domingo, 22 de abril de 2018

Antagonismos



Soma e segue, na chafurdice, que isso fazemos bem, mas não sei por quem optar. António Barreto faz um texto nobre, impecável nos dizeres e nos valores que segue, atacando uma sociedade mesquinha, ruidosa e mexeriqueira, nas abordagens que faz à ilegalidade, que os media acentuam, defensores da virtude em algazarra. Na questão dos deputados e os seus bilhetes, creio que tem razão, não me parece crime, a mim também não se me dava que me oferecessem coisas para os meus prazeres intelectuais, atida ao aforismo “no aproveitar é que está o ganho”. O povo é grosseiro no ataque a essas minúcias que o jornalismo videirinho proporciona, ele, povo, que até conhece da poda, dando da sua courela, por afecto ou humilde interesse, generosos que somos, e bons na humildade.
Mas o radicalismo virtuoso e repugnado de António Barreto na questão “Sócrates”, condenando os processos usados na nossa “Justiça” de que os media logo fazem grosseiro alarde, embora também me repugnem – como esses das escutas ou o das violências policiais verbais exercidas sobre os presumíveis criminosos – não sei se é de seguir, num caso de tão evidente certeza, embora impecavelmente e prolongadamente obscuro, no seu carisma de burla monstruosa, que João Miguel Tavares, no seu artigo de desforço contra outro defensor de Sócrates – Ferreira Fernandes – denuncia com exemplos sólidos.
Não, não sei por quem optar, amante da delicadeza, sobretudo se traduzida em prosa impecável, mas os sábios, no laboratório, usam todos os meios para se atingir a verdade, e até usam cobaias, coitadinhas, vítimas inocentes do nosso bem-estar.
Não, decididamente, neste caso tão carismaticamente ignóbil, dou mais razão a João Miguel Tavares, que, sem punhos de renda, vai em frente, na busca da verdade. Por que, de resto, todos ansiamos, justiceiros e virtuosos que todos somos.
Ânsia inútil, é bem certo. O nosso Sócrates é que inflige a cicuta, não a toma. E afinal, a nobreza de sentimentos em punhos de renda, de facto enjoa. Para mais, permite o alastrar dos casos, tem-se visto.
Afinal, sempre opto.

I - Dois casos
ANTÓNIO BARRETO
DN, 22/4/2018
Parece que nada liga um caso ao outro, o interrogatório de José Sócrates e os pagamentos em duplicado de viagens aos deputados insulares. Mas há uma linha indelével: a da facilidade com que se abusa da debilidade institucional.
O caso dos bilhetes dos deputados seria risível, não fosse o tom agressivo utilizado pelos que se aproveitaram. Em vez de se defenderem e de rectificarem, passaram ao ataque com a habitual grandiloquência: é legal, legítimo, eticamente irrepreensível e "tenho a consciência tranquila"! O problema é mesmo esse, terem a consciência tranquila!
Podiam ao menos dizer que iriam ver o que se passava. Que talvez houvesse um aspecto das leis a clarificar. Que a solução adoptada tinha defeitos e seria corrigida. Qualquer coisa... Qualquer coisa que não fosse defender a matilha e garantir que tudo era legal e eticamente a toda a prova... e que só os inimigos da democracia se lembrariam de pôr em causa políticos tão nobres e deputados tão impolutos...
Legal? Não se sabe bem. Legítimo? Não era. Moral? Nem pensar. Tudo grita que ensurdece, tudo brilha que cega: o sistema era falível, o pagamento era duplo, o reembolso não era devido, quase todos se calaram com boa ou má-fé... E não percebem o mal que fizeram. E não entenderam que a democracia estava a perder. E não lhes ocorre pensar um segundo que talvez não sejam imaculados e que a ética republicana, assim interpretada, é a da Feira da Ladra! E as instituições, fracas e capturadas pelos partidos, não parecem capazes de reagir e de rapidamente sanar a situação, a fim de evitar sequelas.
O segundo caso, o da divulgação em canais de televisão do interrogatório de José Sócrates, brada aos céus. Outros, incluindo os banqueiros arguidos, já por ali tinham passado. E também aqui não se viu, até agora, uma reacção institucional que traga decência e civilidade à justiça.
Mesmo em democracia, um interrogatório feito pela polícia é sempre um momento de debilidade pessoal. Seja ou não bandido ou aldrabão, tenha ou não um currículo violento, possua ou não músculos ou capital, partilhe ou não ferocidade com animais selvagens, um arguido ou um suspeito está sempre, durante o interrogatório, em situação de inferioridade, facilmente amedrontado, quase sempre em fragilidade psicológica. Mesmo quando reage com fúria destemperada, como foi o caso, o arguido está assustado e luta pela vida. Em pleno interrogatório, sobretudo se tem algo a esconder, se há culpa, se procura defender-se, qualquer pessoa, mesmo valente ou violenta, merece, porque é uma pessoa humana, um pouco de respeito. Uma justiça decente tem em consideração a humanidade das pessoas e dos processos. O que estão a fazer com José Sócrates é imperdoável. Como foi com os banqueiros e outros. A falta de respeito pelo arguido não é apenas isso: é sobretudo falta de respeito pelos cidadãos, por nós todos.
Não é o interrogatório que está em causa. A gravidade reside na sua divulgação, na exploração dos sentimentos dos mirones sem mais que fazer do que espiolhar a vida e o sofrimento dos outros. Um ou dois canais de televisão divulgaram longos pedaços daquele nauseabundo processo. Ninguém lhes foi às mãos, nem a justiça, nem as instituições que devem zelar pela qualidade do espaço público.
Não se trata de liberdade de expressão nem de justiça democrática. Nem uma nem outra devem recorrer à indecência. A justiça deve ser para todos, incluindo acusados, arguidos, culpados e prevaricadores. O direito é para todos, incluindo ladrões e criminosos. Os direitos fundamentais são para todos, incluindo os transgressores. Como a democracia é para todos, incluindo os não democratas.
Três instituições essenciais, o Parlamento, a Justiça e a informação, foram postas em causa. Os responsáveis pela divulgação desta grosseria não se dão conta do mal que fazem. Não se importam, nem percebem os danos que causam às liberdades e ao seu país.

As minhas fotografias
 ANTÓNIO BARRETO
Estação Oriente, Lisboa. Bela estação esta desenhada pelo arquitecto espanhol Santiago Calatrava. Inaugurada em 1998, tem o nome mais fino de Gare do Oriente. Vista de longe, impressiona. No interior, há planos de elevada fotogenia e podem fazer-se imagens graficamente muito interessantes. É esteticamente uma bela obra. Mas não há bela sem... Os serviços prestados deixam a desejar. O conceito centro comercial é pindérico. O circuito dos passageiros é difícil. Quando chove ou faz vento, a Gare é desconfortável. É este um ponto alto da renovação do caminho-de-ferro português que se arrasta. Apesar do aumento de passageiros em algumas linhas, a renovação tarda. As linhas estão velhas e tremem. As carruagens estão nas últimas e trepidam. As casas de banho dos Alfa são um monumento definitivo à imundície e ao design absurdo que faz objectos impraticáveis. É de qualquer modo garantido: melhor do que o comboio não há.


II - OPINIÃO
Obrigado pelas citações, F.F., mas eu tenho melhores
A alta hierarquia da Global Media está transformada no Clube dos Jornalistas Que Um Dia Amaram José Sócrates.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 21 de Abril de 2018
Quero agradecer a Ferreira Fernandes (F.F.) por ter tido a amabilidade de me dedicar o primeiro editorial como director do Diário de Notícias. Eu não merecia tanto. Infelizmente, talvez por estar destreinado, F.F. não diz uma só palavra sobre o argumento central do meu texto – o facto de a alta hierarquia da Global Media estar transformada no Clube dos Jornalistas Que Um Dia Amaram José Sócrates – e dedica-se apenas a tentar desmontar uma das frases que escrevi, a saber: “Ferreira Fernandes continuou a defender Sócrates já depois da prisão – até que se calou, e não mais se lhe ouviu um pio sobre o tema.”
A sua desmontagem tem graça porque confirma que Ferreira Fernandes continuou a defender Sócrates já depois da prisão – cita quatro artigos –, até que se calou, e não mais se lhe ouviu um pio sobre o tema – as citações terminam em Dezembro de 2015, ou seja, há dois anos e meio. Os fãs de F.F. dirão: “Está ali provadíssimo que F.F. criticou Sócrates!” Criticou mesmo? Sim, se considerarmos como crítica a aplicação da batida fórmula Sócrates-esteve-mal-mas-a-Justiça-esteve-péssima. Ferreira Fernandes pode ter muitos defeitos, mas não é parvo. “Defender José Sócrates” a partir de Novembro de 2014 nunca consistiu em clamar pela sua inocência, até porque no momento em que o próprio admitiu receber dinheiro de Carlos Santos Silva a sua posição passou a ser politicamente insustentável. Defendê-lo consistiu sempre, numa primeira fase, em misturar na Bimby as críticas à investigação com as críticas à acção de Sócrates, como se a gravidade das fugas ao segredo de justiça fosse comparável com as suspeitas em causa. E, numa segunda fase, após rebentar a bomba BES e sair a acusação, em resguardar-se num piedoso silêncio.
Este silêncio do DN era o ponto essencial do texto. Ferreira Fernandes escreveu que Sócrates é o meu “fundo de comércio”. Contudo, para além de desconfiar que dentro da Global Media não terei sido o mais remunerado por esse fundo, o meu problema em 2018 não é José Sócrates. O meu problema é o país e as pessoas que promoveram a sua ascensão e/ou que colaboraram activamente para que ele se mantivesse no poder. Entre essas pessoas está Ferreira Fernandes. Só uma citação para troca: em Setembro de 2009, 15 dias antes da mais triste eleição da nossa democracia, ele escreveu: “O jornal i fez o levantamento de algumas das exportações portuguesas durante o Governo de José Sócrates. Fez o levantamento, sim: aqueles negócios levantaram voo. Com a Venezuela (em quatro anos, quintuplicaram), Angola (triplicaram), Argélia (quadruplicaram), Rússia (triplicaram), Líbia e China (em ambas, quase duplicaram) e Jordânia (quase triplicaram)... (…) Eis, pois, um balanço extraordinário – mas que merecia discussão. (…) Gostaria que na campanha se discutisse política. E não hipóteses de primos, hipóteses de asfixias e tricas sobre carros oficiais.”
Este foi o seu tom desde 2005. Claro que toda a gente se engana. Eu considero necessário ser muito vesgo para estar enganado sobre Sócrates em 2009. Mas é possível. Só que quando um colunista se engana não fica caladinho ao ler a acusação a Sócrates. Diz coisas. Avalia velhos textos. Pede desculpa por defesas passadas. E não se refugia na presunção de inocência após ouvir as conversas com Santos Silva. Até hoje, a única colunista que admitiu que se enganou sobre Sócrates – justiça lhe seja feita – foi Clara Ferreira Alves. Ela merece o meu respeito. Todos os outros, não.


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