sexta-feira, 6 de abril de 2018

Pausa no asco



Eficiência, é o que me apraz dizer, lendo este sereno texto de Teresa de Sousa, que não deixa de ser atemorizador, na sua narrativa séria e fundamentada sobre o estado da Europa nas suas relações com a Rússia de Putin e a USA de Trump, revelando, simultaneamente, a consistência da relação da EU com o RU, apesar do Brexit. Um prazer de leitura, e, paralelamente, o prazer do afastamento das nossas eternas misérias nacionais, que provocam sentido asco.

OPINIÃO          O curso intensivo de May sobre o “Brexit” e outras lições
A primeira-ministra britânica já descobriu que a “Global Britain” não passa de uma miragem.
TERESA DE SOUSA                              PÚBLICO, 25 de Março de 2018
1. Era para ser a cimeira dos adiamentos. Acabou por ver o mundo cair-lhe em cima, literalmente, expondo as fraquezas de uma Europa que ainda não se consegue antecipar às constantes e inesperadas crises de uma nova desordem internacional, mas que vai fazendo o seu caminho. Angela Merkel fartou-se de avisar, enquanto decorriam as negociações para a “grande coligação”, que o mundo não ficaria à espera da Europa. Nada mais verdadeiro. Mas a responsabilidade alemã por alguns adiamentos da agenda politica europeia também não deve ser ignorada.
A questão central foi a Rússia de Putin. Apesar dos resmungos de alguns governos mais amigos de Putin ou mais ameaçados por ele, a resposta europeia ao que se passou em Salisbury, Reino Unido, com a utilização de um agente químico de produção militar contra um antigo espião russo, acabou por ser bem mais firme do que se esperaria. Macron e Merkel lideraram a resposta sem particular delicadeza. A Rússia tornou-se uma ameaça. Ambos admitiram que serão necessárias mais sanções, em consequência do ataque no Reino Unido. “O que aconteceu na Grã-Bretanha não tem precedentes e exige uma reacção”, disse o Presidente francês ao lado da chanceler. Não poderia ser de outra maneira. Putin ultrapassou uma linha vermelha que não era possível ignorar. Como já aconteceu noutras ocasiões, a intenção de Moscovo era intimidar para dividir a Europa. Acabou por uni-la. “Putin consegue sempre unir os europeus quando eles mais precisam”, dizia um diplomata francês em Bruxelas. O Presidente russo, que anunciou uma nova relação com a Europa, ainda telefonou a Macron para esclarecer o caso, mas não teve a resposta que desejaria. É um mentiroso compulsivo, como costuma dizer a chanceler, que consegue detectar facilmente o comportamento de um ex-agente do KGB. Perdeu a parada. Mas não vai desistir da política agressiva e expansionista que pratica à margem da lei internacional. Os europeus perderam a inocência com a guerra na Ucrânia e a ocupação da Crimeia, a partir de 2015. A NATO mantém uma força, mesmo que simbólica, nos países bálticos, para dissuadir qualquer aventura de Moscovo. Falta à Europa definir uma estratégia comum para lidar com a nova ameaça que emergiu na sua fronteira Leste. Já cometeu os erros suficientes para deixar que regimes autoritários e nacionalistas se instalassem nos países do Leste, como a Hungria, que vêem em Putin um “irmão”. Vale o facto de esses países também saberem fazer contas: nada substituiria, nem de perto nem de longe, o que recebem da União Europeia.
2. Mas, em Bruxelas, o acontecimento, porventura, mais relevante talvez se possa resumir assim: nos últimos 15 dias, Theresa May teve um curso intensivo sobre as consequências do “Brexit”. Em múltiplas dimensões. O título da coluna de Philipe Stephens no Financial Times de sexta-feira resume o estado da arte: “Estratégia britânica para o ‘Brexit’: qualquer acordo serve.” A provocação de Putin foi um sinal de alarme tão violento que acabou por acelerar o acordo de transição com Bruxelas, mesmo que à custa de ainda mais cedências de Londres. A primeira-ministra britânica ainda sofreu bastante com o atraso das reacções dos seus parceiros europeus. Mas eles não lhe faltaram, como se viu durante o Conselho Europeu. Descobriu que os seus aliados estão do lado de lá da Mancha e que a “Global Britain”, anunciada pelos defensores da saída do Reino Unido, não passa de uma miragem.
Se não houvesse outras razões, que as há, já nem sequer podem contar com os Estados Unidos. Trump é imprevisível, não entende o significado da palavra “aliado” e não tem qualquer interesse em manter a ficção de uma “special relationship” que durou desde a II Guerra. O governo britânico cometeu um fatal erro de cálculo: contou com a divisão da Europa perante o “Brexit”, abrindo o espaço a uma negociação mais equilibrada. Isso não aconteceu. De resto, o lado mais forte seria sempre Bruxelas. Paul Taylor escreve no Politico que o “Brexit” é “a gestão de uma rendição”. May já percebeu que quanto mais próximo o seu país ficar da União Europeia melhor. Do lado europeu, devia haver o mesmo espírito, mas ainda não se tem bem a certeza.
3. A outra grande dor de cabeça vem, obviamente, de Washington. Trump anunciou há cerca de um mês as suas primeiras medidas proteccionistas, com novas tarifas para o aço e o alumínio, deixando a Europa em suspenso, enquanto estudava as respostas possíveis. Na quinta-feira, o Presidente americano anunciou que o seu “inimigo” era a China, excluindo, até ver, a União Europeia, Japão, Austrália, Coreia do Sul, México e Brasil. Mas o receio mantém-se, até porque Trump anunciou que iria rever a matéria já em Maio. As restrições tarifárias impostas a uma longa lista de produtos chineses e a previsível retaliação da China vão ter um impacto negativo na economia global. Não são boas notícias. A radicalização política que está a ganhar forma na Casa Branca, com as últimas escolhas de Trump, também não é animadora. Como escrevia anteontem o New York Times, “com a escolha de John Bolton para seu conselheiro nacional de segurança, [o Presidente] constitui uma equipa de linha dura”, como raramente se viu. A volatilidade do mundo aconselha os europeus a sublinharem a sua fidelidade à relação transatlântica. Compreende-se. A Europa continua a depender dos EUA para garantir a sua defesa e os EUA ainda são uma peça fundamental em muitos tabuleiros onde se joga hoje a desordem mundial.
4. A agenda internacional acabou por desviar as atenções do adiamento de outras políticas tão ou mais importantes para a consolidação da União Europeia e para a sua vontade de manter-se unida face à turbulência que a cerca. A mais importante continua a ser a conclusão da reforma da união monetária, um passo fundamental para muitos países europeus, incluindo o nosso, para garantir um caminho de convergência entre as economias do euro que, antes da crise, não existiu e que é a melhor garantia da sua sustentabilidade. Pelo contrário, na sua primeira fase, a união monetária aumentou as divergências entre as economias mais fortes e mais fracas, contribuindo para a crise das dívidas soberanas. A conclusão desta reforma ficou adiada para Junho, à espera de uma proposta conjunta entre Paris e Berlim, que não será fácil de negociar, mas que é decisiva para que possa haver um compromisso entre todos. Sabe-se a que se deve o atraso. A chanceler pediu mais tempo, depois de ter passado seis meses a tentar formar uma nova coligação de governo. Mantém ainda uma boa dose de indefinição sobre o que tenciona fazer.
Mesmo assim, a reunião dos 19, que tinha ficado sem agenda, acabou por debater a reforma, incluindo uma intervenção do presidente do Eurogrupo, Mário Centeno. Durante a conferência de imprensa conjunta com a chanceler, o Presidente francês anunciou que as negociações vão continuar em Abril e Maio, através de reuniões conjuntas ao nível ministerial, prometendo um avanço rápido. Macron está a braços com a inevitável contestação social às suas reformas internas. Precisa de mostrar que elas valem a pena, porque aumentam a influência francesa em todas as decisões económicas (e políticas) da Europa. Mas também se sabe que a França nunca arriscará uma ruptura com a Alemanha e que terá de ceder alguma coisa à visão alemã do funcionamento da união monetária.
O perigo maior vem do Norte. A Holanda e os seus amigos finlandeses e austríacos mantêm a linha dura que sempre defenderam durante a crise: as regras estão definidas; os países do Sul que as cumpram. Não querem nem mais um euro para Bruxelas. Acham que a Europa está bem assim. Coube a Merkel, até agora, encontrar um equilíbrio entre o Norte e o Sul. Como o fará desta vez, ainda não há as pistas necessárias. A única coisa que sabemos, e a chanceler também, é que o euro é hoje o mais forte cimento da unidade europeia.

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