quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Lições de guerras


Trata-se, nos textos infra, de histórias sobre coisas de guerra, o segundo texto – «A tropa do Solnado» - de são José Almeida, vindo mais por um desfastio de brinquedo, embora de intenção sarcástica, a contrastar com o primeiro texto, de Manuel Loff, - «As revoluções no centenário de Outubro» – sério e severo como estudo de tese que é, abordando várias revoluções e a sua dimensão, contendo citações esclarecedoras sobre os efeitos da revolução russa, como meio comparativo de análise. O texto de São José Almeida, a propósito do roubo de armas de Tancos, caricaturando, como o caso merece, através da rábula de Solnado, no definhado prato que nos foi por várias vezes servido – montanha que pariu o rato costumeiro do nosso alarme e incúria.

As revoluções no centenário de Outubro
Se há atitude que diz muito do ciclo de desdemocratização em que vivemos é, aliás, este regresso da velha abordagem que procura o cabecilha, em vez de entender o movimento.
Manuel Loff
4 de Novembro de 2017

Foi o acontecimento central da história do séc. XX”, dizia Eric Hobsbawm (A Era dos Extremos, 1994), “da mesma forma como a Revolução Francesa o foi do séc. XIX”. Sendo puros produtos da modernidade ocidental, em toda a sua contradição interna, a qual ajudaram a transformar como nenhum outro processo político, ambas foram transformadas em objetos históricos malditos por todas as direitas do mundo, que as tentaram desocidentalizar como se, numa rançosa lógica colonial, elas não fossem mais do que processos de mudança tumultuária às mãos de massas ignorantes e fanatizadas. Entre a francesa de 1789 e a russa de 1917, Hobsbawm via uma diferença fundamental: 1917 teve repercussões muito maiores e que se prolongaram por muito mais tempo” do que 1789. “A Revolução de Outubro suscitou o maior, de longe, movimento revolucionário organizado da história moderna”, fazendo com que “ao fim de apenas 30 ou 40 anos da chegada de Lenine à estação da Finlândia em Petrogrado”, em abril de 1917, “um terço da humanidade vivesse sob regimes que decorriam diretamente dos ‘Dez dias que abalaram o mundo’”, como lhes chamou John Reed. De uma forma ou doutra, todos os movimentos emancipatórios do séc. XX se inspiraram nos bolcheviques, na sua luta contra o capitalismo e o imperialismo como modelos de dominação, na Alemanha, na Hungria ou no México dos anos 1917-23, na Espanha de 1936-39, nas resistências antifascistas da II Guerra Mundial, na China de 1949, em Cuba (1959) e nas lutas anticoloniais, até mesmo no Portugal de 1974-75, como tantas vezes Soares achou... Ao contrário da Revolução Americana de 1776, que manteve intactas escravatura e supremacia racial e que abriu caminho à colonização genocida de toda a América do Norte, as revoluções francesa e russa inspiraram durante décadas por todo o mundo movimentos de emancipação das classes exploradas e das minorias étnicas, mas só a russa se lançou na democratização radical da propriedade e, por exemplo, na emancipação das mulheres ou das minorias de orientação sexual. Como escreveu Moshe Lewin (O Século Soviético, 2005), “as representações do sistema soviético” reproduzidas no Ocidente, “largamente influenciadas pelas realidades ideológicas e políticas de um mundo bipolar”, baseadas em “juízos fundamentalmente ideológicos”, têm, desde sempre, impedido avaliar com rigor a dimensão social e cultural do projeto soviético. A sobrepolitização da análise do sistema soviético levou — e leva ainda — a que se “estude a URSS exclusivamente no seu estatuto de Estado ‘não democrático’ e se discuta o que não era, em vez de tentar compreender o que era”.
Na era do medo e do choque como instrumentos de gestão política (Naomi Klein), é revelador que a patologização das revoluções como processos de mudança tenha desenterrado as formas mais preconceituosas de encarar a história. Entre os piores vícios de análise das revoluções que por aí campeiam neste centenário de 1917 estão, antes de mais, essa essencialização da violência como caraterística genética da Rússia e da sua cultura, ou a ideia de que as revoluções, mais do que resultado da ação e da tomada de posição de grandes atores coletivos e da intersecção de tendências profundas (que maçada ter de as estudar...), são produto da manipulação de revolucionários profissionais, de líderes sobre-humanos (Lenine, Estaline) descritos como protagonistas da violência ideocrática, e, portanto, atores sociais desligados do conjunto da sociedade. Da mesma forma que as teses tradicionais da sovietologia ocidental (sobretudo Robert Conquest, 1968) e o próprio discurso oficial da URSS pós-estalinista e da Rússia pós-soviética elevaram Estaline ao altar de “tirano sanguinário empenhado em conseguir o poder total”, dessa forma “esquivando-se ao desafio narrativo de ter de dar conta da variedade das vítimas e dos perpetradores e desentranhar a complexa história da violência política na URSS” (James Harris, O Grande Medo, 2016), o discurso que se tem produzido no centenário continua a falar da “Revolução de Lenine”, que, por essa mesma autoria individual, não teria sido “uma marcha de forças sociais abstratas e de ideologias” (Orlando Figes, A Tragédia de Um Povo, 1996). Se há atitude que diz muito do ciclo de desdemocratização em que vivemos é, aliás, este regresso da velha abordagem que procura o cabecilha, em vez de entender o movimento.


A tropa do Solnado
Todos os desenvolvimentos do caso do roubo das armas no quartel de Tancos fizeram-me lembrar o disco do soldado/Solnado
Público, 4 de Novembro de 2017
São José Almeida
 “Vocês não podiam atacar depois de almoço? Pois. Ou então vinham mais pela fresquinha. Sim. Aproveitam e almoçam cá com a gente. Tá bem. Vêm muitos? Ena, ca brutos! Não, é que a gente não sabe se tem cá balas para todos.”
Esta passagem pertence a Raul Solnado e faz parte de um disco intitulado É do Inimigo?, que fez história nos anos 60 do século passado e pode ser ouvido ainda no YouTube. Recebi-o de prenda quando fiz 6 ou 7 anos. Ouvi-o à exaustão no pick-up da sala. Ainda hoje me lembro de algumas passagens, como aquela em que o soldado/Solnado dizia ao suposto interlocutor do outro lado do telefone: “Tá lá, é do inimigo? Vocês podiam parar aí a guerra um bocadinho que o nosso capitão está com dores de cabeça?”
Não sei se há algum capitão ou oficial do Exército português com dores de cabeça neste momento, mas todos os desenvolvimentos do caso do roubo das armas no quartel de Tancos me fizeram lembrar o disco do soldado/Solnado. É que o absurdo do que se tem passado ultrapassa o imaginável e transformou-se numa nova obra-prima da comédia nacional.
Primeiro veio a notícia do roubo em Julho, quando o país vivia ainda a tragédia de Pedrógão Grande. Do quartel de Tancos tinham sido roubados caixotes de armas e munições. Depois ficou a saber-se que a segurança electrónica e a gravação dos vídeos de vigilância estavam avariados há meses e que as rondas dos soldados do quartel não tinham sido feitas como deviam — provavelmente estiveram nas camaratas a ouvir no YouTube o soldado/Solnado a telefonar para o inimigo.
Perante o vazio do poder do Estado face à gravidade da falha de segurança e defesa da soberania, com o primeiro-ministro de férias, Marcelo Rebelo de Sousa assumiu o dever a que o Presidente da República está obrigado não só como primeiro órgão de soberania, mas também como comandante supremo das Forças Armadas. Apresentou-se no quartel de Tancos para mostrar que o Estado existia e arrastou consigo o ministro da Defesa, que até então passara entre os pingos da chuva deste caso sem se molhar.
Quando se começou a perceber a gravidade desta situação, ouviu-se falar até dos riscos de potenciais acções terroristas em território nacional. Um receio contrabalançado, estava o primeiro-ministro de novo em Lisboa, com declarações de desvalorização máxima do roubo feitas por responsáveis governamentais e das Forças Armadas. Afinal, o que tinha sido roubado não era importante, tratava-se de material de guerra fora de prazo, era refugo obsoleto. O cúmulo da relativização irresponsável do caso aconteceu quando o ministro da Defesa, numa entrevista, resolveu colocar a hipótese de nem sequer ter havido roubo. Era mais um momento do soldado/Solnado. E, pelo sim, pelo não, fechou-se a guarda de armamento em Tancos.
Para espanto geral, esta semana, as Forças Armadas revelaram que as armas roubadas foram encontradas na Chamusca e tinham sido descobertas por denúncia de um telefonema — terá sido um descendente do soldado/Solnado que o fez? A maior surpresa é que as armas e munições encontradas trazem com elas um brinde. Voltando aos tempos “pré-históricos” da minha infância, lembro-me de a minha mãe contar: “Dantes, nas praças de Lisboa, quem comprava uma dúzia de alfaces trazia 13.” Uma história que nunca percebi se só era ironia, pois nunca confirmei a regra, mas que serve perfeitamente no rocambolesco caso de Tancos. É que o material de guerra encontrado tinha mais uma caixa do que as roubadas ou desaparecidas.
Pus-me a imaginar o telefonema de denúncia do local onde estava o material roubado e como seria se tivesse sido feito por um descendente do soldado/Solnado. Talvez tivesse sido assim: “Tá lá, é do inimigo? É para dizer que fomos aí roubar umas armas e munições, porque tínhamos falta, mas que agora as pusemos na Chamusca e já as podem ir buscar. Olha, mais uma coisa: como paga de juros pela utilização do vosso material de guerra, devolvemos um caixote a mais. Obrigadinho!”



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