Um artigo de José Pacheco
Pereira «Chamem o Antifluffy» e outro de António Barreto «SE», são naturalmente críticos - o
primeiro sobre a necessidade de menos dispêndio de afectividade e mais de
racionalidade prática para bem gerir a travagem das várias feridas,
provenientes, entre outros danos, de falhas na governação; o segundo, uma
sequência antitética de ses introduzindo ora sequências negativas de derrota, ora
sequências positivas de conserto, num estilo ondulatoriamente inconformista,
sobre uma Justiça que não há meio de agir e consertar, sempre nas trevas de uma
nudez débil da verdade sob o manto tosco
da mentira. Dois textos para reler e meditar.
Chamem o Antifluffy
José Pacheco Pereira
Público, 4 de Novembro de
2017
Os meus amigos do Media Lab
for Citizenship, que organizam um evento anual, o Future Places, criaram uma
personagem de um jogo anti-Pokémon, chamada Antifluffy. Conforme o nome
indica, a personagem que se desloca nos eventos, com um homem por baixo, é
exactamente o contrário de fofinha (nem acredito que escrevi esta palavra...),
e por isso ninguém quer acariciar um Antifluffy com o seu corpo coberto de
fitas negras de celulóide. Pois eu lembrei-me do Antifluffy como uma
necessidade pública urgente para soltar no meio da nossa política, na
Presidência, no Conselho de Ministros, em Belém e S. Bento e nos candidatos do
PSD, onde também estão precisados de um antiproximidade. E também nos jornais,
nas rádios e na televisão, que transpiram “casos humanos” e a exploração
comercial da tragédia dos fogos, facilitando o perigoso contínuo da má política
para o populismo.
Eu explico-me: já não
posso com tantos afectos, tanto desejo de estar em cima das pessoas, tanta
vontade de envolver tudo e todos numa sopa de pathos, como se fosse
o pathos o que mais falta à vida pública portuguesa. Bem pelo
contrário, o que falta é um quantum de racionalidade, nem sequer
um quantum, que já por si só seria revolucionário, mas uma gigantesca dose
de razão, de argumentos, de raciocínios, em vez de tornar a vida pública num
festival de beijos e abraços, e de muita lamechice em relação à dor alheia.
O problema é que quase se pode fazer uma correlação: quanto mais
lamechice, menos reformas e menos mudanças. E de mudanças e reformas é que a
nossa vida pública mais precisa.
Como muitas vezes escrevi e
repito, a democracia precisa de doses equilibradas
de logos (razão), pathos (emoção) e ethos (moral,
virtude) e infelizmente está longe de as ter. Bem sei que atravessamos uma
tragédia e as memórias vivas dessa tragédia estão por todo o lado. Compreende-se
a emoção e seria mau que não existisse, e isso fez a diferença que tramou o
primeiro-ministro e bem. Mas, passada a primeira e genuína impressão,
naturalmente emotiva, há toda uma sobriedade que falta, há todo um momento em
que há que dizer chega e passar para aquilo que é mais útil para todos, a
começar por aqueles que perderam tudo nos fogos. Essa altura já passou há
muito, e continuar no terreno do pathos, entre o genuíno e a exploração
sentimental, não ajuda a resolver problema nenhum. Bem pelo contrário, é a
melhor receita para uma política de má qualidade. O pathos é inimigo
do tempo que é necessário para pensar, vive da imediaticidade.
Sabemos que o Presidente da
República é aquilo a que já chamei, muito antes dos fogos, o Príncipe dos
Afectos. Ninguém põe em causa que teve um papel na descompressão da
depressão que vinha dos anos do “ajustamento” e da crise gerada nas últimas
eleições. Nem sequer se pode pôr em causa que, em determinados momentos, os
seus gestos são apaziguadores e necessários. Mas, se há coisa em que ter conta,
peso e medida é vital para fazer a diferença, é na afectividade pública. Aliás,
já havia excessos anteriores, em que desde a queda de uma avioneta até um
acidente numa fábrica pirotécnica motivavam uma visita do Presidente, cuja
popularidade é incontestável, mas cuja quase obsessão pela proximidade tem
efeitos políticos perversos. Não é que pense que o Presidente queira ser
protagonista de uma política populista que coloque em risco a separação de
poderes e pretenda um poder pessoal, mas os efeitos sociais de um estilo
populista de fazer política são perigosos, para além do protagonismo pessoal do
actual Presidente. Uma das razões desse risco é ajudar a criar um padrão de
comportamento dominante que pressione tudo e todos a segui-lo num mesmo
“estilo”. A pressão sobre António Costa para um pedido de desculpas começou por
ser uma constatação de que Costa procedera mal no momento mais agudo dos fogos,
para se tornar uma exigência para que ele se comportasse “como o Presidente”. É
o mesmo tipo de padrão que leva Pedro Santana Lopes a fazer a diferença do seu
adversário centrada na “proximidade com as pessoas” e não na qualidade das
políticas e propostas. E é, muito mais grave pelo seu poder multiplicador, o
discurso da comunicação social, em particular as televisões “estetizando” os
incêndios e valorizando o poder comunicativo da dor.
A política que se move
preferencialmente no terreno das emoções, seja com pretexto na corrupção, seja
na reacção à criminalidade, seja nas causas de indignação anti-“sistema”, seja
também na sequência de tragédias quer individuais, quer colectivas, tem efeitos
devastadores na racionalidade, nas pressões sobre os tribunais e nas “sentenças
exemplares”, no justicialismo face ao crime, na falta de uma solução
equilibrada para o pagamento que a democracia deve fazer aos seus eleitos ou
aos seus custos de financiamento, resultando sempre no alimento que dá ao
populismo. O populismo moderno, cujo reservatório são as “redes sociais”, tem
hoje uma capacidade de potenciação enorme à medida que as mediações
fundamentais para a democracia entram em crise, a começar pelo jornalismo
profissional, ou a hierarquia dos saberes, ou as instituições representativas.
Uma democracia não pode
viver sob uma espécie de ditadura dos afectos, o que não quer dizer que possa
viver sem emoções. Mas trata-se de coisas distintas, sendo que, se se abafa o
papel da racionalidade, o que acontece depois destes banhos afectivos, são
muito más decisões, tomadas à pressa para dar um escape à pressão, mas que ou
não mudam nada, ou, pior ainda, inquinam por muito tempo condições que a
tragédia proporciona para realizar melhorias. Não é crueldade nenhuma
perceber que a dimensão da tragédia facilita reformas reais, porque criou uma
tábua rasa a partir da qual muitas medidas de raiz podem ser tomadas, porque o
“mundo velho” ardeu e já não existe. Por exemplo, no caso dos incêndios,
há medidas imediatas que não podem ser adiadas, e há medidas que devem ser
adiadas para serem bem pensadas e decididas com discernimento. É este segundo
caso que o populismo afectuoso atinge com a sua pressão do imediato.
Aquilo de que a
democracia mais precisa são coisas que cada vez mais escasseiam: tempo, espaço,
solidão produtiva, estudo, saber, silêncio, esforço, noção da privacidade e
coragem. Não precisa de grandes inteligências, nem de grandes moralidades
públicas, mas sim de bom senso e de honestidade básica. Exige uma enorme
parcimónia na exibição pública e, sem dúvida, uma certa capacidade de
comunicação aliada a uma severidade na fala pública. E precisa, como pão para a
boca, de mais razão, menos soundbites, mais argumentos e menos espelhos em
que se ouve, ou lê ou vê apenas aquilo de que se gosta, ou de imagens que nos
manipulam o corpo pelos afectos e nos encolhem a cabeça.
Se
António Barreto
DN, 12/11/17
Se os magistrados não
conseguirem provar o que afirmam no despacho de acusação do processo Operação
Marquês; Se não forem capazes de provar pelo menos metade do que ali suspeitam
e afirmam;
Se a defesa vier a
demonstrar que as acusações são falsas e infundadas;
Se a defesa tiver meios
para demonstrar os seus pontos de vista e alegar justificadamente que a
acusação não consegue provar o que afirma;
Se a defesa conseguir
provar a boa--fé e a inocência dos arguidos, políticos, ministros, banqueiros,
deputados, gestores, amigos, familiares e primos, assim como alegados homens de
mão e testas-de-ferro;
Se assim for,
justifica-se escrever o epitáfio e mandar construir a lápide da Justiça
portuguesa e podemos também dizer adeus por umas décadas ao Estado de direito
em Portugal.
Mas se uma dúzia de
acusações ficarem provadas;
Se o julgamento se
iniciar em 2018 e se processar dentro de um horizonte de tempo razoável e se
houver sentenças dentro de três ou quatro anos;
Se do processo se
extraírem alguns ensinamentos relativos aos métodos de investigação, às
condições de prisão preventiva e aos prazos de acusação;
E se do processo se
retirarem lições sobre o modo como, de futuro, se impedem falcatruas e
aldrabices e se evitam atentados processuais à dignidade dos cidadãos;
Se assim for, poderemos
regozijar--nos com o melhoramento da nossa Justiça e é-nos permitido um parco
optimismo, um pouco de esperança.
E se...
Se os relatórios de
Pedrógão e de Coimbra forem lidos, comentados, levados a sério e não deitados
ao cesto;
Se estes relatórios
forem completados e desenvolvidos por novos estudos independentes, nacionais e
estrangeiros, elaborados em tempo devido e tornados públicos já no próximo ano;
Se houver efeitos destes
relatórios e forem concretizadas mudanças de organização, de estrutura, de
métodos, de coordenação, de responsabilidades, de dirigentes e de tutela da
Protecção Civil, da previsão, da prevenção, do socorro e do combate aos fogos;
E se for criada uma
poderosa Administração Florestal, estável, competente, com pessoal técnico e
meios de intervenção e capaz de pensar o ordenamento a vinte ou trinta anos;
E ainda se...
Se algo parecido com o
relatório de Pedrógão for feito para o roubo de Tancos;
Se a comissão de
inquérito for até ao fim sem ocultação de fenómenos civis ou militares;
Se o relatório de Tancos
for conhecido da opinião pública;
Se for ordenado
procedimento judicial em conformidade;
E se os julgamentos se
realizarem dentro de prazos sensatos a fim de corrigir os defeitos da defesa e
da segurança;
Então sim, poderemos
rejubilar com os progressos recentes da Justiça civil e militar.
Se ainda...
Se os relatórios
relativos ao BES e ao GES forem terminados brevemente;
Se os despachos
acusatórios forem tornados públicos em 2018;
Se os julgamentos forem
iniciados já no próximo ano e terminarem em tempo útil antes do fim da década;
Se os processos
incluírem não apenas os procedimentos alegadamente ilícitos, mas também todos
os outros pelos quais, com a cumplicidade de entidades públicas, se destruíram
empresas e instituições e através dos quais se evaporou e desviou valor;
Se assim for, se os
processos de Tancos, Pedrógão, BES, GES, BPN, BPP, Banif, BCP, PT, Marquês e
Face Oculta, assim como o apuramento dos "malparados" devido a
decisões eivadas de favoritismo pessoal ou político, se estes processos tiverem
consequências, se houver julgamentos em tempo sensato, se houver sentenças,
condenações fundamentadas e absolvições indiscutíveis;
Então, sim, poderemos
pensar que vivemos em democracia adulta, que o Estado de direito vigora mal mas
vigora e que começamos finalmente a ter a experiência e o benefício de uma
Justiça numa sociedade decente.
E teremos a sensação de
sermos tratados pelo Estado e pela Justiça como gente digna e cidadãos livres.
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