Um artigo de um pensamento nobre,
este de Paulo Rangel que, aceitando as especificidades temperamentais do
actual Presidente, de distribuidor inexorável de afectos, com grande impacto
sobre um povo deserdado, revela como essa particularidade tem a ver não com
astuto desejo presidencial de se
sobrepor a uma conjuntura governativa que o poderia molestar, mas a uma
característica própria de pessoa bem formada, para quem os incêndios mal
geridos provocaram natural indignação e o desejo de intervir com maior
dinamismo e autoridade junto do Governo. Não, pois, por manobra astuta, de
virar revolucionariamente uma página tortuosa de uma governação fraudulenta,
condenando o erro severamente, mas por desejo didáctico de revelar o erro e o
corrigir, impondo responsabilidades.
Realmente, parece que António
Costa entendeu o discurso. Mas o dinheiro esvai-se, na satisfação das
exigências dos parceiros de esquerda, não dá para tudo. Para o ano haverá mais.
Incêndios, digo. E discursos. E afectos de plangência.
OPINIÃO
Presidente: nem conjuntura, nem conjectura
Se naquela segunda-feira,
tivesse sobrevindo a demissão da ministra e um pedido de desculpas genuíno,
Marcelo não faria o discurso de terça nos termos em que o fez.
24 de Outubro de 2017
Paulo Rangel
Público, 24/10/17
1. O discurso do Presidente da República
demonstrou por inteiro o seu enorme poder e, em especial, o poder da sua
palavra. Por mais que fale, por mais que apareça, por mais que se faça ver e
ouvir, a palavra do mais palavroso dos presidentes não está gasta. O discurso
de há oito dias demonstrou-o de forma absolutamente magistral
Eis o que – tal como fiz
notar na devida altura – desmente uma parte substancial da crítica de Cavaco
Silva à banalização da palavra e à vulgarização da intervenção por banda de
Marcelo Rebelo de Sousa. Cavaco pautou sempre a sua actuação presidencial
por uma grande parcimónia – aquilo a que há mais de dez anos chamei a “economia
da palavra”. Arrancava do princípio de, quanto mais “económico” ou “poupado”
fosse na sua comunicação política, mais eficaz, forte e notória seria a sua
posição quando quisesse ou fosse chamado a intervir politicamente. Já Marcelo
com a sua omnipresença e o seu discurso omnímodo parecia desbaratar esse
capital de intervenção. Ao estar positivamente em todo o lado, ao comentar
praticamente todos os assuntos da actualidade, ao raramente enjeitar a pergunta
de um jornalista ou a interpelação de um cidadão, parecia correr o risco de
haurir e exaurir qualquer potencial futuro de intervenção ou de actuação
política. A gravidade e a sobriedade presidenciais, supostamente hipostasiadas
em Emmanuel Macron, que tanto parecem ter impressionado Cavaco Silva, estão nos
antípodas do modo como Marcelo lê e exerce o mandato presidencial. E, no
entanto, apesar da loquacidade, da multiplicidade e plasticidade de gestos,
Marcelo não perdeu – bem ao contrário – qualquer poder de influência, de
condicionamento e de conformação da vida política.
2. Na verdade, o que fez o Presidente Marcelo
Rebelo de Sousa, como sublinhei na crítica à visão de Cavaco sobre a
magistratura presidencial do seu sucessor, foi adaptar o cargo ao seu perfil
político, pessoal e psicológico. Quando muitos achavam que, por causa da
sua irrequietude política e da sua inesgotável energia vital, dificilmente
poderia desempenhar-se do múnus presidencial, Marcelo trocou-lhes as voltas e
mostrou que nem sempre o hábito faz o monge. Por vezes, é o monge que fia e
tece o hábito. Marcelo fez daquela que muitos julgavam a sua principal
fraqueza a sua maior força. Correu o país de lés-a-lés, desfez-se em abraços e
afectos, falou sempre e criou um lastro e um laço afectivo sem qualquer
paralelo recente entre um político e o seu povo.
Depois, na esteira do
político, comentador e professor desde sempre conhecido, tratou de gerir com
inteligência emocional a relação com o Governo. Primeiro, apoiando-o, em alguns
casos, para lá do que seria necessário e desejável. Depois, mostrando um enorme
apego ao valor da estabilidade. Tornou-se bem claro que o Presidente não tinha
nenhum preconceito nem nenhum “parti pris”
quanto ao Governo ou à solução governativa. Se algum dia tivesse de o criticar
ou admoestar, seria de todo insuspeita qualquer hostilidade política ou
institucional. Era evidente, de há muito – e não faltaram observadores atentos
que o disseram e predisseram –, que com uma relação “político-emocional” tão
bem oleada entre Belém e S. Bento e com o incomensurável prestígio
popular adquirido pelo Presidente, um simples espirro presidencial poderia
provocar uma pneumonia ou até espalhar um surto de tuberculose no Governo.
3. Muitos olham
para esta intervenção presidencial e vêem nela o sempre esperado momentum maquiavélico de
Marcelo. Mas também aí, creio bem, continuam a não compreender que se o monge
fez o hábito, também o hábito tem feito o monge. E Marcelo não foi a sagaz raposa
da política portuguesa que, num ápice e de súbito, tira o tapete ao judoca em
plena luta (para usar uma imagem das artes marciais que tanto preza). O
Presidente esteve desde o primeiro dia à espera que o Governo tratasse
convenientemente da questão, com sentido de Estado, com equidade, com bom senso
(que faltou por completo). Depois de Pedrógão, podia ter sido mais
assertivo e duro, mas quis dar espaço e tempo ao executivo para este tratar das
coisas a seu modo. Marcelo avisou Costa em tempo e deixou claro que, depois de
Pedrógão e do cada vez mais nebuloso e desprestigiante caso de Tancos, fazer
férias nas Baleares não era talvez a resposta que se espera de um
primeiro-ministro. E passou o Verão em visitas às vítimas e em conhecimento e
estudo do terreno, sempre lembrando que havia que esclarecer e assumir
responsabilidades, que a culpa não podia morrer solteira. Esperou pelo
relatório técnico, cuja publicação teria sido ocasião soberana para Costa
emendar a mão e remediar as coisas tarde, mas ainda dentro do que considerava o
“seu” tempo. Finalmente, deixou o primeiro-ministro e o seu Governo, já com a
consumação da catástrofe e seguramente em perda, falar primeiro, dando-lhe uma
última oportunidade para não ter de recorrer a uma intervenção mais drástica. Se
naquela segunda-feira, tivesse sobrevindo a demissão da ministra e um pedido de
desculpas genuíno, Marcelo não faria o discurso de terça nos termos em que o
fez. Isto mostra bem que, ao contrário do que o entorno de Costa e do PS andam
para aí a propagar, o Presidente revelou um grande sentido institucional,
esperou até ao limite do suportável e só tomou as rédeas da situação quando o
Governo se revelou manifestamente incapaz de compreender o alcance do sucedido.
Este não é o Marcelo maquiavélico, das partidas e das jogadas de xadrez.
Marcelo não está a jogar no campeonato eleitoral nem na feira de gado do
ministro Santos Silva; está a planar para a história e – coisa que não se deve
subestimar – a dialogar, ainda que do seu modo descontraído, com a sua
consciência. Sem ingenuidades bacocas e muito menos desígnios hagiográficos, há
um lado transcendente em Marcelo, que políticos meramente realistas ou
tácticos, formados e forjados na imanência ou, pior, num maquiavelismo de
pacotilha, ainda não conseguiram vislumbrar.
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