Não resisti a transcrever o
diálogo de comentário crítico ao texto de Frei Bento Domingues – “A ignorância não é um dever” - entre ESPECTRO
de Matosinhos e ANJO CAÍDO do Outro Mundo, pela sua
frontalidade e sentido de humor, de que o artigo de Frei Bento Domingues é
também exemplo. Não querendo associar-me às disputas sobre os costumes e a
existência do Mal de que a própria Bíblia dá provas, ressalvando a questão das
pedradas bíblicas à mulher adúltera, mas isso já nos tempos de Cristo, pois que
o Jeová do A.T. era mais exigente em termos de punições, lembro o caso do nosso
Camilo e os seus amores por Ana Plácido, e o de Garrett e os seus amores por D.
Rosa Montufar, a Viscondessa da Luz, tudo isso no século XIX. E, para me livrar
destes horrores da criminalidade corrente hoje em dia, até justificada, em caso
de adultério feminino, por
um juiz Neto de Moura, justamente criticado e cito João Miguel
Tavares - “as reflexões cavernícolas contidas naquele texto, que
mais parece ter sido escrito por um levita no sopé do monte Sinai enquanto
aguardava o regresso de Moisés com as Tábuas da Lei. Naturalmente, a indignação
com tal acórdão foi justíssima e generalizada.” – transcrevo o poema de Garrett “As
minhas Asas” que resgata plenamente o crime do adultério, mesmo
contrariando o tal Acórdão desculpabilizante do crime de violência doméstica,
neste nosso século XXI. Crime praticado com uma moca de pregos! Credo!
Eu tinha umas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Que, em me eu cansando da terra,
Batia-as, voava ao céu.
-Eram brancas, brancas, brancas,
Como as do anjo que mas deu:
Eu inocente como elas,
Por isso voava ao céu.
Veio a cobiça da terra,
Vinha para me tentar;
Por seus montes de tesouros
Minhas asas não quis dar.
-Veio a ambição, coas grandezas,
Vinham para mas cortar,
Davam-me poder e glória;
Por nenhum preço as quis dar.
Porque as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Em me eu cansando da terra,
Batia-as, voava ao céu.
Mas uma noite sem lua
Que eu contemplava as estrelas,
E já suspenso da terra,
Ia voar para elas,
-Deixei descair os olhos
Do céu alto e das estrelas...
Vi entre a névoa da terra,
Outra luz mais bela que elas.
E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Para a terra me pesavam,
Já não se erguiam ao céu.
Cegou-me essas luz funesta
De enfeitiçados amores...
Fatal amor, negra hora
Foi aquela hora de dores!
-Tudo perdi n'essa hora
Que provei nos seus amores
O doce fel do deleite,
O acre prazer das dores.
E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Pena a pena me caíram...
Nunca mais voei ao céu. Almeida Garrett
OPINIÃO
A ignorância não é um dever
Não foi a Bíblia que deu
origem à subordinação das mulheres na civilização ocidental.
Frei Bento Domingues, OP
Público, 5 de Novembro de
2017
1. Lutero não passou por Portugal. Na revista Brotéria,
de Outubro, tentei explicar porque lhe negaram o passaporte. Apesar disso, de
vez em quando, surgem acontecimentos que levam os meios de comunicação a
lembrar que existe uma coisa muito antiga chamada Bíblia, que ele próprio
traduziu para alemão. Agora parece que foi invocada, juntamente com o código
penal de 1886, pelos juízes Neto Moura e Maria Luísa Arantes, para atenuar um
crime horroroso contra uma mulher adúltera.
Não admira, dizia-me um
leitor de Saramago. A Bíblia está cheia de histórias escandalosas e de maus
exemplos. O diabo não precisa de ser muito pior do que um deus que mata e manda
matar. Esse livro parece escrito por um bipolar: passa facilmente do
sublime ao detestável, por vezes no mesmo salmo. No entanto, cuidadosamente
encadernado fica bem numa sala, ainda que pouco frequente numa casa portuguesa.
Entre as dificuldades em ler e interpretar esses textos antigos figura uma
insistente ignorância ou esquecimento: a Bíblia não é um livro!
Habituados, como estamos, a
ver as Sagradas Escrituras cristãs num só volume e a dar-lhes um nome no
singular, a Bíblia, somos levados a imaginar que é uma obra que um autor divino
escreveu, de fio-a-pavio, mas com mais heterónimos do que Fernando
Pessoa.
Na verdade, não se trata
de um livro, mas de uma biblioteca formada por 73 ou 74 obras, segundo o cânone
da Igreja católica, e 66, segundo o cânone das Igrejas reformadas. Foi escrita
ao longo de vários séculos em diversos contextos geográficos, sociais e
culturais.
Sem poder entrar aqui em
pormenores, convém lembrar o seguinte: quase dois terços dos livros da Bíblia
cristã são comuns ao cristianismo e ao judaísmo rabínico, herdeiro imediato das
escrituras do judaísmo antigo. Na verdade, o Antigo Testamento (AT) católico é
mais vasto e variado do que o TaNak e o AT das Igrejas reformadas que
adoptaram o cânone judaico. A escrita dos livros do AT católico durou cerca de
um milénio. Teve como quadro essencial a Palestina. É possível que alguns
livros tenham sido escritos, em parte, na Babilónia e outros no Egipto (em
Alexandria).
A exegese
histórico-crítica mostrou que figuram no AT diferentes géneros literários e
temas que são documentados nas outras literaturas próximo-orientais do primeiro
milénio a.C., em particular, nas literaturas dos demais povos semitas [1].
2. Os juízes, se queriam referir-se à relação de homens
e mulheres na Bíblia, teriam de se aconselhar com o trabalho de investigação e
de militância das feministas que reexaminam não só a própria Bíblia, mas também
a interpretação que os homens fazem dela, tentando, muitas vezes, justificar e
perpetuar uma dominação ancestral, própria de sociedades patriarcais. A mulher
era propriedade do marido; a virgem, antes do noivado, propriedade do pai. O
adultério da mulher e a defloração de uma rapariga eram, antes de mais, um
atentado contra o direito de propriedade [2].
A exegese bíblica
feminista assume-se como instrumento de luta pela igualdade social. O seu
objectivo expressa-se em termos de emancipação ou de libertação das mulheres.
Desse ponto de vista, a leitura feminista da Bíblia é comparada e, em parte,
comparável ao trabalho da Teologia da Libertação.
Contrariamente ao que às
vezes se afirma, não foi a Bíblia que deu origem à subordinação das mulheres na
civilização ocidental. A subordinação era um traço das civilizações europeias
antes da chegada da Bíblia. Essas civilizações tinham esse traço em comum com
as civilizações do Próximo Oriente de que a Bíblia é uma expressão. O que a
Bíblia fez foi dar a essa prática a sua legitimação religiosa.
Sendo fruto da civilização
ocidental, o próprio feminismo é herdeiro da mesma Bíblia que deu caução
religiosa à supremacia dos homens sobre as mulheres. Por isso, é natural que a
Bíblia ocupe um lugar muito importante nos estudos feministas, mas as mulheres
ainda estão longe da paridade com os homens. Na Igreja Católica, intérprete
autorizada da Bíblia, a hierarquia continua a ser formada só por homens e, além
disso, celibatários [3].
O NT não legitima as
atitudes dominadoras do AT em relação às mulheres. Pelo contrário, elas estão
incluídas no espantoso universalismo cristão, sublinhado por Paulo: “Não
há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem e mulher, porque
todos sois um só em Cristo Jesus” [4]. No Evangelho de Marcos, mostra-se
que o homem pode ser adúltero contra a mulher. Como nota Frederico Lourenço,
trata-se de “um desenvolvimento notável rumo à igualdade de género” [5].
Quanto à atitude de
Jesus em relação ao apedrejamento de uma mulher apanhada em adultério,
aconselho a leitura das admiráveis observações do mesmo autor ao texto
atribuído ao evangelista João [6].
Se houve mulheres que se
emanciparam para servir o projecto de Jesus, é porque esse projecto as incluía.
O Ressuscitado encarregou-as de evangelizar os próprios apóstolos. Daí que a
Maria Madalena tivesse sido designada como Apóstola dos Apóstolos.
3. Frederico Lourenço entregou-se a um
empreendimento que julguei impossível, quando foi anunciado: traduzir, do texto
grego, o conjunto da Bíblia, tradicionalmente conhecido pelo nome de Septuaginta,
com apresentação, introdução e notas dos vários livros. Sobre a significação, a
originalidade e as explicações acerca da Bíblia Grega, o tradutor encarregou-se
de nos elucidar logo no Vol. I, consagrado aos Quatro Evangelhos, em 2016.
Em 2017, surgiram o Vol. II, Apóstolos, Epístolas, Apocalipse, e o Vol.
III, Os Livros Proféticos. Este, em Outubro. É o segundo acontecimento
mais importante do ano para todos os que julgam que a ignorância do mundo
bíblico não é obrigatória.
Francolino Gonçalves,
O.P., morreu a 15 de Junho deste ano, na Escola Bíblica de Jerusalém, na qual
viveu, investigou e ensinou, durante mais de 40 anos. Segundo alguns confrades,
sofreu muito por não poder continuar as investigações do AT, que tinha
em mãos, especialmente do universo profético, bíblico e extra bíblico, de que
era um reconhecido especialista. Tenho muita pena que ele não pudesse
acompanhar a obra impressionante de Frederico Lourenço, que lhe daria grande
alegria.
[1] Para as informações
fundamentais sobre os mundos em que se formou e desenvolveu essa biblioteca,
ver o amplo e rigoroso estudo de Francolino J. Gonçalves, Mundos bíblicos,
Cadernos ISTA, n.º 18, 2005, pp 7-34.
[2] Ex 20,14; 22,15-16; Lv
20,10; Dt 5,21; 22, 22-29; Ez 16, 38-40.
[3] Cf. Francolino J.
Gonçalves, professor da Escola Bíblica de Jerusalém e membro da Comissão
Bíblica Pontifícia, As mulheres na Bíblia, Cadernos ISTA, n.21 (2008), pp
109-158
[4] Gal 3, 25-28
[5] Mc 10, 1-12 e nota ao
v. 11.
[6] Jo 8, 1-11; cf.
Frederico Lourenço, Bíblia, Vol. I, pp.357-360
Comentários:
Matosinhos 05.11.2017
Fico pasmado com os escritos
de muitos padres, incluindo o de frei Bento. Até há bem pouco tempo toda a
Bíblia era o chamado "livro Sagrado", porque era a "palavra de
Deus" - tanto o AT como o NT. Hoje, e é frei Bento que aqui o escreve
- cito de memória - a Bíblia é "literatura que foi escrita por homens
ao longo de séculos", donde, acrescenta, "aquilo que é apelo à
violência, à guerra, aos castigos desumanos, à escravatura (sim, leiam, está
lá, mesmo no NT), nada tem a ver com a palavra de Deus, mas sim apenas
responsabilidade de algum idiota da época que escreveu essas barbaridades. Mas
mesmo assim, não deverá ser interpretado como está lá escrito, mas como pensa
hoje o feri Bento. Os valores de Deus não são intemporais (naquele tempo Jesus
aceitava a escravatura!), dependem do milénio!
Matosinhos 05.11.2017
Concluindo. A incoerência e
descaramento da hierarquia da IC permitem-lhe dizer hoje o contrário do que
diariamente disseram durante séculos, com o ar cândido e doce que cordeiros
e/ou ovelhas do Senhor ostentam, a darem-nos a ideia de que sofrem todos de prisão
de ventre crónica, tal a máscara sofrida que nos mostram. Aceitam hoje que a
Terra gira à volta do Sol (foi Deus que assim o fez! LOL) com a mesma
sem-vergonha com que ontem condenaram à fogueira centenas ou milhares por o
afirmarem (porque, diziam então, contrariava a Obra de Deus). Como é óbvio,
pelo menos para mim, esta gente não é para ser levada a sério - só como
diversão. Se se trata da estória de atirar a "1ª pedra", foi Deus que
disse, se for mandar matar a mulher adúltera ou qualquer Gomorra, foram homens
que escreveram LOL
do Outro Mundo 05.11.2017
Espectro, de onde lhe vem
tanto ódio? Olhe para qualquer organização milenar - pode começar pelos Estados
democráticos, laicos, europeus do século XXI. Para quem quiser olhar para trás,
encontrará sempre horrores. As suas críticas violentas têm tanto sentido como
dizer "ah! olhem agora o Estado português a defender os direitos humanos!
Pois, mas no século XVI praticavam a escravatura, não era? Hipócritas!".
Não podemos ficar reféns do passado nas nossas análises, o mundo não pára, as
instituições também não.
Matosinhos 05.11.2017
Meu caro Anjo Caído, essa
de acusar de ódio quando alguém crítica a IC já tresanda a mofo! Se algum ódio
tenho é a quem propala mentiras, quem é incoerente e manipula os textos
(chamam-lhe interpretação!, só me posso rir) conforme os seus interesses históricos,
quem faz de lendas absurdas verdades absolutas, quem se arroga dono da moral,
da verdade e do amor pelo seu semelhante, etc, etc. - isso odeio, sem contudo
odiar as pessoas, embora as despreze intelectualmente, confesso. Não se atrevem
a dizer a verdade sobre Fátima (uma mentira colossal) e de aparições
transformam aquilo em visões, ou sei eu lá o quê, elaborando sobre o tema
tratados de filosofia. Deixem de insultar a inteligência das pessoas, não
vivemos na IM e já ninguém tem medo o do Inferno. LOL
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