Inútil comentar. Os artigos aí
estão: sérios, desinibidos, severos, arrojados. De um jovem não bloqueado pelas
patranhas que a nossa parolice de debilitados economicamente e de deslumbrados pelas
novidades a cada passo alimenta. João Miguel Tavares explica bem os fenómenos
inquietantes:
Portugal: um país cativado pelo Estado
João Miguel Tavares
Público, 4 de Novembro de
2017
A função pública está
para António Costa como a Bárbara escrava para Camões: é a cativa que o tem
cativo. Por um lado, os funcionários, os reformados e os milhões de
dependentes do Estado cativam o primeiro-ministro, pois são eles que lhes dão
os votos que sustentam o Partido Socialista (e que, no futuro próximo, lhe
podem oferecer uma maioria absoluta). Por outro, António Costa está
absolutamente cativo deles, pois todos os anos é necessário, na feira
orçamental de Outubro e Novembro, comprar o apoio das corporações que permitem
ao PS governar. António Costa é simultaneamente sequestrador e refém – o
cativo que nos tem cativos.
Talvez a Porto Editora,
numa das suas eleições, pudesse considerar “cativo” como a Palavra do
Quadriénio 2015-2019. Nenhuma outra explica melhor o momento actual da política
portuguesa. Desde logo, tudo indica que vai continuar a política radical de
cativações, que depaupera a qualidade dos serviços do Estado de ano para ano.
Lembro-me de em tempos a Cinemateca Nacional estar com profundíssimas
restrições orçamentais, cuja consequência foi esta: o dinheiro chegava para
pagar os ordenados dos trabalhadores, mas não para trazer filmes do estrangeiro
e organizar novos ciclos. A Cinemateca cumpria as obrigações para com os seus
funcionários, mas não para com o seu público. Aquela Cinemateca é agora
Portugal: o Estado cresce (novas contratações), promove quem nele trabalha
(descongelamento das carreiras), trabalha menos (regresso às 35 horas), mas
depois presta um serviço cada vez pior nos hospitais, nas escolas, na protecção
civil, deixa morrer 110 pessoas nos incêndios, prejudica doentes oncológicos e
diabéticos – porque, claro está, o dinheiro não dá para tudo. Há que fazer
opções, e a primeira função do Estado socialista é ocupar-se dos seus
funcionários. Seja em Portugal ou na União Soviética.
De António Guterres a
António Costa, bem pode o PS andar por aí a proclamar a paixão pela educação ou
pelos desprotegidos. Na prática, nunca foi a essas tarefas que se dedicou. O PS
limita-se a aplicar ao Estado a teoria trickle-down que tanto critica
na economia: despeja dinheiro para cima dos sectores mais corporativos com a
fezada de que ele chegue lá abaixo, e melhore a qualidade dos serviços
prestados a alunos, doentes, utentes, ou aos mais necessitados. Infelizmente, a
esses só chegam gotas – tudo o resto desaparece na barriga do monstro. As cativações
de centenas de milhões de euros, o truque que Mário Centeno inventou para se
fingir responsável (e aqui convém louvar a imaginação dos sucessivos ministros
das Finanças, que arranjam sempre forma de simular que cumprem incumprindo) são
isso: tirar aos de baixo para dar aos do meio.
Isto não é um acaso, nem
fruto do contexto. Este sempre foi o posicionamento político do Partido
Socialista, correspondendo a uma filosofia bem entranhada no seu património
genético: alimentar o Estado com funcionários, prebendas e reversões,
alimentando-se de volta com os seus votos e as inúmeras dependências que vai
promovendo, para se aguentar no poder. O Orçamento de Estado para 2018 não é
outra coisa senão isto: um governo preso a uma maneira muito precisa de agir
politicamente, e que por isso agrilhoa o país à sua eterna menoridade.
Cativados pelo Estado e cativos do Estado, esta armadilha é de tal forma
apertada que apenas se quebra por falência do país e imposição exterior. Cada
vez mais parece – e é triste – que fora do Diabo não há salvação.
OPINIÃO
A Web Summoparolice
Público, 7 de Novembro de
2017
João Miguel Tavares
Ouçam, eu sou tão dado à
tecnologia como qualquer um – tenho a minha quota parte de redes
sociais, apps, quinquilharia da Apple e nomofobia. Mas perante a histeria
que toma conta do país de cada vez que se aproxima a estrondosa, espantosa e
espaventosa Web Summit, eu transformo-me num orgulhoso neandertal: acho tudo
aquilo uma parolice colectiva, muito para lá do meu pobre entendimento.
Deixem-me precisar que a
acusação de parolice não deriva da inutilidade que um encontro destes possa ter
para quem o frequenta. Da mesma forma que um congresso de hematologia é útil
para hematologistas, este também será útil para
empreendedores, startups com acne e investidores em dotcoms.
A parolice reside na sua cobertura mediática e no fervor religioso que
desperta. A cada Novembro, o senhor Paddy Cosgrave invade jornais e telejornais
com uma t-shirt piramidal. O senhor primeiro-ministro escreve artigos
deslumbrados e vazios cheios de hashtags (DN de domingo, título:
#websummit #thisisportugal #cantskipportugal). E até um dos meus sobrinhos me
enviou uma mensagem com 24 smileys (eu contei) por ter alcançado a
suprema honra de ser escolhido, entre nove mil candidatos, para ser um dos 500
voluntários no maravilhoso sarau. Definição de voluntário: trabalhar à borla
durante 18 horas num evento onde a entrada normal custa 1500 euros.
Sim, o rapaz recebe – oh,
maravilha! – um passe de quatro dias, e a coisa é boa para o “networking”. Mas
não deixa de ser exploração do proletariado millenial. O
voluntariado serve para ajudar nas recolhas do Banco Alimentar – não para
alimentar um evento hiper-lucrativo, que ainda por cima está hierarquizado de
forma feudal: quanto mais caro for o bilhete (há um que custa 24995€, imagino
que para pagar o lugar na cama de Paddy Cosgrave), mais perto o feliz
proprietário poderá estar do seu herói tecnológico – quem sabe até tocar-lhe no
manto, à espera de um milagre digital.
É por isso que neste
meio se fala tanto em unicórnios – aquilo que a Web Summit vende, além de
bilhetes milionários, são sonhos de sucesso que só existem num mundo de
fantasia, tendo em conta que a taxa de mortalidade das startups varia
entre os 90 e os 99,9% (os especialistas dividem-se). A Web Summit é a Igreja
Universal do Reino da Tecnologia, e Cosgrave o seu pastor, podendo dar-se ao
luxo de só revelar o programa um mês antes de abrir portas, quando boa parte
dos bilhetes está vendida: “As pessoas já não vêm pelos oradores”, diz ele.
“Vêm porque está toda a gente no mesmo sítio ao mesmo tempo.” Certo. Chama-se a
isso uma feira. E como qualquer feira, é bem melhor a promover o turismo do que
o empreendedorismo.
O sucesso não se transmite
por osmose e o país continua igualzinho. António Costa anunciou em 2016 o fundo
200M – só vai estar disponível em 2018. A empresa Kubo Robot, que no ano
passado ganhou a competição de startups, recusou o prémio de
100 mil euros que lhe foi atribuído pela Portugal Ventures – recebeu uma
proposta de um milhão do Danish Growth Fund (um fundo estatal da Dinamarca). E,
segundo o Expresso, o número de startups criadas em Portugal em 2017, após o
enorme sucesso da primeira Web Summit, diminuiu. Isso mesmo: diminuiu. Parece
que há muita oferta de trabalho e as pessoas preferem a segurança de um bom
emprego à insegurança de um novo negócio. Pois é: a Web Summit vende sonhos mas
não faz milagres. Não é por haver uma feira tecnológica no Parque das Nações
que a nação se vai transformar num parque tecnológico.
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