Este mundo é cheio de
aldrabices e uma grande acima de todas foi a do convite de Agamémnon à sua
filha Ifigénia para se ir casar com Aquiles, em Aulide, quando o que pretendeu
foi sacrificá-la a Artemis, para obter ventos favoráveis para a sua armada poder
partir para Troia, como estava combinado com Menelau, o marido enxovalhado da
bela Helena. Isto contaram uns trágicos gregos, assunto retomado por Racine e até,
ao que parece, posto em ópera, mas é demasiado escabroso e não foi demonstrado
que Ifigénia morreu. Mas foi o que me lembrou, a propósito dos textos que
seguem, das aldrabices de Centeno e Companhia sobre o real estado das finanças
que no dizer deles é bom e João Miguel Tavares prova que é mau e
sobretudo enganador para papalvos (Vide texto infra, “A carga, o esforço e um artista chamado Centeno”),
e, mais infra ainda, o texto de José Pacheco Pereira, “A vitória do dr. Ivan Petrovich Pavlov”, extraordinário de argumentação acusatória, a
propósito da baba que escorre da participação humana nas redes informáticas
sociais, de inanidade e lorpice, a maior parte das vezes, permitidas por esse
meio social ilusório, como reflexo condicionado, para a satisfação vaidosa na discussão do sexo dos anjos, ou
na exibição de má educação gratuita nos seus comentários, levados no engodo de uma notoriedade sem
tento.
OPINIÃO
A carga, o esforço e um artista chamado Centeno
No actual estado da política nacional vale
tudo, excepto isto: admitir que o fim da austeridade é uma das maiores
aldrabices da política portuguesa.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO,5 de Abril de 2018
Mário Centeno podia ser apenas bom com os números. Mas não: ele também é
bestial com as palavras. Quando os números batem certo, Centeno agarra-se aos
números. Quando os números deixam de bater certo, Centeno modifica as palavras.
De uma forma ou de outra, ganha sempre, alternando entre o amor pela Matemática
e a paixão pelo Português. Vale a pena analisar os conceitos de “carga fiscal” e de “esforço
fiscal” que há dois dias animaram o debate entre Mário Centeno e António Leitão
Amaro no Parlamento – é uma daquelas bonitas ocasiões que nos permitem
apreciar o nível de criatividade a que o ministro das Finanças consegue
recorrer para provar que tem razão, mesmo quando não tem razão alguma.
O conceito de carga fiscal está definido nos manuais: a carga fiscal é o rácio entre o total de
impostos arrecadados pelo Estado num determinado ano mais as contribuições
obrigatórias dos seus cidadãos (Segurança Social) e o produto interno bruto que
o país consegue gerar nesse período. Ela serve para medir o esforço que a sociedade
faz para pagar, em cada ano, os serviços que lhe são prestados pelo Estado. Problema grave do actual Governo: como
compatibilizar a conversa do “virar da página de austeridade” com aquilo que
têm sido os aumentos anuais da carga fiscal. Como é possível dizer que o Governo de
António Costa e Mário Centeno chegou heroicamente, em cima de um corcel branco,
para nos salvar das malvadas “políticas de empobrecimento” de Passos Coelho, quando o Estado nunca sacou tanto dinheiro aos
portugueses em percentagem do PIB como agora?
Os números do INE não deixam dúvidas: 67 mil milhões de euros
arrecadados em impostos e contribuições em 2017, o que equivale a 34,7% da
riqueza produzida no país. É o valor mais alto desde, pelo menos, 1995 (ano em
que o INE começou a compilar estes dados sobre as contas públicas), superando o
recorde de 34,4% registado em 2015. Este número deveria ser
extremamente embaraçoso para o Governo e para os seus parceiros de esquerda.
“Deveria”, claro está, se o mago Centeno não entrasse imediatamente em acção,
argumentando que essa coisa da carga fiscal – que ainda em
2016 ele considerava um conceito importantíssimo, ao ponto de ter dado origem a
confusões com o seu colega socialista Paulo Trigo Pereira a propósito das
estimativas do Orçamento – não é, afinal, o conceito mais adequado para
analisar esta questão.
O que interessa agora – garante-nos Mário Centeno – é o “esforço
fiscal”. E esse,
como não poderia deixar de ser, diminuiu muitíssimo, porque foi através da melhoria
dos rendimentos dos portugueses que se conseguiu mais emprego, mais consumo e
mais impostos. O pobre deputado Leitão Amaro, que se limitou a usar os
números do INE, foi acusado de “iliteracia financeira e numérica”, porque o
Ronaldo do Eurogrupo também é especialista em pontapés de bicicleta: o que
importa é meter a bola dentro da baliza.
O que é exactamente o
“esforço fiscal”, afinal? Não interessa, desde que diminua. Se o INE não
contabiliza o “esforço fiscal”, contabilizasse. E se um dia, por azar, o novo
“esforço fiscal” também calhar subir, o ministro das Finanças criará de
imediato o conceito de “entusiasmo fiscal”, de “vigor fiscal” ou de “ímpeto
fiscal”, qualquer coisa que acabe em “fiscal” e que diminua face ao ano
anterior. No actual estado da política nacional vale tudo, como se vê. Excepto
isto: admitir que o fim da austeridade é uma das maiores aldrabices da política
portuguesa.
Um comentário “comme il faut”:
05.04.2018
Pois, meu caro. Mas o
problema não é do Centeno. É da iliteracia financeira e da falta de
conhecimentos matemáticos e de "agricultura" dos nossos jornalistas.
Isto porque comiam tudo que o governo lhes dava em termos de reposição de
rendimentos, esquecendo-se do que era retirado: coeficiente familiar; impostos
indirectos; cativações e o que o governo disse que tinha dado, mas que não deu,
de facto. A "agricultura" porque engolem que a economia começa a
crescer do dia para a noite: mudou o governo e a economia começa a dar frutos.
Semeiam-se uns tostões (5€ aos reformados com menos de 600€) pela manhã e à
tarde já temos os melões prontos a comer. Acham que o continuado aumento das
exportações e do turismo têm alguma coisa a ver com as "reversões"?
Se assim fosse era fácil governar...
OPINIÃO
A
vitória do dr. Ivan Petrovich Pavlov
As redes sociais são perversas pelo seu próprio funcionamento e pelos
seus mecanismos e não é correcto dizer-se que o problema com as redes tem que
ver com o que se faz delas e não com elas mesmas.
JOSÉ PACHECO PEREIRA
PÚBLICO, 7 de
Abril de 2018
O dr. Ivan Petrovich Pavlov devia ter vivido nos tempos das chamadas
“redes sociais” e observaria com proveito as formas de activismo simplista e
grosseiro que o radicalismo “social” e político provoca nos nossos dias. Quem
queira manter-se saudável e não ter de suportar a salivação condicionada dos
equivalentes aos valentes (e enganados) cães de Pavlov não pode de facto andar
por esses locais mal frequentados.
O nosso activismo político mais extremo deslocou-se para as redes
sociais, e não é por acaso. Aí encontra uma linguagem gutural e primitiva, uma
simplificação grotesca e uma mão-cheia de “seguidores” que amplificam todo o
estilo de ataques, insultos e afirmações de má-fé que acabam por ter uma
circulação em que o testemunho directo é substituído pelos comentários dos
comentários dos comentários. Os livros não são lidos, os
programas não são vistos, as imagens não são conhecidas, os factos não são
factos, mas uma corte de seguidores repete e repete e repete afirmações e
opiniões grosseiras, falsidades, deturpações, que, não sendo verdadeiras,
acabam por ganhar um estatuto competitivo com a verdade. O reclame da
CNN sobre a maçã que não é uma “banana” traduz perfeitamente este mecanismo.
Uma maçã não é uma “banana”, mesmo que se diga e repita e repita de novo que a
maçã é afinal uma banana, ou vice-versa.
O problema é que os próprios mecanismos das ligações em série, sem
mediação ou verificação, favorecem o esquecimento ou a falsidade original,
criam uma “nuvem” de percepções, de factóides, de opiniões ignorantes ou não
fundamentadas, que, com a ascensão da nova ignorância agressiva — uma
consequência negativa de um processo positivo de democratização do acesso à
“fala” pública —, se torna um caldo de cultura propício à manipulação e ao envenenamento. E não falta quem
perceba isto muito bem e o use ou por intuição, como é o caso de Trump, ou com
poderosos instrumentos estatísticos e algoritmos, com todos os meios da ciência
ao seu alcance, como é o caso da Cambridge Analytics. E com uma “pequena” ajuda
de empresas tecnológicas que vivem do negócio dos dados pessoais como é o
Facebook, ou das séries de trolls e hackers que um governo
como o de Putin pode pagar. Ah! e com a ajuda de um cada vez maior número de
pessoas que é indiferente ao valor da privacidade e a troca ou por
“facilidades” aparentemente gratuitas ou por um Ersatz de vida social
para quem não tem nenhuma.
As redes sociais são perversas pelo seu próprio funcionamento e pelos
seus mecanismos e não é correcto dizer-se que o problema com as redes tem que
ver com o que se faz delas e não com elas mesmas. É um pouco como o argumento dos defensores das
armas nos EUA que dizem que o problema não são as armas mas os homens. Não é verdade. O problema são os homens com armas, como
aqui são os homens, os grupos de homens, as empresas dedicadas à manipulação
profissional (e não são só as fábricas de trolls, ou a Cambridge Analytics
e as suas serviços secretos e os mil e um envenenadores anónimos que sabem como
usar as virtualidades congéneres, são as agências “de comunicação”, de
marketing, etc.), os das redes para obterem resultados comerciais, culturais,
sociais, políticos e outros. Mas para isso precisam dos instrumentos que
fazem de uma maçã uma banana e precisam de uma cultura que não olhe para uma
maçã e uma banana e veja só aquilo que circula sobre como uma maçã é uma
banana.
Quando se perde lá longe na cadeia de comentários, tweets, páginas,
blogues o facto de
que uma maçã não é uma banana, está ganho um combate que infelizmente é cada
vez mais vitorioso. Quando,
depois, jornalistas aceitam amplificar como sendo um “facto” de que afinal uma
maçã é uma banana, ou que a redes sociais “fervem” com aquilo que dizem ser uma
“banana” e afinal é uma maçã, perde-se uma forma fundamental de mediação da
realidade por uma
profissão cuja função é a de informar para nos tornar melhores cidadãos. O
mesmo se passa com a sistemática desvalorização do saber profissional e
técnico, com uma forma de igualitarismo que resulta numa apologia da
ignorância.
Não vale a pena perder tempo sequer aqui com as mil e uma discussões
sobre o que é a verdade, sobre a construção da verdade, sobre a ideologia que
transforma um facto numa notícia, sobre a construção dos factos pelo
jornalismo, sobre a agenda que mostra e a que oculta, as mil e uma discussões
que se podem e devem ter, mas que infelizmente estão muito longe do problema
com que hoje a opinião pública, essencial para uma democracia, está
confrontada: a questão simples de que uma maçã não é uma banana. Até aqui andamos para trás, para o fundamental
sem complicações, ou seja, estamos mais no domínio da ética do que da análise.
Estamos assim reduzidos a uma questão tão simples, que tudo o resto só ajuda a
complicar — porque, de facto, o problema dos nossos dias é que há mecanismos
instalados, em particular a cultura tribal das redes sociais, que trivializam a
afirmação de que uma maçã é uma banana e ninguém quer saber disso, porque na
minha bandeira eu tenho uma banana a que chamo maçã.
A tribalização foi um elemento essencial para o sucesso da dissolução da verdade e
dos factos. As redes sociais, em vez de gerarem mecanismos de
enriquecimento grupal, de socialização cívica, de contactos e proximidade, de
luta contra a solidão dos nossos dias, de empowerment, fizeram exactamente
o contrário. Tornou-nos adeptos de um clubismo político perigoso, de tribos
mais ou menos guerreiras que não ouvem nada que venha de fora e que
literalmente são onanistas. O discurso que divide e o discurso das fronteiras
têm aqui o seu apogeu. Como Trump quer fazer o “belo” muro para separar os EUA
do México, ou seja, o bem do mal, as redes sociais vivem de fazer muros nos
quais não passa nenhuma voz alheia à tribo, onde tudo vive sob a forma de
cânticos e urros.
O outro mecanismo é que sem mediação a contradição entre a verdade e a
mentira primeiro esbate-se e depois apaga-se. Trump já disse nos seus tweets e em
várias declarações mais de 800 mentiras, inverdades, omissões da verdade, puras
falsificações, mas isso não lhe importa e pouca importa aos “seus”. O
tribalismo das redes funciona para desvalorizar e ignorar esta realidade. Trump
percebeu isso e usa o Twitter para comunicar “directamente” com a sua “base”
sem intermediação. Ele sabe intuitivamente que a sua “base” tem um
comportamento tribal, portanto lê o que gosta de ler. E, se Trump lhe diz que
uma maçã é uma banana, pensa que os que dizem que uma maçã é uma maçã estão a
conspirar contra Trump e divulgam “fake news”. Ele sabe também que ninguém vai
verificar, porque a mentira é satisfatória e funciona como recompensa e
gratificação.
É como no cão de Pavlov — ele saliva, quando sente que a comida se
aproxima e quando ouve os passos do dono, mesmo que não tenha a comida em
frente. É de facto um mundo-cão.
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