Não me parece que seja uma
excelente ideia essa do memorial da escravatura, no Campo das Cebolas.
Parece-me antes uma forma de provocação, de incitamento ao ódio contra um país
que já se sente suficientemente reduzido de afectos, na extensão de dados
negativos políticos e sociais de que enferma há muito, bem mais graves esses
hoje do que os do passado, que já não pesam, e cujo memorial ficaria como um
escarro lançado sobre os Portugueses que, naturalmente, não foram únicos e nem
sequer os primeiros a usar dessa força construtiva, as sociedades primeiras repousando
as suas hierarquias sociais na base das escravaturas com que construíram pirâmides
e impérios. Que seja usada a escravatura em obra literária, em termos enérgicos
de raiva ou ironia, para informação e prevenção futuras, vá que não vá, Saramago
fê-lo no seu Memorial do Convento, onde enlambuzou suficientemente bem o
Rei Magnânimo e respectiva entourage, para valorizar epicamente a acção popular
nos seus trabalhos, sofrimentos e valentias, como era de bom tom fazê-lo, para
vender bem, integrado na doutrinação política que há muito persegue as nossas
almas sedentas de amor e, por contraste, esfomeadas de ódios que nunca cansam.
Quando criminosos como Hitler,
Estaline, Mao e outros de repercussão menor, como se viu e vê em terras de
África e nas Américas, e na Ásia, são ignorados nos seus crimes monstruosos, e se permite o tráfico hoje, talvez mais às
escondidas, de crianças e mulheres e trabalhadores sem se condenarem esses
bandoleiros exploradores da miséria alheia, a coberto das autoridades, e se
pretende, com tanta sanha, erguer um memorial aos portugueses inauguradores de
uma escravatura hedionda, mas não menor que a de hoje, de tanta violência
falocrática, parece-me a ideia do memorial sobre a escravatura portuguesa,
apenas mais uma forma de escravizar os homens ao poder do ódio. Não temos mais
que fazer?
Não, não concordo com António
Barreto, tão punhos de renda, de subserviência, neste caso, a uma doutrina que
prega a moral com incitamento ao ódio. Para ficar de bem com Deus e o Diabo?
Os escravos em Portugal: um memorial
António Barreto
DN, 26/11/17
Excelente ideia a da
construção de um memorial situado à beira-Tejo, entre a Ribeira das Naus e o
Campo das Cebolas, locais onde, segundo consta, o tráfico de escravos tinha
assento. Não se sabe se a proposta, feita por uma associação, será aprovada e
concretizada. Nem qual será a sua forma ou configuração. Mas a ideia é boa.
Sobretudo se for mais do que um memorial passivo e inerte. Se for um museu, um
local de reflexão ou um centro de referência. Várias instituições desse género,
nos Estados Unidos, em Inglaterra, na Holanda, em Angola e no Senegal, mostram
como se pode fazer. Genocídios, holocaustos, massacres, autos-de-fé,
deportações violentas, assassínios em massa, Goulag, campos de concentração e
outras formas de exercício de poder e violência devem ser estudados. Para que
não se esqueça. Espera-se, aliás, que esta iniciativa tenha melhor sorte do que
um projecto de lei de criação de um museu dos Descobrimentos, a construir na
Cordoaria, apresentado há mais de trinta anos e, infelizmente, nunca realizado.
O tráfico de escravos e a
escravatura foram, à luz do que somos hoje, fenómenos horrendos que a
humanidade conheceu, durante séculos e em quase todas as latitudes. Da Índia à
China, do Egipto à Mesopotâmia, de Roma a Berlim, de Lisboa ao Rio de Janeiro e
da Costa do Marfim aos Estados Unidos. Centenas de milhões de escravos foram
vendidos, comprados e transportados entre continentes e em várias direcções,
conforme as geografias. Para estes fluxos de mercadoria humana, Portugal também
contribuiu de modo significativo, com especial incidência no tráfico
estabelecido entre África e as Américas. Terá mesmo sido, no Atlântico e
durante três ou quatro séculos, um dos seus protagonistas e principais
beneficiários.
Em poucas palavras, a
escravatura e o tráfico de escravos marcaram tempos e povos. Ainda hoje, em
certos países africanos ou muçulmanos, há práticas, legais ou não, equiparadas
à escravatura. Provavelmente, foi a África o continente que forneceu mais
escravos. Segundo os valores morais contemporâneos, o tráfico está mesmo entre
os piores traços da evolução da humanidade. Juntamente com os trabalhos
forçados, a tortura, o assassínio, o genocídio e a conquista, a escravatura foi
mais um capítulo da história que o progresso combateu durante décadas e para o
qual foi conseguindo remédios, interdições, castigos e sobretudo condenação
moral e jurídica.
O processo histórico foi
tal, até ao presente, que a escravatura se encontra erradicada em grande parte
do mundo. Na maior parte do mundo, talvez seja possível afirmar. A libertação
dos escravos, a abolição da escravatura e a emancipação dos servos e escravos
transformaram-se mesmo em objectivos centrais dos defensores do progresso e do
melhoramento dos povos. A abolição da escravatura está a par de outros grandes
movimentos da humanidade como os direitos humanos e a igualdade. Tal como a
democracia, a cidadania e a liberdade religiosa, a escravatura e a respectiva
abolição merecem um memorial.
Se for, evidentemente, um
memorial que explique, que dê contexto e enquadramento, que informe, que nos
ajude a compreender. Não um memorial que se limite a condenar os negreiros e os
portugueses... Não um memorial de autoflagelação que, por razões de oportunismo
histórico e demagogia política, pretenda afirmar que o colonialismo dos
portugueses foi mais cruel do que o dos outros, que o racismo dos portugueses é
pior do que o dos outros, que a escravatura dos portugueses foi mais hedionda
do que a dos outros, que a escravatura organizada pelos europeus e pelos
brancos foi mais dolorosa do que a dos árabes, dos chineses, dos indianos ou
dos africanos...
E também não um memorial
que, conforme sugerido por alguns proponentes, terá de ser feito por artistas
africanos ou descendentes de africanos... Isso é racismo! Puro e simples!
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