domingo, 26 de novembro de 2017

Eu não acho que seja


Não me parece que seja uma excelente ideia essa do memorial da escravatura, no Campo das Cebolas. Parece-me antes uma forma de provocação, de incitamento ao ódio contra um país que já se sente suficientemente reduzido de afectos, na extensão de dados negativos políticos e sociais de que enferma há muito, bem mais graves esses hoje do que os do passado, que já não pesam, e cujo memorial ficaria como um escarro lançado sobre os Portugueses que, naturalmente, não foram únicos e nem sequer os primeiros a usar dessa força construtiva, as sociedades primeiras repousando as suas hierarquias sociais na base das escravaturas com que construíram pirâmides e impérios. Que seja usada a escravatura em obra literária, em termos enérgicos de raiva ou ironia, para informação e prevenção futuras, vá que não vá, Saramago fê-lo no seu Memorial do Convento, onde enlambuzou suficientemente bem o Rei Magnânimo e respectiva entourage, para valorizar epicamente a acção popular nos seus trabalhos, sofrimentos e valentias, como era de bom tom fazê-lo, para vender bem, integrado na doutrinação política que há muito persegue as nossas almas sedentas de amor e, por contraste, esfomeadas de ódios que nunca cansam.
Quando criminosos como Hitler, Estaline, Mao e outros de repercussão menor, como se viu e vê em terras de África e nas Américas, e na Ásia, são ignorados nos seus crimes monstruosos, e  se permite o tráfico hoje, talvez mais às escondidas, de crianças e mulheres e trabalhadores sem se condenarem esses bandoleiros exploradores da miséria alheia, a coberto das autoridades, e se pretende, com tanta sanha, erguer um memorial aos portugueses inauguradores de uma escravatura hedionda, mas não menor que a de hoje, de tanta violência falocrática, parece-me a ideia do memorial sobre a escravatura portuguesa, apenas mais uma forma de escravizar os homens ao poder do ódio. Não temos mais que fazer?
Não, não concordo com António Barreto, tão punhos de renda, de subserviência, neste caso, a uma doutrina que prega a moral com incitamento ao ódio. Para ficar de bem com Deus e o Diabo?

Os escravos em Portugal: um memorial
António Barreto
DN, 26/11/17
Excelente ideia a da construção de um memorial situado à beira-Tejo, entre a Ribeira das Naus e o Campo das Cebolas, locais onde, segundo consta, o tráfico de escravos tinha assento. Não se sabe se a proposta, feita por uma associação, será aprovada e concretizada. Nem qual será a sua forma ou configuração. Mas a ideia é boa. Sobretudo se for mais do que um memorial passivo e inerte. Se for um museu, um local de reflexão ou um centro de referência. Várias instituições desse género, nos Estados Unidos, em Inglaterra, na Holanda, em Angola e no Senegal, mostram como se pode fazer. Genocídios, holocaustos, massacres, autos-de-fé, deportações violentas, assassínios em massa, Goulag, campos de concentração e outras formas de exercício de poder e violência devem ser estudados. Para que não se esqueça. Espera-se, aliás, que esta iniciativa tenha melhor sorte do que um projecto de lei de criação de um museu dos Descobrimentos, a construir na Cordoaria, apresentado há mais de trinta anos e, infelizmente, nunca realizado.
O tráfico de escravos e a escravatura foram, à luz do que somos hoje, fenómenos horrendos que a humanidade conheceu, durante séculos e em quase todas as latitudes. Da Índia à China, do Egipto à Mesopotâmia, de Roma a Berlim, de Lisboa ao Rio de Janeiro e da Costa do Marfim aos Estados Unidos. Centenas de milhões de escravos foram vendidos, comprados e transportados entre continentes e em várias direcções, conforme as geografias. Para estes fluxos de mercadoria humana, Portugal também contribuiu de modo significativo, com especial incidência no tráfico estabelecido entre África e as Américas. Terá mesmo sido, no Atlântico e durante três ou quatro séculos, um dos seus protagonistas e principais beneficiários.
Em poucas palavras, a escravatura e o tráfico de escravos marcaram tempos e povos. Ainda hoje, em certos países africanos ou muçulmanos, há práticas, legais ou não, equiparadas à escravatura. Provavelmente, foi a África o continente que forneceu mais escravos. Segundo os valores morais contemporâneos, o tráfico está mesmo entre os piores traços da evolução da humanidade. Juntamente com os trabalhos forçados, a tortura, o assassínio, o genocídio e a conquista, a escravatura foi mais um capítulo da história que o progresso combateu durante décadas e para o qual foi conseguindo remédios, interdições, castigos e sobretudo condenação moral e jurídica.
O processo histórico foi tal, até ao presente, que a escravatura se encontra erradicada em grande parte do mundo. Na maior parte do mundo, talvez seja possível afirmar. A libertação dos escravos, a abolição da escravatura e a emancipação dos servos e escravos transformaram-se mesmo em objectivos centrais dos defensores do progresso e do melhoramento dos povos. A abolição da escravatura está a par de outros grandes movimentos da humanidade como os direitos humanos e a igualdade. Tal como a democracia, a cidadania e a liberdade religiosa, a escravatura e a respectiva abolição merecem um memorial.
Se for, evidentemente, um memorial que explique, que dê contexto e enquadramento, que informe, que nos ajude a compreender. Não um memorial que se limite a condenar os negreiros e os portugueses... Não um memorial de autoflagelação que, por razões de oportunismo histórico e demagogia política, pretenda afirmar que o colonialismo dos portugueses foi mais cruel do que o dos outros, que o racismo dos portugueses é pior do que o dos outros, que a escravatura dos portugueses foi mais hedionda do que a dos outros, que a escravatura organizada pelos europeus e pelos brancos foi mais dolorosa do que a dos árabes, dos chineses, dos indianos ou dos africanos...
E também não um memorial que, conforme sugerido por alguns proponentes, terá de ser feito por artistas africanos ou descendentes de africanos... Isso é racismo! Puro e simples!
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