Não, não me tirem o Sumol de
ananás, com o seu travo aos sóis do colonialismo. São José Almeida foi das
que vibrou com os três DDD, em tempos juvenis, mas, mais adulta, indispõe-se contra o estado actual das coisas
aqui, hoje, apesar dos objectivos de mudança conseguidos, segundo ela, resultado que
talvez atribua aos mesmos heróis dos cravos. É claro que, se não fosse a U. E.,
já estaríamos completamente arrumados, em desprezada prateleira, só talvez
menos poluídos, por não podermos usufruir dos sumóis favorecedores do indigno
plástico.
Mas os dois comentadores que
aponho ao texto de SJA lhe dirão algumas graças, desnecessárias, é certo. O 25
de Abril, que está a chegar, fortalecerá sempre o espírito entusiasta daquela e
de todos os que abençoam o movimento libertador, mesmo desiludidos por conta da
poluição – na natureza, na moral… Mas não arredam pé, como a gaivota da canção,
talvez já morta, engasgada com os plásticos da nossa fartura de empréstimo.
OPINIÃO
Um
país com cadáveres às costas
Há 44 anos,
havia vidas individuais que poderiam ser livremente vividas. Havia um país a
construir. Havia uma comunidade a dignificar.
SÃO JOSÈ ALMEIDA
PÙBLICO, 21 de Abril de 2018
Na quarta-feira, o 25 de Abril faz 44 anos. Chamo-lhe assim, apenas assim, porque dizer a
data chega, contém, para mim, tudo o que significou de libertação e sonho e as
múltiplas revoluções nascidas daquele “dia inicial inteiro e limpo”,
como lhe chamou Sophia. Em 1974, eu era uma adolescente e tive o privilégio
de me tornar adulta num ambiente em que o céu não era limite, em que a
liberdade era sentida como a conquista essencial e em que era permitido
acreditar que em Portugal tudo iria ser possível e justo. Havia vidas
individuais que poderiam ser livremente vividas. Havia um país a construir.
Havia uma comunidade a dignificar. E, repito, o céu não era limite.
Passados 44 anos, há poucos dias li o último romance de Miguel Real,
romance que ficará na minha lista de obras obrigatórias. Ler Cadáveres
às Costas, em vésperas do 25 de Abril, é ser confrontada com um dos mais
lúcidos (e satíricos) retratos do Portugal de hoje. Está lá tudo. A
esperança da liberdade como supremo direito humano. A esperança de um país com
futuro. A esperança de um futuro colectivo, enquanto comunidade de pessoas que
se sentem como tal.
Mas também o país que ao fim de 44 anos continua a tentar controlar o
défice e a procurar diminuir uma dívida pública astronómica. O país em que a
condução política ficou aquém de cumprir o seu papel. Um país que tem um
ex-primeiro-ministro e representantes das elites empresariais indiciados ou
acusados por fraude fiscal, branqueamento de capitais, corrupção e tráfico de
influências, numa novela que daqui a dez anos provavelmente ainda durará. Basta
lembrar que no processo Face Oculta as condenações estão há mais de
três anos à espera de transitar em julgado.
É certo que os três DD de Abril – descolonização, democratização desenvolvimento – foram
cumpridos. Não há comparação remota que possa ser feita entre o país em que
nasci, o país em que cresci e o país em que vivo. Contudo, olhar para o país
hoje, com a sua multiplicidade de realidades que coexistem, é, em grande parte,
ler Cadáveres às Costas. Lá está desenhado com perfeição e pormenor o
retrato cru e triste de Portugal, que pode resumir-se na ideia da Cruz de Pedra
no alto do Parque Eduardo VII, em Lisboa, como se dela estivéssemos todos
suspensos através dos vários tipos sociais representados no romance.
A especulação imobiliária e todas as especulações que pululam. Os
políticos arrivistas e carreiristas, manipuladores das estruturas do Estado,
que tudo e todos usam para a satisfação dos seus interesses pessoais e a
ascensão ao poder. As dificuldades, os obstáculos e a falta de meios com que se
confronta a Justiça, quando procura investigar negócios ilícitos, tráfico de
influências ou corrupção. A sociedade sem dimensão de exigência ética e
corrupta que se instalou, onde negócios escusos e ilegais são praticados pelas
elites sociais e até as novas relações de interesses com Angola, a versão
moderna de um tipo de colonialismo.
A herança da ditadura e da Guerra Colonial ainda dormente numa memória
colectiva que não se assume. A elite social exibicionista e arrogante que
despreza a mobilidade social possibilitada pela democratização. O jornalismo
deslumbrado e cego pela presunção balofa de protagonismo. Os restos de um
Portugal profundo e arcaico e o atavismo de uma grandeza sempre a vir e sempre
adiada.
A desilusão dos que acreditaram em revoluções que se desfizeram na
areia. O peso e atitude de parte de uma hierarquia eclesiástica católica. A
religiosidade beata, a religiosidade quase animista e a crendice. Até os bonés
dos clubes de futebol, as bifanas, as febras, os “sumóis” e as “minis” lá
estão. É um retrato cru e triste, mas magnífico do país que construímos,
negando muitas das expectativas de há quatro décadas e hoje.
COMENTÁRIOS:
Évora : ora aí está: o
diagnóstico do Real é o real, e até nisso a boa esquerda concorda de alma e
coração com a visão do cadáver que norteou Pedro Passos Coelho quando tomou
conta da choldra. Era a mesma análise que a troika e a moody fizeram. É a mesma
análise que a realidade obriga a fazer. Com uma diferença: os escritores
de esquerda brincam aos cadáveres com as letras, os primeiros ministros
montam-nos e tentam cavalgar a morte até a desatolarem. Costa, se as suas
contas não forem a enésima mistificação xuxalista, vai pelo mesmo caminho. De
maneira que Passos e os passistas não têm 'medo de existir': medo de eles não o
terem, têm-no os outros. Mas sempre foi assim: o totalitarismo tendencial de
esqª só reconhece a verdade se for ela a enunciá-la. Tudo o que escreve já a
dirª o diz há muito.
Sim. E a pessoa para
quem todos temos uma dívida, segundo a senhora jornalista, é um dos grandes
responsáveis dos anos do lixo e de continuarmos em boa parte a sermos o país da
corrupção, das bifanas e dos torresmos.
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