terça-feira, 7 de novembro de 2017

Está-nos no fado


Um artigo de um pensamento nobre, este de Paulo Rangel que, aceitando as especificidades temperamentais do actual Presidente, de distribuidor inexorável de afectos, com grande impacto sobre um povo deserdado, revela como essa particularidade tem a ver não com astuto desejo presidencial de se sobrepor a uma conjuntura governativa que o poderia molestar, mas a uma característica própria de pessoa bem formada, para quem os incêndios mal geridos provocaram natural indignação e o desejo de intervir com maior dinamismo e autoridade junto do Governo. Não, pois, por manobra astuta, de virar revolucionariamente uma página tortuosa de uma governação fraudulenta, condenando o erro severamente, mas por desejo didáctico de revelar o erro e o corrigir, impondo responsabilidades.
Realmente, parece que António Costa entendeu o discurso. Mas o dinheiro esvai-se, na satisfação das exigências dos parceiros de esquerda, não dá para tudo. Para o ano haverá mais. Incêndios, digo. E discursos. E afectos de plangência.

OPINIÃO
Presidente: nem conjuntura, nem conjectura
Se naquela segunda-feira, tivesse sobrevindo a demissão da ministra e um pedido de desculpas genuíno, Marcelo não faria o discurso de terça nos termos em que o fez.
24 de Outubro de 2017
Paulo Rangel
Público, 24/10/17
1. O discurso do Presidente da República demonstrou por inteiro o seu enorme poder e, em especial, o poder da sua palavra. Por mais que fale, por mais que apareça, por mais que se faça ver e ouvir, a palavra do mais palavroso dos presidentes não está gasta. O discurso de há oito dias demonstrou-o de forma absolutamente magistral
Eis o que – tal como fiz notar na devida altura – desmente uma parte substancial da crítica de Cavaco Silva à banalização da palavra e à vulgarização da intervenção por banda de Marcelo Rebelo de Sousa. Cavaco pautou sempre a sua actuação presidencial por uma grande parcimónia – aquilo a que há mais de dez anos chamei a “economia da palavra”. Arrancava do princípio de, quanto mais “económico” ou “poupado” fosse na sua comunicação política, mais eficaz, forte e notória seria a sua posição quando quisesse ou fosse chamado a intervir politicamente. Já Marcelo com a sua omnipresença e o seu discurso omnímodo parecia desbaratar esse capital de intervenção. Ao estar positivamente em todo o lado, ao comentar praticamente todos os assuntos da actualidade, ao raramente enjeitar a pergunta de um jornalista ou a interpelação de um cidadão, parecia correr o risco de haurir e exaurir qualquer potencial futuro de intervenção ou de actuação política. A gravidade e a sobriedade presidenciais, supostamente hipostasiadas em Emmanuel Macron, que tanto parecem ter impressionado Cavaco Silva, estão nos antípodas do modo como Marcelo lê e exerce o mandato presidencial. E, no entanto, apesar da loquacidade, da multiplicidade e plasticidade de gestos, Marcelo não perdeu – bem ao contrário – qualquer poder de influência, de condicionamento e de conformação da vida política.
2. Na verdade, o que fez o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, como sublinhei na crítica à visão de Cavaco sobre a magistratura presidencial do seu sucessor, foi adaptar o cargo ao seu perfil político, pessoal e psicológico. Quando muitos achavam que, por causa da sua irrequietude política e da sua inesgotável energia vital, dificilmente poderia desempenhar-se do múnus presidencial, Marcelo trocou-lhes as voltas e mostrou que nem sempre o hábito faz o monge. Por vezes, é o monge que fia e tece o hábito. Marcelo fez daquela que muitos julgavam a sua principal fraqueza a sua maior força. Correu o país de lés-a-lés, desfez-se em abraços e afectos, falou sempre e criou um lastro e um laço afectivo sem qualquer paralelo recente entre um político e o seu povo.
Depois, na esteira do político, comentador e professor desde sempre conhecido, tratou de gerir com inteligência emocional a relação com o Governo. Primeiro, apoiando-o, em alguns casos, para lá do que seria necessário e desejável. Depois, mostrando um enorme apego ao valor da estabilidade. Tornou-se bem claro que o Presidente não tinha nenhum preconceito nem nenhum “parti pris” quanto ao Governo ou à solução governativa. Se algum dia tivesse de o criticar ou admoestar, seria de todo insuspeita qualquer hostilidade política ou institucional. Era evidente, de há muito – e não faltaram observadores atentos que o disseram e predisseram –, que com uma relação “político-emocional” tão bem oleada entre Belém e S. Bento e com o incomensurável prestígio popular adquirido pelo Presidente, um simples espirro presidencial poderia provocar uma pneumonia ou até espalhar um surto de tuberculose no Governo.
3. Muitos olham para esta intervenção presidencial e vêem nela o sempre esperado momentum maquiavélico de Marcelo. Mas também aí, creio bem, continuam a não compreender que se o monge fez o hábito, também o hábito tem feito o monge. E Marcelo não foi a sagaz raposa da política portuguesa que, num ápice e de súbito, tira o tapete ao judoca em plena luta (para usar uma imagem das artes marciais que tanto preza). O Presidente esteve desde o primeiro dia à espera que o Governo tratasse convenientemente da questão, com sentido de Estado, com equidade, com bom senso (que faltou por completo). Depois de Pedrógão, podia ter sido mais assertivo e duro, mas quis dar espaço e tempo ao executivo para este tratar das coisas a seu modo. Marcelo avisou Costa em tempo e deixou claro que, depois de Pedrógão e do cada vez mais nebuloso e desprestigiante caso de Tancos, fazer férias nas Baleares não era talvez a resposta que se espera de um primeiro-ministro. E passou o Verão em visitas às vítimas e em conhecimento e estudo do terreno, sempre lembrando que havia que esclarecer e assumir responsabilidades, que a culpa não podia morrer solteira. Esperou pelo relatório técnico, cuja publicação teria sido ocasião soberana para Costa emendar a mão e remediar as coisas tarde, mas ainda dentro do que considerava o “seu” tempo. Finalmente, deixou o primeiro-ministro e o seu Governo, já com a consumação da catástrofe e seguramente em perda, falar primeiro, dando-lhe uma última oportunidade para não ter de recorrer a uma intervenção mais drástica. Se naquela segunda-feira, tivesse sobrevindo a demissão da ministra e um pedido de desculpas genuíno, Marcelo não faria o discurso de terça nos termos em que o fez. Isto mostra bem que, ao contrário do que o entorno de Costa e do PS andam para aí a propagar, o Presidente revelou um grande sentido institucional, esperou até ao limite do suportável e só tomou as rédeas da situação quando o Governo se revelou manifestamente incapaz de compreender o alcance do sucedido. Este não é o Marcelo maquiavélico, das partidas e das jogadas de xadrez. Marcelo não está a jogar no campeonato eleitoral nem na feira de gado do ministro Santos Silva; está a planar para a história e – coisa que não se deve subestimar – a dialogar, ainda que do seu modo descontraído, com a sua consciência. Sem ingenuidades bacocas e muito menos desígnios hagiográficos, há um lado transcendente em Marcelo, que políticos meramente realistas ou tácticos, formados e forjados na imanência ou, pior, num maquiavelismo de pacotilha, ainda não conseguiram vislumbrar.


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