Mas gosto de saber. Nunca analisei a fundo, nem o regime em que vivíamos o permitiria, nem o sentimento - de repugnância contra princípios de uma violência execrável – o aceitava, como o não aceitava a educação – burguesa – e, afinal, mais humana e livre do que essa de que se falava em surdina - admirando, é certo, os auto-proclamados intelectuais e a sua auréola de mártires arrostadores das proibições pidescas, defendendo esses princípios de falsa solidariedade em moda, com as suas leituras e reuniões clandestinas, (enquanto viviam à sombra dos ganhos dos papás burgueses, repudiando, embora, esses parentes enriquecidos nos seus cargos).
O artigo de João Carlos Espada - A fraude da revolução soviética - esclarece com sobriedade lúcida o “papão” que foi, de facto, esse comunismo desumano, apesar de tudo seguido ainda hoje pelos pregoeiros seráficos da bondade unilateral e exibicionista. O artigo de João Carlos Espada historia livremente e desassombradamente uma ideologia totalitária e impeditiva da liberdade e de uma real felicidade humana.
A fraude da revolução soviética
OBSERVADOR, 6/11/35
A revolução
soviética, cujo centenário alguns celebram amanhã, foi simplesmente a maior
fraude intelectual e moral do século XX.
Em
primeiro lugar, não se tratou de uma revolução popular, mas de um mero golpe
armado promovido por uma minoria fundamentalista que nunca convocou e respeitou
eleições livres.
Em
segundo lugar, não se tratou sequer de um golpe contra um regime despótico. O
regime czarista tinha sido deposto em Fevereiro desse mesmo ano de 1917. Um
regime constitucional parlamentar dava os seus primeiros passos na Rússia e
preparava eleições livres.
Por
outras palavras, a tão badalada ‘esperança emancipadora’ da revolução soviética
resumiu-se a uma sublevação armada para impedir a tentativa de consolidação de
uma democracia parlamentar na Rússia. Traduziu-se depois na criação de um
regime sanguinário que procurou exportar para a Europa o mesmo desrespeito
fundamentalista pelas regras imparciais do constitucionalismo democrático.
Esta
tentativa de exportação do fundamentalismo comunista acabou por gerar outros
fundamentalismos de sinal contrário: o nacional-socialismo e o fascismo. Todos
eles são expressão da mesma revolta primitiva contra a sociedade aberta e
pluralista — da qual todos eles inicialmente fizeram o seu principal inimigo. E
em comum desencadearam a II Guerra, em Setembro de 1939, através da invasão
combinada da Polónia pela Alemanha nazi e pela Rússia comunista.
Por
que motivo produziu o bárbaro regime soviético tanta admiração entre a
intelectualidade ocidental? É um mistério a que Raymond Aron, em 1955, chamou
de ‘ópio dos intelectuais’. Funda-se
num conjunto de mitos que muitos intelectuais ainda hoje recusam confrontar com
os factos. A mais devastadora crítica desses mitos comunistas e marxistas foi
produzida por Karl Popper em 1945, na sua obra «A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos.
O
primeiro desses mitos consiste na crença positivista em leis deterministas da
história. O comunismo seria o sucessor inevitável do capitalismo, assim como
este sucedera inevitavelmente ao feudalismo, e o feudalismo sucedera
inevitavelmente ao regime esclavagista e este ao chamado ‘comunismo primitivo’. Esta sucessão
inevitável resultaria do desenvolvimento dos meios e técnicas de produção e não
dependia das escolhas morais e políticas dos indivíduos — que apenas poderiam
atrasar ou acelerar o rumo predeterminado da história.
Esta
foi a ‘teoria científica da história’, anunciada por Marx e Engels no seu
‘Manifesto Comunista’ de 1848. Mas, perguntou Popper, se se
trata de uma teoria científica, como pode ser testada pelos factos? Em que
condições futuras poderia o não advento do comunismo refutar a teoria?
Nenhumas,
mostrou Popper, porque sempre que o comunismo falhar os crentes positivistas
poderão argumentar que se tratou de um recuo temporário — e que, no futuro, o
comunismo inevitavelmente triunfará. (Isto é precisamente o que dizem hoje os
comunistas quando confrontados com a queda do Muro de Berlim, em 1989, e a
implosão do comunismo soviético).
É
como o letreiro que anuncia ‘Amanhã a cerveja será gratuita’. Os clientes
voltarão todos os dias e todos os dias terão de pagar a cerveja. Mas o letreiro
continua certo porque cada dia será ‘hoje’ — e pode ser que ‘amanhã’ a cerveja
seja gratuita. Por outras palavras, disse Popper, a ‘visão científica’ da
história não passa de uma versão positivista de ‘profetismo oracular’.
Além disso, mostrou Popper,
todas as poucas previsões empiricamente testáveis produzidas pelo marxismo
foram refutadas pelos factos. Não se verificou a queda tendencial da taxa de
lucro nem a estagnação da inovação promovida pelas empresas privadas, livres e
descentralizadas. Não houve bipolarização entre ricos e pobres, mas
impressionante expansão das classes médias. Não foi impossível reformar o
sistema capitalista através do Parlamento — pelo contrário, foi possível criar
pacificamente fortes redes de segurança para todos e melhorar as condições de
trabalho de todos.
O mito das ‘leis da história’ foi refutado
pelos factos. Dele sobrou o relativismo niilista do ‘socialismo científico’.
Esse niilismo foi a doença infecciosa do século XX, que produziu milhões de
vítimas de governos totalitários sem escrúpulos — e sem vergonha.
Esse vírus estava contido no chamado
‘socialismo científico’ de Marx e Engels. Ao condenarem o que chamaram de
‘moralismo burguês’ do socialismo democrático e da social-democracia, Marx
e Engels deram alegada justificação ‘científica’ à ausência de moral em
política. A revolução comunista, disseram eles, não deve ser apoiada por razões
morais, mas por razões científicas — porque o comunismo é o futuro inexorável.
Mas está bem de ver que, mesmo que o
comunismo fosse o futuro inexorável, isso não constituiria razão moral para o
apoiar. A menos que tivesse sido adoptada uma premissa ‘moral’ que não está
expressa nesse raciocínio: a
premissa ‘moral’ de que ‘só devemos apoiar causas vencedoras’. Esta foi na
verdade a premissa não dita que o chamado ‘socialismo científico’ adoptou — a
premissa do culto do poder sem restrições morais (que Nietzsche também
espalhou, entre outras clientelas).
Foi este culto do poder sem restrições
morais que deu lugar à política violenta dos ‘camaradas’ — uns de punho
fechado, outros de braço estendido, todos aos gritos estridentes contra o
capitalismo democrático. Mas esse culto fundamentalista foi derrotado pela
tranquila resistência da civilização ocidental — fundada na liberdade ordeira
sob a lei e no Governo representativo que prestas contas ao Parlamento.
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