Em tempos, falou-se muito de
corrupção, no caso de Lula da Silva, de conversas telefónicas incriminatórias
entre aquele e Dilma Rousseff, um país à deriva, em termos de estabilidade
social e governativa. De resto, Francisco Assis o informa: «Basta
olhar um pouco para além do Brasil de bilhete-postal para perceber o peso do
racismo étnico, cultural e social, a magnitude da corrupção, do nepotismo e do
clientelismo, a fragilidade extrema do mundo institucional.» Mas
Francisco Assis encontrou Dilma Rousseff e achou-a uma mulher inteligente e
digna, que expõe sobre democracia e demonstra grande sensibilidade social,
própria da doutrina socialista, e de uma “figura política decente”.
Não sei se terá razão. O certo é que também Lula da Silva inaugurou um percurso
de estadista de defensor dos mais pobres e acabou implicado em graves acusações
de corrupção. É certo que o mundo dos media contribui em parte para o avolumar
dos escândalos, como também se viu e se vê por cá, mas estranho a defesa que
Francisco Assis faz de Dilma Rousseff que, tal como Lula da Silva, permitiram a
elevação das classes sociais mais marginalizadas, era esse o objectivo, mas
realmente quem se valorizou muito economicamente parece que foram eles, segundo
o costume.
Não, não acho que seja
necessário seguir-se um ideário político de defesa social para se ser um político
decente. A Revolução Russa está manchada por milhões de crimes e já a Francesa
o estivera. O que conta mesmo é ser-se decente, com ideário ou sem ele. Mas
estranhei o ardor de Francisco Assis, confiante que estou na sua decência.
OPINIÃO
Um país do futuro
O Brasil precisa de um compromisso histórico entre aqueles que
continuam a representar uma esperança de dignidade da esfera pública.
Francisco Assis
23 de Novembro de 2017
Em fuga de uma Europa
moralmente arruinada, Stefan Zweig encontrou no Brasil o derradeiro lugar do
seu exílio desesperado. Fascinado pelo país, dedicou-lhe um livro que se tornaria
imediatamente célebre e polémico. Alguns críticos denunciaram o carácter
excessivamente elegíaco da obra. O que é certo é que ela permaneceu como uma
referência e o seu próprio título se impôs como um sinal: Brasil, um país
do futuro. Não sendo esse o sentido que o autor lhe pretendeu atribuir, acabou
por se afirmar a ideia de um país em perpétua construção e permanentemente
adiado. Como se a promessa do futuro significasse sobretudo um desmesurado
falhanço histórico.
O Brasil está a
atravessar um dos momentos mais difíceis da sua história. Há duas semanas atrás
tive a oportunidade de o visitar e de constatar presencialmente o estado
de profunda degradação institucional e política que só tem paralelo com o grau
de conflitualidade que percorre a sociedade brasileira. Apesar dos
grandes avanços ocorridos sob as presidências de Fernando Henrique Cardoso,
Lula da Silva e Dilma Rouseff, há fracturas, atavismos profundos e
hábitos comportamentais perversos que subsistem num país que está muito longe
de corresponder ao estereótipo idealizado de um espaço de encontro
multicultural pacífico. Basta olhar um pouco para além do Brasil de
bilhete-postal para perceber o peso do racismo étnico, cultural e social, a
magnitude da corrupção, do nepotismo e do clientelismo, a fragilidade extrema
do mundo institucional.
Como seria de prever, Michel
Temer não conseguiu sobreviver à vontade de ser Presidente da República a
qualquer preço. É certo que preside — e que dirige um governo de qualidade
muito duvidosa —, mas não dispõe do mais leve respeito popular e transporta
consigo a permanente suspeita da ilegitimidade moral da sua própria condição
presidencial. Temer é hoje um político aprisionado pelos escandalosos
acordos que tem sido forçado a fazer no Senado e na Câmara dos Deputados com o
intuito de garantir a sua própria sobrevivência, e não dispõe, por isso mesmo,
dos meios imprescindíveis para a mera dignificação do cargo que exerce. Nessa
perspectiva, o Brasil é hoje um país à deriva, dirigido por zombies a
quem não escasseiam provas dadas em matéria de nepotismo e corrupção. É triste
mas é verdade.
Raramente um país com a
dimensão e os recursos do Brasil viveu uma situação tão dilacerante no domínio
da sua representação política democrática. A classe política brasileira, por
motivos diversos que vão desde a natureza do sistema político e eleitoral, até
à desmesurada influência pública de alguns meios de comunicação social e de
algumas igrejas evangélicas onde predominam o simplismo conceptual e a
demagogia sectária, não está manifestamente à altura das enormes
responsabilidades que lhe estão cometidas. Há naturalmente excepções, algumas
delas deveras significativas e que nos impedem felizmente de cair num
cepticismo absoluto.
Na semana passada tive o
ensejo de conhecer em Estrasburgo a ex-Presidente Dilma Rousseff, afastada
do lugar para que o povo a elegera por um procedimento parlamentar se não
ilegal, pelo menos flagrantemente imoral. Confesso que não tinha até essa
ocasião a melhor das opiniões a seu respeito no plano estritamente político.
Amigos brasileiros haviam-me vendido a ideia de uma mulher excessivamente
dogmática, propensa a comportamentos sectários e pouco dada à promoção do
diálogo, quer com apoiantes, quer com adversários. Depois de a ter ouvido numa
sessão pública e de ter conversado longamente com ela num jantar promovido por
alguns deputados europeus socialistas, entre os quais se incluía também o meu
colega e amigo Carlos Zorrinho, fiquei com uma visão completamente distinta
acerca do seu carácter e da sua personalidade política. Dilma é superiormente
inteligente, revela uma seriedade extrema na acepção mais exigente do conceito,
inscreve-se doutrinariamente na linha do socialismo democrático e deixa
transparecer uma sensibilidade social própria de uma figura política decente.
Terá cometido erros, mas é claramente alguém que se situa muito acima da média
da vida política do seu país, quer intelectual, quer moralmente.
O Brasil precisa de uma
espécie de compromisso histórico entre aqueles que, um pouco mais à direita ou
mais à esquerda, continuam a representar uma esperança de dignidade ao mais
alto nível da esfera pública. Só assim poderá enfrentar com sucesso as ameaças
extremistas e demagógicas que se adivinham no horizonte e resolver
adequadamente os principais problemas que impedem a sua integração plena no
mundo globalizado e que condenam à miséria grande parte da sua população. Há
hoje naquele país um risco imenso: o de se acentuar ainda mais a clivagem entre
a maioria da população, condenada a uma pobreza endémica e alienante, e uma
elite provida dos recursos de capital financeiro, económico, cultural,
simbólico e científico capaz de lhe garantir a integração nos grandes fluxos
globais. O problema não é de agora, mas adquiriu no presente uma particular
intensidade dadas as características específicas da nossa época.
Por muito que se tente
criticar e até escarnecer da acção política levada a cabo pelos dois
Presidentes eleitos pelo PT, não é legítimo ignorar o legado extraordinário que
deixaram em matéria de promoção dos Direitos Humanos e de dignificação dos
homens e das mulheres concretos do seu país. No Rio de Janeiro, há
15 dias atrás, uma professora de uma Universidade do Rio Grande do Sul
dizia-nos com indisfarçável comoção: “Foi devido à acção do Presidente Lula
que, pela primeira vez ao fim de muitas décadas a ensinar, tive alunos negros a
assistir às minhas aulas.” Dilma Rousseff lembrava-nos na semana passada a
sensação de plenitude política que a acometeu quando ela própria, na condição
de Presidente da República, entregou o diploma de licenciatura a uma jovem
médica negra brasileira. Essa jovem ter-lhe-á dito na ocasião: “O ter chegado
até aqui significa que finalmente a Senzala está a entrar na Casa-Grande.”
Sabemos infelizmente que
ainda há um longo caminho a percorrer para que a Senzala entre, de facto, na Casa-Grande.
Há, porém, no meio das tão negras vicissitudes que afligem o presente
brasileiro, quem esteja disposto a percorrer esse caminho. Ter conhecido e
conversado com alguém como Dilma Rousseff aumentou a minha confiança no futuro
desse imenso e tão próximo país que é o Brasil.
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