Teresa de Sousa adverte sobre
o mundo que vem aí, com a China a maior potência, a prosperar e a infiltrar-se,
sem fazer ondas por enquanto, suavemente, mas com competência.
Mas de facto. Devagarinho, eficiente, segura de si, história
de sucesso, ocupando as ruas, destronando as lojas, num mundo de prateleiras e
de cabides a abarrotar, os lojistas ignorando outra língua que não a deles,
mudos e quedos, big brothers a controlar, impossível haver desvios, nos seus
bazares pejados, um espanto de estarrecer. E Donald Trump, lá no seu canto,
mudando as regras, pedindo meças, abandonando os parceiros, passeando-se por
lá, correndo a Ásia, tudo muito incerto e
pouco convincente. Leiamos a história que Teresa de Sousa conta.
Opinião. Washington, Bruxelas, Pequim
Teresa de Sousa
Público, 22 /11/ 17
Enquanto o Presidente americano “destrói à picareta a Pax Americana”,
Pequim quer aproveitar a oportunidade para ocupar o espaço deixado vazio.
1. Não é preciso ser um especialista para
perceber a velocidade a que estão a mudar os equilíbrios do sistema
internacional, que durou praticamente desde o fim da II Guerra, com as suas
instituições multilaterais. A assinatura era americana com o apoio do mundo
ocidental. O equilíbrio do terror entre os EUA e a União Soviética foi
relativamente eficaz, abrindo as portas ao colapso, quase pacífico, do sistema
soviético e à ilusão de um mundo mais integrado, mais livre e mais pacífico. O
11 de Setembro, com o seu impacte brutal na forma como a América olha o mundo,
abriu uma nova era, expressa, primeiro, no unilateralismo americano e, depois,
na ascensão de novas grandes potências fora do mundo ocidental.
Pelo meio, houve a preocupante “revisão” russa da ordem internacional e o seu
nacionalismo agressivo, que desestabilizou a vizinhança europeia, alterando
pela primeira vez as fronteiras herdadas da II Guerra e da implosão da União
Soviética. Hoje o debate deixou de ser sobre como o Ocidente democrático
vai defender a ordem internacional que construiu, integrando nela os novos
grandes actores mundiais que emergiram nas duas últimas décadas. Passou a ser
sobre quem vai dominar um mundo cada vez mais em desordem.
2. Na semana passada, a Economist não
hesitou em fazer a sua capa com o rosto de Xi Jinping, “O homem mais
poderoso do mundo”. Xi é diferente dos seus antecessores a quem incumbiu levar
por diante a estratégia de Deng Xiaoping, anunciada em 1979, que cortava com a
era de Mao e decretava que a China tinha como objectivo enriquecer. Foi o
tempo do “peaceful rising”, mantendo um “low profile” na cena internacional e
dando total prioridade à economia. Os Estados Unidos foram-se adaptando a esta
nova realidade, enquanto viam a economia chinesa prosperar graças à
libertação controlada das forças do mercado, transformando a China na “fábrica
do mundo”. A globalização acabou por revelar-se uma bênção para a China
e não tanto para a América, permitindo tirar da pobreza extrema 400 milhões de
chineses e criar uma classe média cada vez mais vasta e próspera, que dispensa
quaisquer reivindicações políticas, para além das condições em que possa
continuar a enriquecer. Não há manifestações na China contra a falta de
liberdade. Há manifestações quando o governo não zela pelas condições de
trabalho ou quando o TGV chinês que liga Xangai a Pequim sofre um
descarrilamento numa das suas primeiras viagens, ou ainda quando os líderes
locais são demasiado corruptos. Os EUA acreditaram (em parte) que o
desenvolvimento acelerado da China acabaria por conduzi-la a uma ordem política
interna mais democrática. Passaram, entretanto, 28 anos sobre o acontecimento
que ia deitando tudo a perder. A 4 de Junho de 1989, o Partido Comunista
ordenou um massacre contra os manifestantes, a maioria jovens, que ocupavam há
meses a Praça Tiananmen em volta de uma cópia da Estátua da
Liberdade, seguindo as pisadas das revoluções democráticas na Europa de Leste e
das transformações profundas na União Soviética. O crescimento económico
não parou. A China encontrou o seu lugar nos BRIC, que apostavam no
crescimento económico e num lugar ao Sol nas instituições internacionais.
Entrou na Organização Mundial do Comércio (2001). Tornou-se um grande parceiro
comercial dos EUA e da União Europeia, acumulou títulos da dívida americana e
uma montanha de divisas estrangeiras. Obama anunciou em 2011 o “pivô” para a
Ásia-Pacífico, que se tornava cada vez mais o centro nevrálgico da economia
mundial, até aí localizado sem rival no Atlântico Norte. Hillary Clinton criou uma
espécie de cordão sanitário à volta da China, reafirmando aos pequenos e médios
aliados que rodeiam o colosso chinês a garantia da sua segurança. A economia
chinesa foi subindo rapidamente na cadeia de valor, subcontratando, ela
própria, aos seus vizinhos a produção de bens de mão-de-obra não qualificada. Onde
estamos hoje?
3. Basta olhar para a encenação do 19.º Congresso do
Partido Comunista da China, que teve início no dia 18 em Pequim, para ver lá os
sinais de uma nova mudança, porventura equivalente aquela que Deng representou.
Não estamos a falar do regresso ao totalitarismo e do culto da personalidade
que Mao impôs desde 1949, com milhões e milhões de mortos, vítimas da repressão
ou da fome. Nada disto é hoje repetível num país que passou de miserável a
segunda economia mundial. Estamos a falar da recuperação de velhos
rituais que Xi adoptou para se coroar como o novo “imperador”, transferindo de
novo para o Partido Comunista o poder essencial. A Economist sintetiza
bem esta mudança: Deng chegou ao poder anunciando que o partido não podia
estar sempre a interferir no governo; Xi está a fazer o caminho contrário. O
19.º Congresso será um teste importante. Mas essa não é a única ruptura. O
Presidente chinês quer inaugurar uma “nova era”, fazendo da China uma grande
potência global. Os media oficiais chamam-lhe “o pensamento de Xi
Jinping sobre o socialismo de características chinesas para uma nova era”. Não
é o Livro Vermelho de Mao, mas é mais uma prova do papel que ele se reserva
para si próprio e significa uma ruptura em relação a Deng, ainda que não um
regresso impossível a Mao. A eleição de Trump ajudou a dar
credibilidade a Xi nos fóruns internacionais. Enquanto o Presidente americano
“destrói à picareta a Pax Americana”, na expressão feliz do Monde, Pequim
quer aproveitar a oportunidade para ocupar o espaço deixado vazio. Xi
anuncia-se como o defensor da globalização, da liberdade de comércio, dos
acordos de Paris sobre o clima, da paz e do desenvolvimento em cada fórum
internacional a que comparece. Aproveitou a crise europeia para multiplicar o
investimento chinês nos países do Sul e nos de Leste, desesperados por
investimento estrangeiro, apontando as baterias para a energia e para os
portos.
4. Falta olhar para o que pode vir a ser uma
China mais activa na cena internacional. Já não lhe chega a economia. Precisa
de um poder militar que sustente esse objectivo. Xi fala de um exército “para
fazer a guerra e ganhá-la”. É o que tem estado a construir, aumentando em cerca
de 10 por cento ao ano o seu orçamento da Defesa. A China já tem dois
porta-aviões no mar e, à falta de melhor, está a construir “porta-aviões”
imóveis em ilhas artificiais no Mar da China do Sul, desafiando o direito dos
países ribeirinhos. A chamada “Belt and Road Iniciative” para ocupar o grande
espaço euro-asiático, é uma manifestação nada desprezível do seu novo soft-power.
Até agora, já investiu 300 mil milhões de dólares. A Coreia do Norte é, talvez,
o ponto mais fraco de quem quer ter maior protagonismo mundial. Com uma consequência
que a China não deseja: obriga os EUA a manter sua enorme presença militar no
Pacífico.
5. Quanto à Europa, o “tiro a Trump” é
quase irresistível, de tal modo o Presidente americano desafia tudo aquilo que
estava adquirido nas relações transatlânticas. Os europeus perceberam
finalmente que não podem contar inteiramente com a América em matéria de
segurança, e sabem também que as vias para a criação de um gigantesco mercado
único entre as duas margens do Atlântico Norte, capaz de equilibrar a Ásia-Pacífico,
estão agora cortadas. Federica Mogherini, a chefe da diplomacia europeia,
falando recentemente em Bruxelas, criticou duramente o Presidente americano
(ainda que sem o citar), dizendo que “o isolacionismo na política externa não
leva a parte nenhuma”. E acrescentando que, “nos dias de hoje, só há uma
potência global credível, confiável e previsível para o resto do mundo (…) que
é a União Europeia”. O mínimo que se pode dizer é que será um longo caminho.
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