Divertido, cáustico. Como
sempre, benfazejo. Aponho comentários de outros, apenas interessada no naco
saboroso que nos fortalece a alma. O texto de Alberto
Gonçalves, de sábado, altas horas.
Acrescento o texto de uma mulher – Maria
João Avillez - das que não se ofende por não ser enquadrada na lista fatal
que uma tal “lei de paridade” mais menospreza do que parece
favorecer. Texto escrito para o lançamento de um livro de um seu amigo – Victor
Cunha Rego – dos ilustres que participaram na fabricação do Portugal
novo. De quem eu ouvia falar, desconhecidamente embora, apreciador, ao que
parece, do assaltante do “Santa Maria”, Henrique Galvão, imagem de marca para
os adeptos do Portugal novo que se reviam em “romanticismos” serôdios. Surpresa para mim, que vi a sua acção mais em
termos de petulância criminosa, apelativa de correcção exemplar, embora
exemplaridade não seja exigência nossa, que ainda hoje ouvi, a em inglês
estudioso de incêndios, que quase cem por cento dos fogos cá no nosso país têm
mão criminosa. E vi igualmente imagens de animais enviados para o Médio
Oriente, em condições tão absurdamente miseráveis, que desejei, para esses impunes
promotores de atrocidades, que ocupassem o lugar dos animais - envoltos em
excrementos, a morrer lentamente, e os incendiários a arder mais velozmente,
nos próprios fogos por eles ateados.
Volto a ler o saboroso prato
de Alberto Gonçalves. Talvez, todavia, para mais me afundar neste atoleiro
bestial, que é o nosso, em tantas frentes.
I TEXTO: POLÍTICA Humilhadas e ofendidas
O problema põe-se ao
contrário: a maioria das senhoras (e dos cavalheiros, calculo) é competente
o bastante para evitar a política e deixá-la ao cuidado dos que,
independentemente do sexo, não são.
“Terão os partidos
mulheres suficientes para as listas?”, aflige-se o “Diário de Notícias”. É
extraordinário. Por um lado, que, com cerca de 72 leitores (contando comigo), o
“Diário de Notícias” continue a existir. Por outro, que a misoginia
vigente insista em aumentar por decreto a “participação” feminina na política,
agora elevada a 40%.
Não é por acaso que a
“participação” leva aspas. A relativa escassez de senhoras nos partidos sempre
foi um indício da higiene daquelas e da sujidade destes. Desde tempos
imemoriais, é sabido que, com excepções tão raras quanto dignas de estudos científicos,
apenas chafurdam nesse meio criaturas rotundamente incapazes de prestar
qualquer tarefa válida à humanidade ou sequer ao condomínio lá do prédio. Se
alguém demonstra uma absoluta inaptidão para o trabalho e a vergonha na cara,
candidata-se a uma repartição das Finanças. Se nem para isso prestar, alista-se
num partido, onde poderá exibir a presunção dos simples, traficar “ajudas de
custo” e tratar juízes por “pá”. Salvo por um pequeno número de casos perdidos,
boa parte das mulheres tem mais o que fazer – sobretudo não fazer figuras
tristes. E é triste que, por obra e graça de políticos, uma quantidade
crescente de fêmeas da espécie se vejam arrastadas pela e para a lama. Dada a
ética do sector, e a necessidade de “preencher” as “quotas”, imagino algumas
convertidas sob sequestro e ameaça de navalha.
Não vou questionar o
direito de o Estado intervir nestas matérias: a pergunta seria absurda e, em
Portugal, a resposta seria ainda pior. O que é interessante – e notável, na
perspectiva do marketing – é que tamanho enxovalho seja vendido a título de
“promoção” ou, na versão épica, de avanço civilizacional. Os factos
mostram exactamente o oposto. Se o verdadeiro objectivo do exercício é a
“emancipação” das mulheres, porque é que esta não se aplica a profissões
honradas? Porque é que não se impõem “quotas” nos ofícios de carpinteiro (de
limpos e de sujos), camionista (longo e médio curso), trolha, canalizador,
futebolista, guarda-nocturno, mineiro, pedreiro, sapateiro, palhaço, etc.?
Porque é que o reconhecimento da igualdade se restringe a cargos que diminuem
os titulares? Porque é a humilhação que se pretende. Chegar a autarca,
administradora pública ou ministra é das menores proezas ao alcance do ser
humano: com as “ligações” adequadas, uma grafonola desempenharia funções
idênticas com mestria e honestidade superiores.
Aliás, a confirmação de
que a “lei da paridade” visa achincalhar especificamente as mulheres está na
circunstância de não abarcar critérios “identitários” cujo achincalho é
desaconselhado pela moral vigente. Só no que respeita ao “género”, a coisa
fica-se pelo tradicional binário e esquece-se deliberada e cautelosamente do
próspero sector “trans”. Ninguém propõe a reserva de pedacinhos do Parlamento
para os/as indivíduos/as agénero (1,5%, digo eu), bigénero (1,2%), intergénero
(0,8%, obviamente), pangénero (idem), nanogénero (aqui hesito), demigénero (já
me perdi) e travesti não-binária (chiça). A razão? Ninguém ousa
ofendê-los/las/lis/los/lus.
O receio de ofensa
também explica a ausência de propostas paritárias para os restantes factores de
identidade. Para não insultar os gays, o “sistema” não arrisca bulir na
representatividade segundo a orientação sexual. Para não caluniar as religiões,
não se sugerem proporções de budistas, muçulmanos, animistas ou presbiterianos.
Para não difamar as etnias, não se enfiam à força asiáticos, negros, ciganos,
ameríndios ou esquimós nas listas das “legislativas”. Ou uma determinada porção
de boavisteiros, ceguinhos, circuncisados, flautistas, vegetarianos ou o que
quer que seja que torna a pessoa aquilo que é. Não, senhor: o único
“grupo” empurrado à força para a política é o das mulheres, um acto
machista, ressentido e quase perverso.
Para cúmulo, os
adversários das “quotas” reagem a tamanha infâmia com a lengalenga de que a
maioria das mulheres é competente o bastante para entrar na política sem ajudas
ou favores estatísticos. O problema, meus caros, põe-se ao contrário: a
maioria das senhoras (e dos cavalheiros, calculo) é competente o bastante para
evitar a política e deixá-la ao cuidado dos que, independentemente do sexo, não
são. Antes e depois do reforço percentual, a “lei da paridade” rebaixa as
mulheres e exalta os políticos – adivinhem quem a aprovou.
Nota de rodapé:
A tese dominante
assegura que os vídeos dos interrogatórios ao “eng.” Sócrates foram divulgados
pelo advogado do próprio. Talvez a tese esteja correcta. Mas se a ideia é a de
que aquele repositório de prepotência, ridículo e até alguma maluquice redime o
sujeito aos olhos dos portugueses, aconselho o “eng.” Sócrates a trocar de
advogado. Ou o advogado a trocar de “eng.” Sócrates. Ou Portugal a trocar de
portugueses.
ALGUNS COMENTÁRIOS
Diogo Mendes
Que a "causa" das quotas para as mulheres chegarem mais
facilmente ao pote do unto é justíssima, é. É mesmo consensual. Só não entendo
é como reconhecem uma mulher. Antigamente, quando só havia dois sexos, antes do
avanço civilizacional das quotas, a malta topava as mulheres pelo aspecto e/ ou
pelo nome. Hoje, qualquer macho pode ostentar o bonito nome de Maria Albertina
no cartão do cidadão ou cidadona. Quanto ao aspecto, o portador dum belo par de
glândulas mamárias pode ser homem. Além disso, ligar a esses sinais, poderia
configurar uma intolerável eternização de estereótipos de género. Assim, como é
que recrutam as mulheres para a honrosa missão do cumprimento das quotas?!
Professor Pardal
É mais do que óbvio, para qualquer comum mortal, que esta história das
paridades e das quotas só diminui o mérito das mulheres. Não acredito que
nenhuma mulher, que queira ver o seu valor reconhecido, se sinta valorizada com
esta decisão. Pelo contrário. No fundo, aquilo que esta lei, supostamente
"anti-discriminação", faz, é discriminar. Para quem acompanhou os
efeitos da "affirmative action" nos EUA, o desfecho é evidente.
A nota de rodapé é sublime. Nem precisava de escrever a crónica porque
aquelas sete linhas conseguem resumir o triste regime em que vivemos de uma
maneira cristalina. A conclusão, essa, é brutal.
II TEXTO: LIVROS O cavaleiro de cristal
O livro traz-nos intacto o
ar dos muitos tempos que o Victor testemunhou, com alguns dos quais privou
intimamente, nalguns dos quais interveio directamente. Com desapiedada lucidez.
1. Raras vezes, na
minha vida fui confrontada com a honra de um convite que é antes do mais um
temível desafio. Não pelo livro, por causa de quem o escreveu. Passageira
solitária no desconcerto que de início me provocava o Victor, demorei a ver de
que lado é que a vida encaixava nele e ele nela. Com o passar dos anos entendi
aquela inteligência filha de um pessimismo activo que podia coexistir com a fé,
o mistério de uma fragilidade que vivia paredes-meias com uma desapiedada
lucidez. Victor Cunha Rego tinha as tormentas como certas. Admirei-o
muito, guardo-lhe um imenso respeito. Amava a verdade e praticava a coragem
mesmo quando estas o faziam sofrer. Captava o ainda não captado, traduzia-nos o
mundo que habitava e, claro, era um sedutor: tornei-me devota e… de quantas
pessoas seria eu capaz deste desabafo?
Teve muitas vidas, ofícios,
lugares. Vendeu lâmpadas e ferros de engomar de porta a porta, foi expulso de
alguns países, às vezes não tinha papéis, houve mandados de captura
internacionais. Conheceu meio mundo, fez muitas coisas, acreditou em poucas. Um
dia, quando me abria esses leques, lembrou-se de Stendhal: “Do ‘Lamiel’ ao ‘Le
Rouge et le Noir’, você tem lá todos os personagens que compõem as setes vidas
e os sete ofícios…”
Trocámos olhares, almas e
risos, discorremos mil vezes sobre esta coisa da política, demos mil voltas à
vida. Talvez porque soubesse que as ideias têm consequências e as enfrentava
nesse lugar incerto que precede a ilusão, confessava-me que “ia perdendo
sucessivas batalhas”: “Perdi muitas batalhas políticas, mas ganhei uma:
sempre que enfrentei o PC ganhei. Batalhas pequenas, mas ganhei sempre.” E um
dia ouvi-lhe isto: “Empenhei-me politicamente na bipolarização e na alternância
do poder. Esses princípios venceram. Não sei é se convenceram, ou ficarão muito
tempo…”. Venceu a batalha que interessa que é a da inocência e da boa fé. Com
cepticismo e muita compostura.
Na minha cabeça misturam-se
hoje imagens, bocados de vidas e de conversas, restaurantes, comboios, bares de
hotéis, campanhas políticas, jantares, resultados eleitorais. A casa dele e a
minha, o André e o Vicky quando ele queria falar-me deles.
Lembro-me do Victor em
reuniões, a cabeça inclinada sobre as mãos, o olhar distante e aparentemente
distraído, o humor oblíquo, e recordo como de repente se soerguia e emitia para
o ar o essencial do que deveria ser conversado, escrito ou feito.
Leu antes de ninguém em
desordenadas folhas de print ainda quentes do
meu computador os livros que fiz com Mário Soares, leu-os na penumbra da Travessa
do Pinheiro, 23, 3.°. Uma sala exígua e sempre fria onde havia, numa mesinha
baixa frente à janela, um minúsculo cinzeiro de vidro atulhado dos nossos
cigarros que ele se esquecia de despejar. Quando nos deixou, eu pedi o
cinzeiro, o André nunca mais o encontrou, o Victor levou-o de certeza.
Às vezes, Deus passava por
ali, havia uma alusão mais sentida, uma invocação breve. “Eu tenho muita fé,
ela é a única maneira que temos de fazer com que a nossa inteligência viva
acima dos seus próprios meios, que uma certa dignidade tenha algum espaço e
algum sentido.” Ia às igrejas a horas mortas, procurando um porto de abrigo que
lhe pacificasse a fé que praticava, lembrando-se de Job, outro anti-herói.
Deus, que nunca o perdeu de vista, queria-o por perto. E o Victor ficou.
2. O livro que hoje nos
ocupa é de um jornalista inclassificável. Abstenho me de o definir — não seria
capaz –, direi o que ele me disse, por uma vez consentindo-se um laivo de
auto-reconhecimento: “Sim, filha, fiz bom jornalismo. Comecei e acabei com ele,
era o meu fio de Ariane”.
Este livro é uma
surpresa e um privilégio. A surpresa é este Victor antigo, menos nosso
conhecido, escrevendo na lonjura do seu exílio além-Atlântico; o privilégio é o
acesso que estas páginas nos permitem ao seu pensamento, cunhado em meio século
de uma vida que também foi a nossa. “Na prática a teoria é outra” (Dom
Quixote-Leya) é um grande livro em português, escrito por um patriota
português.
Não o esperávamos, em
Portugal morre-se de vez e tem-se isso como um hábito ou uma fatalidade. Mas,
hoje, estes textos tão laboriosa e inteligentemente selecionados pelo André
Cunha Rego e pelo Vasco Rosa trazem-nos intacto o ar dos muitos tempos que
o Victor testemunhou, com alguns dos quais privou intimamente, nalguns dos quais
interveio directamente. Trazem-nos o perfume e a substância de um imenso
arco de tempo que vai dos anos 50 até ao final dos 90. Vocação e aventura
iniciadas no Diário Ilustrado em Portugal, em 1956, continuaram no seu exílio
em influentes jornais internacionais, até ao seu regresso a Portugal em Março
de 74 onde Victor voltou, com rigor e fulgor, a pensar em voz alta para nós.
É Jose Cutileiro que
aqui apresenta o jornalista, com essa invejável inteligência, a subtileza, o
refinamento e uma admirável justeza de tom só possíveis pela fecunda, cúmplice,
lealíssima amizade entre estes dois homens tão dotados.
Das prosas do exílio —
que têm como cicerone o interessantíssimo texto de Otávio Frias, filho,
director do jornal “A Folha de S. Paulo” — temos o Brasil, Europa, Américas.
Portugal, claro, Salazar, as oposições, a preocupação de Cunha Rego com África,
na senda de um Norton de Matos ou de um Henrique Galvão. Política e vida. Temos
tudo, diria eu, e ainda alguns retratos. Retive o de Henrique Galvão, breve
excerto: “O Galvão era um romântico, um desprendido, um intelectual… Atraía-me
por esse lado. Humberto Delgado nunca me atraiu. O que me ligava ao Galvão
era o problema africano, achávamos que ou se chegava a África antes dos
comunistas ou chegavam eles. Aliás, o problema era o mesmo aqui, correr contra
o tempo, chegar antes deles.”
Regressado ao país, Cunha
Rego dirige o DN entre 75/76, na quentura do PREC. Quase dez anos depois,
segue-se o vespertino A Tarde, aqui tão bem introduzida por Manuel Lucena, “o
maior amigo”; e depois o Semanário que VCR fundou e dirigiu oito anos, rodeado
por alguns dos nossos melhores. Uma boa história que José Miguel Júdice
também aqui nos conta num regalo de informação e memória.
Nas vésperas de o Semanário
ir para a banca, perguntei ao Victor o que seria o jornal. Eis a sua
extraordinária resposta: “Um jornal não substitui um governo e não deve
sequer criar um partido. Mas sendo esta República menos generosa e menos
patriótica que a de 1910/26, e não havendo moral e civismo que originem uma
Seara Nova, há que tentar, no modelo intermédio entre a revista doutrinária e o
jornalismo, acompanhar os últimos passos deste sistema, e em liberdade, dizer
que é preciso o que é preciso”.
3. Foi o que o
Victor fez, no jornalismo e na política num combate desigual: o Victor
destoava. Via mais longe, antes dos outros, e, pior, estava de boa fé e
cultivava a ética. Dividia, perturbava, confundia. Destoou logo no rescaldo dos
festejos do 1.° de Maio de 74, face ao que ele classificou de “ tremendo
equívoco” traduzido na alegria com que “a burguesia e a classe média” acolhera
e participara nos festejos.
“Mário, está tudo perdido”,
disse ele nessa própria noite a Soares, que o ouviu como se ele fosse de Marte.
Não era de Marte, estamos bem lembrados. Mas foi no PS que lutou, e ao lado de
Mário Soares, nessa tão sobressaltada relação, quente e fria, fascínio e
evidência. E sempre dizendo “que era preciso o que era preciso” aos ouvidos
ainda demasiado surdos de civis e militares. “Os comunistas chegaram onde eu
disse e isso deu-me força moral de tornar a avisar as pessoas…”.
Sempre esteve dentro da
política: no palco, com cargos oficiais e responsabilidades directas, ou
oficiando na penumbra, mas sempre, como aqui diz o Manuel Lucena, “florescendo
à beira de precipícios”. A sua ética era inversamente proporcional à ilusão — a
primeira era-lhe congénita, a segunda quase nunca existiu.
Gostou de Madrid, onde foi
embaixador nomeado por Mário Soares e Medeiros Ferreira, e terá apreciado o
reconhecimento público obtido: pela sua colaboracão no Tratado que viria a
substituir o Pacto Ibérico; e pelo prestígio — diplomático, político,
social e pessoal: “A Embaixada de Portugal juntava naquele tempo Adolfo Suarez
com González, ou Santiago Carrillo com Fraga Iribarne. E fazia-o com grande
à-vontade… E eu juntava todos os portugueses sem excepção que se haviam exilado
em Espanha, congregando-os numa casa mãe.” Depois, como o PS se portou mal
com ele, a honra pesou mais que a pena e a ética mais que o luto, saiu de
Madrid e despediu-se da família socialista.
Aproximou-se de Sá
Carneiro, de quem dizia que “se odiava ou admirava e ele admirava”. Tentara
até uma aliança de regime entre ele e Soares, em nome de um desejável pedido
comum de adesão à então CEE, organizando encontros sigilosos, saldados por
rotundos fracassos. Sá Carneiro, que lhe admirava o carácter, foi um dia a
Madrid perguntar-lhe se o PSD, em 1979, deveria concorrer em listas comuns com
o CDS. Cunha Rego disse-lhe “que era preciso fazê-las”, senão, mais valia sair
da política. Já primeiro-ministro, o líder da AD leva-o para o seu innercircle, que reunia às segundas em S. Bento e
oferece-lhe a “cruz” — palavra de Victor – da presidência da RTP. O então
primeiro-ministro convidara-o mais que uma vez para o seu governo, o convidado
recusara sempre. Face a proposta de outra natureza, ter-lhe-á sido porventura
difícil voltar a recusar.
4. Não se pode falar
do jornalismo de Cunha Rego sem falar de tudo isto — e muito resumo eu. Sem
evocar a política e a imprensa, as duas faces da sua moeda. Indesligáveis.
A ida para a A Tarde é a
vontade de reerguer das cinzas o espírito e a letra da AD; o Semanário não é
senão a trave mestra de sempre: mudar o regime, civilizando-o, estruturando-o
com a bipolarização e a alternância de poder, autonomia da sociedade civil,
iniciativa económica, o ar da europeização.
Perguntei-lhe uma vez se
andara com a direita às costas. Foi sério na resposta, lúcido na análise: “Eu
sempre me bati pela autonomia da sociedade civil. Ora, a direita estava mais
propensa a travar esse combate. A minha passagem pela política coincidente com
essa direita era fatalmente episódica e meramente instrumental para os dois
lados. Andámos às costas uns dos outros”. Depois, muito naturalmente,
voltou para Soares. Voltou para casa, num certo sentido.
Entre 1992 e 99, na última
página do DN, com escrita tão clara que chegava a ser luminosa e tão forte que
não nos deixava iguais, continuaria a dizer-nos “que era preciso o que era
preciso”.
5. Um itinerário
geográfico, cívico, intelectual, político, sentimental, só possível porque,
dizia-me ele, “fez tudo, sempre, de boa fé” e viveu essas vidas com uma imensa
“inocência”.
E o passado, perguntava-lhe
eu às vezes, tanta coisa, tanta vida? “Soube, mas já esqueci”, murmurava ele
apenas, deixando o olhar perder-se em brumas inconfessáveis. Dizia-me que
tivera “sorte, privilégios e recompensas”. Quando largou cargos e encargos,
queria escrever as memórias mas “ainda queria mais, se pudesse, escrever uma
peça de teatro” que me detalhou com surpreendente júbilo. Intitular-se-ia “O
Quarto de Cama” e ele estava entusiasmado com a ideia: “É uma peça passada nos
dias de hoje, com quatro personagens, dois casais da mesma geração,
representados pelos mesmos actores, que em dois quartos de cama, instalados num
palco giratório, repetem as mesmas cenas com resultados muito diferentes. Em
função da inocência ou da não inocência — e cá está o problema da inocência
outra vez… — dos personagens. Tenho muita vontade de a escrever, é pelo menos
aquilo em que penso com mais interesse”.
Não pôde escrever nem uma
coisa nem outra porque o dia e a hora vieram antes. Mas, isso, ele sabia que
não sabia.
6. Não sei se o
Victor queria que o percebessem, por isso o mais natural é que para cada um
haja o seu Victor. O meu é este que hoje aqui deixo: um solitário cavaleiro
de cristal, desencantado e patriota.
Texto
lido por Maria João Avillez no lançamento do livro “Na prática a
teoria é outra” (Dom Quixote-Leya), que reúne as crónicas de Victor Cunha
Rego.
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