Com a leitura dos textos de Alberto
Gonçalves e de António Barreto:
O primeiro, de Alberto
Gonçalves, pela sua verve crítica, que
a verrina mais eleva, pois bate em cheio na grosseria de actuações e
reivindicações nacionais fraudulentas, como a da história que relata sobre um “génio”
arrivista/vigarista, em busca de sucessivas aplicações do seu talento e de requisição
de subsídio estatal, como artista e reivindicador social, que a protecção de
Catarina Martins provavelmente fará eleger ao posto competente, num meio pouco
exigente de competências reais, como este nosso, tosco e esmoler: A história de Bernardo Lapa, homem da “Cultura”, uma
“peça de arte”, complementada com as Notas de rodapé, tão justas,
sobre o caso “Lula da Silva” e do presidente do Sporting.
O segundo texto, de António
Barreto, um violento libelo contra os perigos de redes sociais ou outras
mais subtis, de que ninguém pretende desfazer-se, na defesa da sua liberdade como
direito conquistado, preferindo – ou não – ser informado sobre os perigos que
corre, de devassa pessoal, a renunciar à sua liberdade de opção. Um artigo
circunstanciado, ao jeito crítico de uma argumentação perfeitamente sequente,
que causa prazer e assusta. Concluindo com a bela foto do Jardim da Estrela,
com as suas referências históricas de tanto interesse onde não falta também o
sentido crítico, sobre o desleixo e a incultura nacionais.
A história de Bernardo
Lapa, homem da “Cultura”
7/4/2018
Bernardo Lapa
celebrou o governo de esquerda, que assumiria a responsabilidade que lhe cabe
na Cultura, distribuindo os rendimentos da população bronca pelos agentes”
susceptíveis de a iluminar.
É tempo de contar a
história de Bernardo Lapa, tão verídica quanto o país. Ainda muito
novo, Bernardo Lapa desconfiou que via o mundo de modo diferente. Três
oftalmologistas garantiram tratar-se de astigmatismo, mas um tio ligado à
mediação de seguros e às artes (participou em três “colectivas” de pintura e
visitou outras dezasseis) falou-lhe no “olhar artístico” e desde então Bernardo
Lapa não mais deixou de procurar a própria “voz”. Sempre era melhor do que
procurar emprego.
No final da adolescência, a
par do curso de Antropologia, Bernardo Lapa já havia percorrido inúmeras formas
de expressão, da banda desenhada à fotografia, do candomblé à olaria, da
acupuntura ao batuque. E causou brado, junto de dois primos, a sua fugaz
aparição na curta-metragem “Mariana, ou da Natureza das Coisas”. Aos 21 anos,
julgou ter descoberto o seu habitat no universo literário, que depressa
abandonou ao perceber que, além de conceber o romance “A Côdea” (o relato de um
flautista de rua que convence um gestor de activos a tornar-se flautista de
rua), teria também de escrevê-lo. O rigor burguês e acomodado da gramática não
o seduzia.
Aos 24 anos, após
sucessivos retiros num mosteiro budista e no sofá-cama da namorada, Bernardo
Lapa optou por romper com quaisquer abordagens tradicionalistas e dedicou-se a
promover instalações. Embora nunca tenha instalado um ar-condicionado ou uma
torneira de passagem, ficou relativamente célebre a ocasião em que se instalou
num restaurante do Chiado, engoliu um arroz de tamboril com vinho branco e, no
momento de pagar a conta, denunciou aos berros a perseguição aos artistas.
Nessa época, repetiram-se os berreiros e as greves de fome, nenhuma superior a
quatro horas.
A caminho dos 30 e a meio
caminho entre a casa dos pais e as vigílias por causas sortidas, Bernardo Lapa
viu um mendigo sem pernas e, ao contorná-lo a sete metros, teve uma epifania:
só havia uma arte capaz de retratar sem constrangimentos os abismos para que se
precipitam as almas, as brechas nos muros da incomunicabilidade, a complexidade
da existência, enfim. Nesse instante, permanentemente acometido de uma forte
consciência social, Bernardo Lapa comprou duas Sagres Mini e decidiu
dedicar a vida ao teatro de marionetas.
Um ano depois, a
companhia Cabaça dos Mafarricos, que Bernardo Lapa fundara com um amigo e cinco
bonecos, adquirira largo prestígio no eixo Príncipe Real-Campo de Ourique.
Restava um problema: estava-se em 2012 e a austeridade “neoliberal” restringia
selvaticamente os subsídios à “Cultura”. Por motivos óbvios, a sra. Merkel e
Pedro Passos Coelho não queriam expor o povo ao exacto tipo de conhecimento
patente nas obras da Cabaça dos Mafarricos. A peça inaugural, “Presos Por um
Fio”, descrevia justamente (nos dois sentidos) a angústia de um licenciado em
malabarismo – Tomás – que, por intervenção de um poder maligno e avesso à
criatividade, se vê forçado a descer a trabalhos típicos da ralé. No derradeiro
acto, desesperado pela falta de apoios, Tomás lança-se de um rés-do-chão e
magoa-se um bocadinho. Na estreia, os seis espectadores aplaudiram de pé.
Nessa época, a
contestação de Bernardo Lapa não se limitou aos fantoches. Politizado,
marchou quase diariamente contra Israel, as touradas, a destituição daquela
senhora brasileira, o exílio do cançonetista Tordo, o consumo de bacalhau, o
aquecimento global, o arrefecimento global, o sr. Trump, a proibição das
drogas, o boicote ao Haiti, perdão, a Cuba (ele confundia-os), o Belenenses e,
claro, cantou a “Grândola” nas imediações de cada ministro da “direita”.
Afinal, Bernardo Lapa era um homem da “Cultura”.
E foi enquanto homem da
“Cultura” que Bernardo Lapa celebrou o advento de um governo de esquerda.
Finalmente, julgou, o Estado assumiria a responsabilidade que lhe cabe no
sector, distribuindo os rendimentos da população bronca pelos “agentes”
susceptíveis de a iluminar. No princípio, tudo correu bem. Através de uma ou
duas “cunhas”, a Cabaça dos Mafarricos obteve o financiamento de “Um Furúnculo
em Setembro”, crítica implacável do turismo nas grandes cidades. Recentemente,
porém, Bernardo Lapa soube que a encenação seguinte, ainda com título, tema, enredo
e bonecos a definir, não conseguira a subvenção que ele e a humanidade
naturalmente esperavam. Num ápice, tirou a conclusão inevitável: o governo de
esquerda quer igualmente matar a cultura.
Nos últimos dias, Bernardo
Lapa tem-se desdobrado em protestos. Perante as câmaras televisivas,
empunhando um cartaz com o slogan “Só a ditadura não gosta da Cultura!!”,
explicou às massas que a arte não pode depender do gosto delas, mas apenas do
dinheiro. O vídeo, com 374 “visualizações” (e 41 “gostos”), tornou-se viral. Na
sexta-feira, Bernardo Lapa desfilou ao lado da dona Catarina do BE, ruidosa
adversária do Orçamento que aprova na AR. Começa a falar-se dele para um
lugar na Direcção Geral das Artes ou até no ministério. Assim os deuses
permitam, já que a “Cultura” é um direito divino.
Notas de rodapé
1. O sr. Lula?
Sinceramente, custa-me a crer que um sujeito com passado ilustre no comunismo,
no sindicalismo e na apresentação de livros assinados por José Sócrates esteja
envolvido num dos maiores esquemas de corrupção da história dos esquemas de
corrupção. Se calhar, os tipos fizeram mal as contas e não desapareceu um
tostão. Ou então é mesmo má vontade e há uma data de gente interessada em
prejudicar a democracia, o progresso social, a paz, o pão, a habitação, etc.
Entretanto, espera-se que resultem os esforços dos nossos “media” na
beatificação do ex-metalúrgico: é que todos os dias entram por aí brasileiros
assustados e convencidos de que esse santo é o demónio em forma de analfabeto.
E o modo como o santo evitou entregar-se às autoridades para forçar baderna e
sangue mostra que os brasileiros têm alguma razão. O sr. Lula não será o
demónio, mas é dos maiores canalhas disponíveis no mercado.
2. Inúmeros
desmancha-prazeres pedem a demissão do presidente do Sporting. Nem a brincar. O
sr. Bruno de Carvalho é das raras fontes de diversão que o país possui. Deve
ser um dom natural, mas a verdade é que tudo o que o homem diz ou faz tem
graça. Ontem, foi a suspensão do “plantel” em peso. Amanhã, será a transladação
para os Jerónimos da sua vivíssima pessoa. Querer acabar com isto, e com o gozo
alheio, é coisa de malucos. E ainda juram que o maluco é ele.
A liberdade é melhor do que a
censura
ANTÒNIO BARRETO
DN, 8/4/18
Perante os evidentes abusos cometidos pelas grandes operadoras de
"redes sociais", eleva-se o clamor: mata, esfola, proíbe, censura,
vigia, controla e regula! São estas as palavras-chave que descansam os incautos
e os virtuosos, mas acabam por permitir aos operadores continuar a fazer os seus
negócios, com mais ou menos exigências, mas negócios apesar de tudo.
A verdade é que estas "redes" correspondem a objectos de
sedução e criam necessidades de consumo (artificiais, pois claro, como
praticamente todas as necessidades de consumo). Fomentam novos costumes e
hábitos. Estabelecem padrões de comportamento. Resultam de uma enorme
capacidade de manipulação do mercado e de um formidável talento para inventar
necessidades sedutoras e irresistíveis.
Estas "redes" vieram para ficar. Sejam as mais conhecidas (as
ditas "sociais", a começar pelo famigerado Facebook) sejam todas as
outras, fechadas, discretas, profissionais ou diletantes. Há comportamentos,
hábitos, sistemas de educação e de ciência, circuitos artísticos e de
informação e sobretudo negócios que já não dispensam as "redes".
Estas vivem das decisões individuais de centenas de milhões de pessoas
que, no mundo inteiro, aderem e utilizam. Sem essa adesão, não há
"redes". O único controlo que se conhece é o exercido por governos
ditatoriais, que têm os meios políticos e técnicos para filtrar e censurar como
querem e entendem. Também existe o "acompanhamento" feito por
empresas e Estados (mesmo democráticos, como se vê agora), que espiam, gravam e
observam. É talvez este o sistema prevalecente.
Proibir estas "redes"? Só as ditaduras. Controlar? Ilusão
total. No dia seguinte ao estabelecimento de um qualquer procedimento, logo a
seguir os operadores de "redes" inventarão outros sistemas e outras
"redes". Vigiar e regular? Fora de questão. Primeiro, porque já se
faz e ou as pessoas não sabem, ou sabem e não se importam, ou os Estados e as
empresas que o fazem não confessam. Segundo, porque, neste capítulo, o Estado
merece tanta confiança quanto os operadores e as empresas.
A solução para este problema, se é que tem solução, é a velha e santa
liberdade. Informada, pois claro. Por outras palavras: quem pode deve dar meios
para que o cidadão decida. Informar e publicar listas exaustivas dos perigos,
das faculdades concedidas, dos dispositivos que não estão explícitos mas que
podem funcionar (localização das pessoas, listas de contactos, inventários de
preferências, actividades viciosas e virtuosas, etc. ...) e dizer o que se deve
recear, o que se pode esperar, o que se pode fazer para contrariar, como se
pode apagar uma app, como se pode não descarregar os dispositivos...
Publiquem-se as listas dos intrusivos e dos que perseguem os cidadãos.
Cada um decida por si. Quanto mais informado melhor. O Estado (e, já
agora, jornais, televisões, universidades, associações privadas...) pode
elencar os perigos e as soluções, as ameaças e as vacinas. Mas deixem a cada um
escolher os seus vícios, os seus defeitos, as suas virtudes, os seus prazeres e
a sua curiosidade... E defender a sua privacidade. Ajudem cada um a saber às
quantas anda e o que pode fazer...
Há muito a fazer. Pelo Estado, pelos cidadãos, pelas associações, pelas
universidades, pelos organismos de defesa dos consumidores... A palavra de ordem é avisar. Informar sobre
as consequências e os efeitos, sobre os perigos e as ameaças. Que acontece a
quem se inscreve no Facebook? Que se deve fazer para evitar ser perseguido pelo
telemóvel, pelo computador e pelas redes? Que app se deve liquidar para que não
saibam com quem se anda, a fazer o quê e aonde? Isso é que ajudaria o
consumidor e o cidadão! Isso é que dava meios para escolher melhor, para
defender a liberdade e para ajudar à autonomia de cada um.
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo
Ortográfico.
As minhas fotografias
Arvoredo e Antero de Quental no Jardim da Estrela, em Lisboa. Este é sem dúvida um dos mais belos jardins
urbanos de Lisboa e do país. Pequeno, com menos de cinco hectares, foi
inaugurado em 1853, tendo sido mandado construir uns anos antes por Costa
Cabral. Foi rebaptizado Jardim Guerra Junqueiro,
mas a designação caiu em desuso. Aqui viveu em tempos, numa jaula, o famoso Leão
da Estrela. Hoje, recebe todos os dias crianças, velhotes, jogadores de
sueca e bisca, namorados, feiras de várias especialidades, grupos de piquenique
e gente avulsa à procura de paz. Que encontra. Várias estátuas povoam o
jardim, quase todas espatifadas e grafitadas. Salva-se, como um fantasma no
meio da verdura, este Antero de Quental, da autoria de Barata Feyo. O
jardim tem uma encantadora colecção de árvores. Infelizmente, como quase sempre
em Portugal, estas não são identificadas, não se lhes conhece o nome vulgar nem
a designação erudita, muito menos a data aproximada de nascença. Falta de
lucidez e de cultura das autoridades.
FOTOGRAFIA DE ANTÓNIO BARRETO
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