e merece ser levada a sério (independentemente da questão de quem escreveu a carta atribuída a Pedro).»

4 – Conteúdos comprovativos da identificação do evangelista com este último Marcos:
a) «Atendendo a que este Marcos é o próprio evangelista, há vários elementos que, no interior do  seu texto, corroboram um conhecimento da realidade romana:
              « - Latinismos que “maculam” a pureza do seu grego; (e do grego de Mateus e Lucas, quando estes copiam Marcos) em diversas paragens deste Evangelho; Ex:  transliteração para grego dos latinismos: modius (4:21): legio (5:9); speculator (6:27); quadrans (12:42) e centurio (15:39).»
                « - Paralelamente, algum conhecimento da realidade romana tem de ser pressuposto no facto de Marcos (10:20) colocar na boca de Jesus palavras sobre o divórcio que admitem a possibilidade de a mulher se divorciar do marido: a realidade judaica, que o Jesus histórico conheceu, previa apenas que o marido se divorciasse da mulher. Parece perfeitamente previsível, pois, que o Evangelho de Marcos tenha  escrito em Roma como reza a tradição

5 –Tempo da escrita do Evangelho de Marcos:
            - « Acreditar no relato tradicional de que Marcos escreveu sob influência de Pedro implica, para alguns, aceitar que o texto foi escrito antes da destruição de Jerusalém, que ocorreu no ano 70 da nossa era: pois Pedro terá sido martirizado no reinado de Nero, imperador que morreu em 68. O problema, contudo, reside na dificuldade de aceitarmos que quem escreveu o Capítulo 13 do Evangelho de Marcos o fez sem conhecimento da destruição de Jerusalém ordenada por Tito no ano 70. Assim, os estudiosos que colocam considerações de natureza histórica –objectiva acima de outras de índole eclesiástica tendem a aceitar que, à semelhança dos outros três Evangelhos canónicos, o Evangelho de Marcos foi escrito depois do ano 70

6- Só em Marcos:
a) - «Apesar de seguido por Lucas e Mateus, há elementos em Marcos que estão ausentes dos outros evangelistas:
                «-Para a frase bombástica de Jesus em 2: 27 (“o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado”) não encontramos paralelo exacto em Mateus, Lucas ou João.
                «- Nem os outros Evangelhos nos mostram Jesus visto como um louco pela sua própria família (3: 20-21): «Tendo Jesus chegado a casa, de novo a multidão acorreu, de tal maneira que nem podiam comer pão. E quando os seus familiares ouviram isto, saíram para o refrear. Pois diziam: “Enlouqueceu”.»
                « - Apesar de não mencionar nem o nascimento de Jesus nem a virgindade de Maria, o Evangelho de Marcos é o único texto do NT em que Jesus é referido por meio da expressão “filho de Maria” (6:3).
« - Para quem acredite que foi Pedro a instruir Marcos sobre todas as informações atinentes à vida e morte de Jesus, causa estranheza o facto de ser este o único Evangelho que não menciona o nome do sumo sacerdote.
 « - Por outro lado só Marcos regista que Jesus era ele próprio carpinteiro: “ (6:3): “Não é ele o carpinteiro, o filho de Maria, e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? E as suas irmãs não estão aqui entre nós? E escandalizaram-se com isto.”»
« - Atendendo à importância dos samaritanos nos outros Evangelhos – quer como povo detestado pelos judeus, quer como povo a que pertencem inesquecíveis personagens como “o Bom Samaritano” de Lucas ou “a Samaritana”  com quem Jesus conversa no Evangelho de João – surpreende que, em todo o Evangelho de Marcos, não haja uma única referência a este povo. Talvez na Roma onde escreveu este evangelista de nome latino (Marcus), que mostra por várias vezes desconhecer a geografia da Galileia e da Judeia, o chauvinismo antissamaritano  de Israel não fizesse muito sentido.»

II- Estrutura
Síntese dos capítulos, segundo os títulos de Frederico Lourenço:

1- João Baptista; O baptismo de Jesus; Tentações no deserto; Início do ministério na Galileia; O chamamento dos primeiros discípulos.
2-  Cura de um paralítico; O chamamento de Levi (Mateus); Sobre o Jejum; O vinho novo em odres velhos; “O sábado foi feito para os homens e não os homens para o sábado»
3 – Jesus cura uma mão deformada; a multidão junto do lago; A escolha dos doze; A preocupação dos familiares de Jesus; Jesus e Belzebu; mãe e os irmãos de Jesus.
4 – Parábola do semeador: A lâmpada; a medida; o grão que germina secretamente e o grão de mostarda; Jesus acalma a tempestade.
5 – O possesso de Gerasa; Jesus e a filha de Jairo; A mulher que há doze anos sofria um fluxo de sangue.
6 – Jesus incompreendido em Nazaré; Missão dos doze; Herodes e Jesus; Morte de João Baptista; A multiplicação dos pães e dos peixes; Jesus caminha sobre a água.
7 – Jesus e os preceitos da lei judaica; A mulher siro-fenícia; Jesus cura um surdo-mudo.
8 – Nova multiplicação de pães e de peixes; O sinal pedido pelos fariseus; Jesus cura o cego de Betsaida; Pedro reconhece Jesus como Messias; O primeiro anúncio da Paixão.
9 – Transfiguração; Jesus cura um epiléptico; O segundo anúncio da Paixão; O maior no Reino; Sobre o escândalo.
10 – Jesus fala sobre o divórcio; Jesus e os mais pequenos; O homem rico; A dificuldade de os ricos entrarem no reino de Deus; O desprendimento; O terceiro anúncio da Paixão; Jesus cura um cego em Jericó.
11 – Entrada de Jesus em Jerusalém; A figueira estéril; Jesus expulsa os vendilhões do templo: A figueira seca e o poder da fé; Jesus e as autoridades judaicas.
12 –Parábola dos vinhateiros assassinos; O tributo a César; A ressurreição dos mortos; O mandamento do amor; A oferta da viúva pobre.
13 – Jesus antevê a destruição de Jerusalém; Os falsos Messias.
14 – Os judeus procuram matar Jesus; A unção de Betânia; A traição de Judas; A preparação da Ceia Pascal; A instituição da Eucaristia; Jesus em Getsémani; Prisão de Jesus; Jesus perante as autoridades judaicas; As três negações de Pedro.
15 – Jesus perante Pilatos; Barrabás; Jesus coroado de espinhos; O caminho do Calvário; A crucificação de  Jesus; A sepultura de Jesus.
16 – As mulheres vão ao sepulcro e não encontram Jesus.

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