Soma e segue, na chafurdice, que isso fazemos bem,
mas não sei por quem optar. António Barreto faz um texto nobre,
impecável nos dizeres e nos valores que segue, atacando uma sociedade mesquinha,
ruidosa e mexeriqueira, nas abordagens que faz à ilegalidade, que os media
acentuam, defensores da virtude em algazarra. Na questão dos deputados e os
seus bilhetes, creio que tem razão, não me parece crime, a mim também não se me
dava que me oferecessem coisas para os meus prazeres intelectuais, atida ao
aforismo “no aproveitar é que está o ganho”. O povo é grosseiro no ataque a
essas minúcias que o jornalismo videirinho proporciona, ele, povo, que até conhece
da poda, dando da sua courela, por afecto ou humilde interesse, generosos que somos, e bons na humildade.
Mas o radicalismo virtuoso e repugnado de António
Barreto na questão “Sócrates”, condenando os processos usados na nossa “Justiça”
de que os media logo fazem grosseiro alarde, embora também me repugnem – como esses
das escutas ou o das violências policiais verbais exercidas sobre os
presumíveis criminosos – não sei se é de seguir, num caso de tão evidente
certeza, embora impecavelmente e prolongadamente obscuro, no seu carisma de
burla monstruosa, que João Miguel Tavares, no seu artigo de desforço contra
outro defensor de Sócrates – Ferreira Fernandes – denuncia com exemplos
sólidos.
Não, não sei por quem optar, amante da delicadeza, sobretudo se traduzida em prosa impecável, mas os sábios, no
laboratório, usam todos os meios para se atingir a verdade, e até usam cobaias,
coitadinhas, vítimas inocentes do nosso bem-estar.
Não, decididamente, neste caso tão carismaticamente
ignóbil, dou mais razão a João Miguel Tavares, que, sem punhos de renda,
vai em frente, na busca da verdade. Por que, de resto, todos ansiamos, justiceiros e virtuosos que todos somos.
Ânsia inútil, é bem certo. O nosso Sócrates é que
inflige a cicuta, não a toma. E afinal, a nobreza de sentimentos em punhos de
renda, de facto enjoa. Para mais, permite o alastrar dos casos, tem-se visto.
Afinal, sempre opto.
I - Dois casos
ANTÓNIO BARRETO
DN, 22/4/2018
Parece que nada liga um caso ao outro, o interrogatório de José
Sócrates e os pagamentos em duplicado de viagens aos deputados insulares.
Mas há uma linha indelével: a da facilidade com que se abusa da debilidade
institucional.
O caso dos bilhetes dos deputados seria risível, não fosse o tom
agressivo utilizado pelos que se aproveitaram. Em vez de se defenderem e de
rectificarem, passaram ao ataque com a habitual grandiloquência: é legal,
legítimo, eticamente irrepreensível e "tenho a consciência
tranquila"! O
problema é mesmo esse, terem a consciência tranquila!
Podiam ao menos dizer que iriam ver o que se passava. Que talvez
houvesse um aspecto das leis a clarificar. Que a solução adoptada tinha
defeitos e seria corrigida. Qualquer coisa... Qualquer coisa que não fosse
defender a matilha e garantir que tudo era legal e eticamente a toda a prova...
e que só os inimigos da democracia se lembrariam de pôr em causa políticos tão
nobres e deputados tão impolutos...
Legal? Não se sabe bem. Legítimo? Não era. Moral? Nem pensar. Tudo grita que ensurdece, tudo brilha que cega: o sistema era falível, o pagamento era duplo,
o reembolso não era devido, quase todos se calaram com boa ou má-fé... E não percebem o mal que fizeram. E não
entenderam que a democracia estava a perder. E não lhes ocorre pensar um segundo que talvez
não sejam imaculados e que a ética republicana, assim interpretada, é a da
Feira da Ladra! E as
instituições, fracas e capturadas pelos partidos, não parecem capazes de reagir
e de rapidamente sanar a situação, a fim de evitar sequelas.
O segundo caso, o da divulgação em canais de televisão do interrogatório
de José Sócrates, brada aos céus. Outros, incluindo os banqueiros arguidos, já
por ali tinham passado. E também aqui não se viu, até agora, uma reacção
institucional que traga decência e civilidade à justiça.
Mesmo em democracia, um interrogatório feito pela polícia é sempre um
momento de debilidade pessoal. Seja ou não bandido ou aldrabão, tenha ou não um
currículo violento, possua ou não músculos ou capital, partilhe ou não
ferocidade com animais selvagens, um arguido ou um suspeito está sempre,
durante o interrogatório, em situação de inferioridade, facilmente amedrontado,
quase sempre em fragilidade psicológica. Mesmo quando reage com fúria
destemperada, como foi o caso, o arguido está assustado e luta pela vida. Em pleno interrogatório, sobretudo se tem algo
a esconder, se há culpa, se procura defender-se, qualquer pessoa, mesmo valente
ou violenta, merece, porque é uma pessoa humana, um pouco de respeito. Uma justiça decente tem em consideração a
humanidade das pessoas e dos processos. O que estão a fazer com José Sócrates é
imperdoável. Como foi com os banqueiros e outros. A falta de respeito pelo
arguido não é apenas isso: é sobretudo falta de respeito pelos cidadãos, por
nós todos.
Não é o interrogatório que está em causa. A gravidade reside na sua
divulgação, na exploração dos sentimentos dos mirones sem mais que fazer do que
espiolhar a vida e o sofrimento dos outros. Um ou dois canais de televisão
divulgaram longos pedaços daquele nauseabundo processo. Ninguém lhes foi às
mãos, nem a justiça, nem as instituições que devem zelar pela qualidade do
espaço público.
Não se trata de liberdade de expressão nem de
justiça democrática.
Nem uma nem outra devem recorrer à indecência. A justiça deve ser para
todos, incluindo acusados, arguidos, culpados e prevaricadores. O direito é
para todos, incluindo ladrões e criminosos. Os direitos fundamentais são para
todos, incluindo os transgressores. Como a democracia é para todos, incluindo
os não democratas.
Três instituições essenciais, o Parlamento, a Justiça e a informação,
foram postas em causa. Os responsáveis pela divulgação desta grosseria não se
dão conta do mal que fazem. Não se importam, nem percebem os danos que causam
às liberdades e ao seu país.
As minhas fotografias
ANTÓNIO BARRETO
Estação Oriente, Lisboa. Bela estação esta desenhada pelo arquitecto espanhol Santiago
Calatrava. Inaugurada em 1998, tem o nome mais fino de Gare do Oriente.
Vista de longe, impressiona. No interior, há planos de elevada fotogenia e
podem fazer-se imagens graficamente muito interessantes. É esteticamente uma
bela obra. Mas não há bela sem... Os serviços prestados deixam a
desejar. O conceito centro comercial é pindérico. O circuito dos passageiros é
difícil. Quando chove ou faz vento, a Gare é desconfortável. É este um ponto
alto da renovação do caminho-de-ferro português que se arrasta. Apesar do
aumento de passageiros em algumas linhas, a renovação tarda. As linhas estão
velhas e tremem. As carruagens estão nas últimas e trepidam. As casas de
banho dos Alfa são um monumento definitivo à imundície e
ao design absurdo que faz objectos impraticáveis. É de qualquer
modo garantido: melhor do que o comboio não há.
II
- OPINIÃO
Obrigado
pelas citações, F.F., mas eu tenho melhores
A alta hierarquia da Global Media está transformada no Clube dos
Jornalistas Que Um Dia Amaram José Sócrates.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 21 de
Abril de 2018
Quero agradecer a Ferreira Fernandes (F.F.) por ter tido a amabilidade
de me dedicar o primeiro editorial como director do Diário de Notícias. Eu
não merecia tanto. Infelizmente, talvez por estar destreinado, F.F. não diz uma
só palavra sobre o argumento central do meu texto – o facto de a alta
hierarquia da Global Media estar transformada no Clube dos Jornalistas Que Um
Dia Amaram José Sócrates – e dedica-se apenas a tentar desmontar uma das
frases que escrevi, a saber: “Ferreira Fernandes continuou a defender
Sócrates já depois da prisão – até que se calou, e não mais se lhe ouviu um pio
sobre o tema.”
A sua desmontagem tem graça porque confirma que Ferreira Fernandes
continuou a defender Sócrates já depois da prisão – cita quatro artigos –, até
que se calou, e não mais se lhe ouviu um pio sobre o tema – as citações
terminam em Dezembro de 2015, ou seja, há dois anos e meio. Os fãs de F.F.
dirão: “Está ali provadíssimo que F.F. criticou Sócrates!” Criticou
mesmo? Sim, se considerarmos como crítica a aplicação da batida fórmula Sócrates-esteve-mal-mas-a-Justiça-esteve-péssima.
Ferreira Fernandes pode ter muitos defeitos, mas não é parvo. “Defender José
Sócrates” a partir de Novembro de 2014 nunca consistiu em clamar pela sua
inocência, até porque no momento em que o próprio admitiu receber dinheiro de
Carlos Santos Silva a sua posição passou a ser politicamente insustentável. Defendê-lo
consistiu sempre, numa primeira fase, em misturar na Bimby as críticas à
investigação com as críticas à acção de Sócrates, como se a gravidade das fugas
ao segredo de justiça fosse comparável com as suspeitas em causa. E,
numa segunda fase, após rebentar a bomba BES e sair a acusação, em
resguardar-se num piedoso silêncio.
Este silêncio do DN era o ponto essencial do texto. Ferreira Fernandes escreveu que Sócrates é
o meu “fundo de comércio”. Contudo, para além de desconfiar que dentro da
Global Media não terei sido o mais remunerado por esse fundo, o meu problema em
2018 não é José Sócrates. O meu problema é o país e as pessoas que
promoveram a sua ascensão e/ou que colaboraram activamente para que ele se
mantivesse no poder. Entre essas pessoas está Ferreira Fernandes. Só uma
citação para troca: em Setembro de 2009, 15 dias antes da mais triste eleição
da nossa democracia, ele escreveu: “O jornal i fez o levantamento de
algumas das exportações portuguesas durante o Governo de José Sócrates. Fez o
levantamento, sim: aqueles negócios levantaram voo. Com a Venezuela (em
quatro anos, quintuplicaram), Angola (triplicaram), Argélia (quadruplicaram),
Rússia (triplicaram), Líbia e China (em ambas, quase duplicaram) e Jordânia
(quase triplicaram)... (…) Eis, pois, um balanço extraordinário – mas que
merecia discussão. (…) Gostaria que na campanha se discutisse política. E não
hipóteses de primos, hipóteses de asfixias e tricas sobre carros oficiais.”
Este foi o seu tom desde 2005. Claro que toda a gente se engana. Eu
considero necessário ser muito vesgo para estar enganado sobre Sócrates em
2009. Mas é possível. Só que quando um colunista se engana não fica caladinho
ao ler a acusação a Sócrates. Diz coisas. Avalia velhos textos. Pede desculpa
por defesas passadas. E não se refugia na presunção de inocência após ouvir
as conversas com Santos Silva. Até hoje, a única colunista que admitiu
que se enganou sobre Sócrates – justiça lhe seja feita – foi Clara Ferreira
Alves. Ela merece o meu respeito. Todos os outros, não.
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