segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Estatelanço previsível


Mais dois artigos a bater, não no ceguinho mas no zarolho, que é rei entre os cegos, que temos sido nós, gaio da fábula de La Fontaine, a enfeitar-se com as penas do pavão, facilmente desmascarado, infelizmente para nós, os ceguinhos, a quem convém, naturalmente, a aura passageira do prestígio aparente, todo ele repousando na corda bamba do nosso circo sem rede que preste para o funâmbulo. E daí, não sei. Talvez que os únicos a estatelarem-se sejamos mesmo nós, os ceguinhos, que fábulas há que definem o gaio como bastante esperto, para se escapar. Antes da queda.
Artigos de Manuel de Carvalho e de Rui Ramos. A não perder.

OPINIÃO
O Governo a escangalhar-se
Custa a acreditar que se esqueça tão depressa o que aconteceu em 2010 e se volte a repetir com naturalidade os vícios que custaram despedimentos, quebras e cortes de salários, impostos agravados e o vexame internacional.
Manuel Carvalho
Público, 22 de Novembro de 2017
Vista do futuro, a balbúrdia das pressões à volta do descongelamento das carreiras da Função Pública há-de provar o momento em que a geringonça deixou de ser o mecanismo que garantia a sustentação do Governo para se tornar no Governo em si mesmo. Depois de prometer meio mundo e o outro aos servidores do Estado, escancararam-se as portas a todas as reivindicações e todas as reivindicações tiveram direito a promessas que destruíram o balanço da orientação política até aqui mantida por António Costa e Mário Centeno. Hoje, faz pouco sentido o aviso deixado pelo ministro das Finanças no Parlamento há apenas três semanas, quando lembrou que “o que tanto custou a conquistar pode perder-se mais rapidamente do que levou a conquistar”. O Governo converteu-se num balcão de uma mercearia onde se compra, troca e vende tudo. Vendem-se apoios partidários e silêncios sindicais, trocam-se linhas de rumo, prioridades e sentido de Estado, compram-se votos, fidelidades e promessas a prazo. Depois da balbúrdia dos professores e das que se anunciam, é um albergue espanhol onde cabe todo o poder da rua.
Custa a acreditar que se esqueça tão depressa o que aconteceu em 2010 e se volte a repetir com naturalidade os vícios que custaram despedimentos, quebras e cortes de salários, impostos agravados e o vexame internacional. Custa a acreditar que António Costa tenha caído tão facilmente “na ilusão de achar que podemos voltar ao ponto antes da crise”, como esta semana sublinhou o Presidente-Rei, prometendo tudo mesmo tendo a dúvida de que nada pode cumprir. É duro aceitar que no exacto momento em que a sociedade e a economia estão suficientemente sólidas, confiantes e prontas para dar um novo salto em frente haja um Governo que faça regressar “a tendência portuguesa para o ‘mais ou menos’, para o ‘assim-assim’”, ou caia no vício de “‘ganhar um tempinho’”, acreditando que “com sorte isto não dá errado”, ainda nas palavras de Marcelo Rebelo de Sousa.
Depois de Mário Centeno tornar pública a sua firme decisão de aplacar as expectativas irrealistas dos sindicatos, do Bloco e do PCP, pensava-se que o Orçamento do Estado de 2018 seria arriscado, mas dentro do limiar da razão política que este Governo instituiu. Os protestos dos professores mudaram essa percepção. Primeiro, Costa lembrou que “descongelar não significa reconstruir a carreira que as pessoas teriam tido se não tivesse havido congelamento". Depois, admitiu que a contabilização dos anos em que as carreiras dos professores estiveram congeladas é uma possibilidade em “abstracto”. Ontem, recuou de novo lembrando que “é impossível refazer a história”. Entretanto, os professores lá receberam cheque em branco que, em Dezembro, começarão a preencher para receber não em 2018, mas mais tarde. E, como seria de esperar, formou-se de imediato uma fila na mercearia. Já lá estão 20 mil elementos da PSP, os bravos soldados da GNR, os sete mil funcionários judiciais, 15 mil médicos, técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica, trabalhadores do SEF e muitas outras classes profissionais da Função Pública.
Teria de ser assim? Não tinha de ser assim. A espiral de reivindicações estava num estado larvar, mas não fazia parte da ordem do dia. Há meio ano apenas, o coro de reivindicações dos funcionários públicos e a voz grossa dos sindicatos a propósito dos descongelamentos das carreiras quase não se ouvia. E se, de súbito, se instalou como o elefante no meio da sala do debate nacional é porque o Governo perdeu o controlo e deixou que os seus parceiros parlamentares assumissem as rédeas da política. Hoje, o Governo parece uma barata tonta a sacudir a pressão, a encontrar explicações, a disfarçar a falta de coragem para dizer não com adiamentos para Dezembro, para os próximos anos, para todo e qualquer horizonte que o salve da contestação e do vitupério dos seus parceiros. Quem manda são os parceiros das posições conjuntas e as suas extensões nos sindicatos.
O que está em causa deixou por isso de ser um processo suave de reajustamento que contemplava a reposição dos legítimos direitos laborais dos funcionários públicos. Deixou de ser uma gestão criteriosa do presente com olhos postos no futuro e transformou-se numa atitude novo-rica de quem rega os problemas com dinheiro para não ter de os resolver pela base. O Governo é em si mesmo uma geringonça e escangalha-se ao cair na tentação fácil de acreditar que segue em frente sem ter de fazer esforço para caminhar. É uma manta de retalhos abençoada pelo crescimento da economia a ser puxada por forças centrípetas às quais não sabe, não pode ou não quer resistir. É o actor de uma peça de argumento leviano na qual Catarina Martins, Jerónimo de Sousa e os seus aliados sindicais fazem de ponto.
O que está a acontecer vai provocar um aumento desmesurado da despesa rígida do Estado. O destino das contas do Estado voltará a deixar de ficar sob a alçada do nosso controlo e passará a depender da providência das taxas de juros, do crescimento dos nossos parceiros ou da estabilidade política na União Europeia. Voltamos ao passado, como se fôssemos um país estúpido e incapaz de aprender à sua custa dos seus erros. O Governo que até agora tinha conseguido afastar o diabo mantendo um sólido compromisso entre o equilíbrio das contas públicas e a melhoria dos rendimentos dos deslumbrou-se e viajou para a estratosfera.
Com este passo imprudente, António Costa arrisca-se a perder o pé. O eleitorado moderado tenderá a mudar-se para outras latitudes. “A sociedade tem de ter a coragem de assumir os seus problemas”, lembrou uma vez mais Marcelo Rebelo de Sousa, e a sociedade portuguesa teve essa coragem. Quando perceber que o Governo virou a cara aos problemas para garantir o seu confortável “saber durar”, dificilmente lhe perdoará. Como mostraram as eleições de 2015, uma ampla franja dos portugueses perceberam o que se passou. E percebem também o perigo de se encarar o leve alívio na economia como um estímulo ao agravamento da despesa. Sabemos pelos sinais da dívida, do mundo, ou pela fragilidade da economia que a situação recomenda juízo, prudência e paciência para, como tantas vezes acontece na vida, ir melhorando a vida aos poucos.
Pode ser que até 2023 consigamos viver um período de crescimento continuado, pode ser que a conjuntura externa seja capaz de sustentar este bodo aos funcionários públicos. Mas pode ser que não. Os receios, de resto são mais consistentes do que as expectativas positivas. É a incógnita que justificaria a prudência receitada pelo Presidente. Se alguma coisa correr mal, será fácil encontrar o culpado. Quando podia ser um herói ao conservar a actual fórmula de sucesso, o primeiro-ministro decidiu arriscar e prometer o que pode e o que não pode. São opções como esta que afirmam, ou infirmam, a fibra dos estadistas. 

António Costa viu a verdade? Não acreditem
OBSERVADOR, 24/11/2017
Quem, em Agosto de 2005, congelou as carreiras da função pública? Um governo em que António Costa era ministro. A oligarquia sempre soube que quando não há dinheiro, não há dinheiro.
Que diferença fazem sete dias em política: há uma semana, havia um Passos Coelho; agora, parece que há muitos. É o primeiro-ministro que diz que “tudo para todos já” é uma “ilusão”; é o presidente da república que explica que não se pode “voltar ao ponto antes da crise”; é o ministro das finanças que acha que aos funcionários não basta exigir, têm de “merecer”. Por qualquer razão, a oligarquia havia decidido que esta maneira de ver e de falar não tinha a ver com a realidade ou o bom senso, mas apenas com Passos Coelho. Era, como ainda diz o Bloco de Esquerda, “retórica da direita”. Mas há uns tempos atrás, teriam sido quase todos os oligarcas a dizê-lo: alegar que não era possível dar tudo a todos, era “neo-liberalismo”; argumentar que não era viável voltar atrás, era “fascismo”; sugerir uma relação entre rendimentos e mérito, era, sei lá, “insensibilidade social”.
Mas isso era quando a prioridade era isolar e excluir Passos Coelho. Porque foi isso que esteve em causa desde Outubro de 2015: uma vez que os eleitores, nas legislativas desse ano, não o fizeram, teve de ser a oligarquia a entender-se para o afastar do governo. Tivemos assim a actual maioria social-comunista. Esta maioria, porém, jamais correspondeu a uma verdadeira alternativa. O PS não rompeu com o Euro e o Tratado Orçamental, nem o PCP e o BE, votando embora os orçamentos, admitiram que este fosse um “governo de esquerda”. O que António Costa fez foi, até agora, satisfazer o funcionalismo sindicalizado do PCP. Nunca isso teve uma lógica económica, nunca foi keynesianismo, mas apenas um expediente político, compensado depois por “cativações” e cortes de investimento muito anti-keynesianos.
Porque é que os oligarcas tinham medo de Passos Coelho? Porque, entre outras razões, viram como deixara cair Ricardo Salgado e José Sócrates. Pela primeira vez em Portugal, o mercado e a justiça puderam funcionar sem manipulação política. Os oligarcas ficaram horrorizados. Não porque gostassem de Salgado ou de Sócrates, mas porque imaginaram que também eles não poderiam contar com Passos Coelho para favores e protecções. Era preciso, desse por onde desse, tirá-lo do governo. O PCP e o BE, ambos em crise, ajudaram.
Com Passos Coelho finalmente fora de jogo, o mundo mudou para os oligarcas. De repente, a pressão do sindicalismo comunista começou a ser uma irresponsabilidade, e a possibilidade de o BCE descontinuar o financiamento dos défices e dívidas, uma realidade a ter em conta. Viu Costa finalmente a verdade? Não brinquemos. Quem, em Agosto de 2005, congelou a progressão automática nas carreiras da função pública? Um governo em que António Costa era ministro. A oligarquia sempre soube o que agora finge ter descoberto: quando não há dinheiro, não há dinheiro. Com o dinheiro do BCE, o turismo e o efeito de arrasto do crescimento económico europeu, qualquer governo teria feito reposições. Aliás, esse era o grande perigo para os oligarcas em 2015: deixarem que fosse Passos Coelho a aproveitar a folga.
Para se livrarem do líder político que mais os incomodou nos últimos vinte anos, a oligarquia teve de fingir acreditar que o ajustamento da troika teria sido apenas “ideológico”, isto é, desnecessário, e que portanto bastaria afastar Passos para entrarmos num mundo em que era possível voltar atrás e dar tudo a todos. Talvez tenha havido gente iludida. Mas os oligarcas, pela sua parte, nunca tiveram ilusões. Isto foi sempre um exercício do mais frio cinismo. Terão os portugueses percebido que foram vítimas, nos últimos dois anos, de uma enorme fraude política?



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