E ainda por cima com um humor de excelente qualidade. Mas
tudo isso que se passou só vem provar a nossa falta de classe e de educação
generalizada, desde o povo às cúpulas mentoras, que deveriam ter outro tento e
vergonha na cara. Apre!
O
sacrossanto panteão de Santa Engrácia
OBSERVADOR, 18/11/17
Se a república é laica,
porque se apropriou de uma antiga igreja católica para seu panteão nacional? O
laicismo não é capaz de arranjar um espaço próprio, onde sepultar os seus
próceres?
Entre as várias
indignações, mais ou menos veementes, pelo banquete servido no panteão
nacional, que também dá pelo nome de igreja de Santa Engrácia, chamou-me a
atenção o artigo de Rui Tavares, no Público de 13 de Novembro passado. Não sou
supersticioso, mas a data foi aziaga para o historiador que, como já aqui se
provou, nem sempre é fidedigno em relação às questões históricas (cf. Cristianismo
e Jogos Olímpicos, no Observador de 27-8-2016).
Rui Tavares diz que, desde
que esteve em Santa Engrácia, felizmente não como ilustre defunto mas como
jovem guia turístico, “o monumento sempre esteve aberto a eventos mais ou
menos culturais, mais ou menos festivos, bem como – paradoxalmente para um
panteão nacional de uma república laica – a missas católicas”.
Não surpreende que, num
panteão nacional, se organizem eventos culturais e até festivos, desde que se
respeite a dignidade do espaço e a memória dos que aí repousam ou são evocados.
É razoável que, nesse local, se realizem efemérides relativas a esses notáveis
portugueses como, por exemplo, a apresentação de obras sobre essas personalidades.
Mas não seria aceitável, por razões óbvias, um espectáculo circense, ou
humorístico. Portanto, eventos culturais e festivos sim, desde que condignos.
Rui Tavares indignou-se
pelo facto de, no panteão nacional, se terem celebrado “missas católicas”.
O historiador parece ignorar a história daquele templo, inicialmente mandado
construir pela Infanta D. Maria, filha de D. Manuel I. “Numa noite de muita
tormenta”, a 19-2-1681, a igreja ruiu, pelo que, no ano seguinte, D. Pedro II,
ainda regente, iniciou a sua reedificação, concluída só em pleno século XX.
Mais do que perguntar o que é óbvio – ou seja, por que se celebram missas
numa antiga igreja – o cronista deveria questionar o que fazem lá as cinzas, ou
os cenotáfios, de alguns ateus e anticatólicos. Se a república é laica,
por que se apropriou de um edifício religioso para panteão nacional?! O
laicismo não é capaz de arranjar um espaço próprio, onde sepultar os seus
próceres? Ou deve-se concluir que a república, que sempre foi muito expedita em
se apoderar do património católico, não tem onde honrar os restos mortais dos
seus principais vultos?! Na verdade, se não fosse a religiosa hospitalidade de
Santa Engrácia, é de crer que os egrégios avós do regime jazeriam nalguma vala
comum …
É verdade que a actual
Santa Engrácia nunca esteve dedicada ao culto católico, porque o Estado a
retirou à Igreja antes de concluídas as suas infindáveis obras. Por isso, é
pouco provável que lá se tenham celebrado missas. Mas, se alguma vez isso
aconteceu, será de espantar que, num edifício construído para ser uma igreja
católica, dedicado a uma santa católica, se celebre uma missa católica?!
Entenderá o cronista, ao jeito soviético, que as igrejas só servem para museus,
como o do dinheiro, na que foi de São Julião, na Baixa lisboeta, ou para
jantaradas românticas à luz das velas que, por sinal, abundam nas igrejas, como
agora aconteceu em S. Engrácia?!
Pergunta ainda o “fundador
do Livre”: “Porém, se acham que a realização de um banquete sob a cúpula
central ofendeu a memória de Amália na sala lateral, por que raio [sic] ninguém
se lembra de perguntar se as missas também lá celebradas no altar principal
ofendem os republicanos Teófilo Braga e Manuel de Arriaga na outra sala?”
Há aqui, claramente, um
problema de salas: se se fritarem sardinhas junto ao túmulo de Amália, a
sua memória é profanada, mas se for na sala ao lado, pelos vistos já não há,
para este historiador, nenhum problema. O churrasco é cozinhado sobre a
sepultura de Teófilo Braga, ou de Manuel de Arriaga? Muito mal, segundo Rui
Tavares, mas se for na divisão contígua, a veneranda memória dos dois
presidentes da república fica imaculada. Serve de aparador o túmulo de Aquilino
Ribeiro? Tal seria, certamente, um ultraje ao escritor. Mas, se se apoiarem os copos
e as garrafas sobre o cenotáfio de Luís de Camões, não há crise, porque o
imortal poeta jaz no mosteiro dos Jerónimos. Conclusão do cronista: podem-se
servir no panteão, sem desdouro dos que aí jazem, lautos banquetes, desde que
não seja onde houver sepulturas.
Uma questão, que parece
não ter sido ainda referida pela imprensa, é a da escolha de um local conotado
com a religião católica, em detrimento das demais confissões religiosas. Por
que razão não se ofereceu o dito jantar numa sinagoga, ou numa mesquita?! Não
deveriam os escrupulosos guardiões da laicidade da república denunciar este
escandaloso favorecimento da Igreja?! Os católicos ficar-lhes-íamos muito
gratos …
Se é uma violência sepultar
um não-católico numa ex-igreja, como Santa Engrácia, o Estado português deveria
providenciar espaços afectos a outras religiões para esse fim. Se quiser
fazê-lo sem encargos para o erário público, pode proceder com essas religiões
como sempre fez com a católica: esbulha os seus templos e destina-os depois
para o fim que mais lhe aprouver. Quantos quartéis, escolas, repartições e
hospitais públicos foram instalados em edifícios roubados à Igreja católica, a
começar pelo próprio parlamento, ex-convento beneditino?! Para ateus e
agnósticos, seria conveniente criar alguns campos de mártires laicos da pátria,
paradoxais extensões ateias do panteão nacional. Por exemplo, o Campo Pequeno
seria uma feliz opção para os adeptos do PAN e, o Campo das Cebolas, muito
apropriado para vegetarianos.
“Querem fazer do panteão
sacrossanto?” – pergunta, indignado, o “fundador do Livre”, partido também
finado e, por isso, sério candidato a próximo inquilino de Santa Engrácia. Se o
malogrado fundador soubesse que ‘panteão’ significa, etimologicamente, ‘todos
os deuses’, certamente teria concluído que esse espaço, pela sua própria
definição, não pode deixar de ser sacrossanto.
Para além da piedade
religiosa, que é transcendente, também há uma piedade natural, que se traduz na
veneração que os filhos devem aos seus pais e a nação aos seus mais ilustres
filhos. Quando se falta ao respeito devido à memória dos pais da pátria, sejam
ou não crentes, não é apenas a eles que se insulta: também se ofende a história
e a dignidade de Portugal.
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