segunda-feira, 9 de abril de 2018

Fantasia, falsidade



Este mundo é cheio de aldrabices e uma grande acima de todas foi a do convite de Agamémnon à sua filha Ifigénia para se ir casar com Aquiles, em Aulide, quando o que pretendeu foi sacrificá-la a Artemis, para obter ventos favoráveis para a sua armada poder partir para Troia, como estava combinado com Menelau, o marido enxovalhado da bela Helena. Isto contaram uns trágicos gregos, assunto retomado por Racine e até, ao que parece, posto em ópera, mas é demasiado escabroso e não foi demonstrado que Ifigénia morreu. Mas foi o que me lembrou, a propósito dos textos que seguem, das aldrabices de Centeno e Companhia sobre o real estado das finanças que no dizer deles é bom e João Miguel Tavares prova que é mau e sobretudo enganador para papalvos (Vide texto infra, “A carga, o esforço e um artista chamado Centeno”), e, mais infra ainda, o texto de José Pacheco Pereira, “A vitória do dr. Ivan Petrovich Pavlov”, extraordinário de argumentação acusatória, a propósito da baba que escorre da participação humana nas redes informáticas sociais, de inanidade e lorpice, a maior parte das vezes, permitidas por esse meio social ilusório, como reflexo condicionado, para a satisfação vaidosa na discussão do sexo dos anjos, ou na exibição de má educação gratuita nos seus comentários, levados no engodo de uma notoriedade sem tento.

OPINIÃO
A carga, o esforço e um artista chamado Centeno
No actual estado da política nacional vale tudo, excepto isto: admitir que o fim da austeridade é uma das maiores aldrabices da política portuguesa.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO,5 de Abril de 2018
Mário Centeno podia ser apenas bom com os números. Mas não: ele também é bestial com as palavras. Quando os números batem certo, Centeno agarra-se aos números. Quando os números deixam de bater certo, Centeno modifica as palavras. De uma forma ou de outra, ganha sempre, alternando entre o amor pela Matemática e a paixão pelo Português. Vale a pena analisar os conceitos de “carga fiscal” e de “esforço fiscal” que há dois dias animaram o debate entre Mário Centeno e António Leitão Amaro no Parlamento – é uma daquelas bonitas ocasiões que nos permitem apreciar o nível de criatividade a que o ministro das Finanças consegue recorrer para provar que tem razão, mesmo quando não tem razão alguma.
O conceito de carga fiscal está definido nos manuais: a carga fiscal é o rácio entre o total de impostos arrecadados pelo Estado num determinado ano mais as contribuições obrigatórias dos seus cidadãos (Segurança Social) e o produto interno bruto que o país consegue gerar nesse período. Ela serve para medir o esforço que a sociedade faz para pagar, em cada ano, os serviços que lhe são prestados pelo Estado. Problema grave do actual Governo: como compatibilizar a conversa do “virar da página de austeridade” com aquilo que têm sido os aumentos anuais da carga fiscal. Como é possível dizer que o Governo de António Costa e Mário Centeno chegou heroicamente, em cima de um corcel branco, para nos salvar das malvadas “políticas de empobrecimento” de Passos Coelho, quando o Estado nunca sacou tanto dinheiro aos portugueses em percentagem do PIB como agora?
Os números do INE não deixam dúvidas: 67 mil milhões de euros arrecadados em impostos e contribuições em 2017, o que equivale a 34,7% da riqueza produzida no país. É o valor mais alto desde, pelo menos, 1995 (ano em que o INE começou a compilar estes dados sobre as contas públicas), superando o recorde de 34,4% registado em 2015. Este número deveria ser extremamente embaraçoso para o Governo e para os seus parceiros de esquerda. “Deveria”, claro está, se o mago Centeno não entrasse imediatamente em acção, argumentando que essa coisa da carga fiscal – que ainda em 2016 ele considerava um conceito importantíssimo, ao ponto de ter dado origem a confusões com o seu colega socialista Paulo Trigo Pereira a propósito das estimativas do Orçamento – não é, afinal, o conceito mais adequado para analisar esta questão.
O que interessa agora – garante-nos Mário Centeno – é o “esforço fiscal”. E esse, como não poderia deixar de ser, diminuiu muitíssimo, porque foi através da melhoria dos rendimentos dos portugueses que se conseguiu mais emprego, mais consumo e mais impostos. O pobre deputado Leitão Amaro, que se limitou a usar os números do INE, foi acusado de “iliteracia financeira e numérica”, porque o Ronaldo do Eurogrupo também é especialista em pontapés de bicicleta: o que importa é meter a bola dentro da baliza.
O que é exactamente o “esforço fiscal”, afinal? Não interessa, desde que diminua. Se o INE não contabiliza o “esforço fiscal”, contabilizasse. E se um dia, por azar, o novo “esforço fiscal” também calhar subir, o ministro das Finanças criará de imediato o conceito de “entusiasmo fiscal”, de “vigor fiscal” ou de “ímpeto fiscal”, qualquer coisa que acabe em “fiscal” e que diminua face ao ano anterior. No actual estado da política nacional vale tudo, como se vê. Excepto isto: admitir que o fim da austeridade é uma das maiores aldrabices da política portuguesa.

Um comentário “comme il faut”:


  05.04.2018
Pois, meu caro. Mas o problema não é do Centeno. É da iliteracia financeira e da falta de conhecimentos matemáticos e de "agricultura" dos nossos jornalistas. Isto porque comiam tudo que o governo lhes dava em termos de reposição de rendimentos, esquecendo-se do que era retirado: coeficiente familiar; impostos indirectos; cativações e o que o governo disse que tinha dado, mas que não deu, de facto. A "agricultura" porque engolem que a economia começa a crescer do dia para a noite: mudou o governo e a economia começa a dar frutos. Semeiam-se uns tostões (5€ aos reformados com menos de 600€) pela manhã e à tarde já temos os melões prontos a comer. Acham que o continuado aumento das exportações e do turismo têm alguma coisa a ver com as "reversões"? Se assim fosse era fácil governar...

OPINIÃO
A vitória do dr. Ivan Petrovich Pavlov
As redes sociais são perversas pelo seu próprio funcionamento e pelos seus mecanismos e não é correcto dizer-se que o problema com as redes tem que ver com o que se faz delas e não com elas mesmas.
JOSÉ PACHECO PEREIRA
PÚBLICO, 7 de Abril de 2018
O dr. Ivan Petrovich Pavlov devia ter vivido nos tempos das chamadas “redes sociais” e observaria com proveito as formas de activismo simplista e grosseiro que o radicalismo “social” e político provoca nos nossos dias. Quem queira manter-se saudável e não ter de suportar a salivação condicionada dos equivalentes aos valentes (e enganados) cães de Pavlov não pode de facto andar por esses locais mal frequentados.
O nosso activismo político mais extremo deslocou-se para as redes sociais, e não é por acaso. Aí encontra uma linguagem gutural e primitiva, uma simplificação grotesca e uma mão-cheia de “seguidores” que amplificam todo o estilo de ataques, insultos e afirmações de má-fé que acabam por ter uma circulação em que o testemunho directo é substituído pelos comentários dos comentários dos comentários. Os livros não são lidos, os programas não são vistos, as imagens não são conhecidas, os factos não são factos, mas uma corte de seguidores repete e repete e repete afirmações e opiniões grosseiras, falsidades, deturpações, que, não sendo verdadeiras, acabam por ganhar um estatuto competitivo com a verdade. O reclame da CNN sobre a maçã que não é uma “banana” traduz perfeitamente este mecanismo. Uma maçã não é uma “banana”, mesmo que se diga e repita e repita de novo que a maçã é afinal uma banana, ou vice-versa.
O problema é que os próprios mecanismos das ligações em série, sem mediação ou verificação, favorecem o esquecimento ou a falsidade original, criam uma “nuvem” de percepções, de factóides, de opiniões ignorantes ou não fundamentadas, que, com a ascensão da nova ignorância agressiva — uma consequência negativa de um processo positivo de democratização do acesso à “fala” pública —, se torna um caldo de cultura propício à manipulação e ao envenenamento. E não falta quem perceba isto muito bem e o use ou por intuição, como é o caso de Trump, ou com poderosos instrumentos estatísticos e algoritmos, com todos os meios da ciência ao seu alcance, como é o caso da Cambridge Analytics. E com uma “pequena” ajuda de empresas tecnológicas que vivem do negócio dos dados pessoais como é o Facebook, ou das séries de trolls e hackers que um governo como o de Putin pode pagar. Ah! e com a ajuda de um cada vez maior número de pessoas que é indiferente ao valor da privacidade e a troca ou por “facilidades” aparentemente gratuitas ou por um Ersatz de vida social para quem não tem nenhuma.
As redes sociais são perversas pelo seu próprio funcionamento e pelos seus mecanismos e não é correcto dizer-se que o problema com as redes tem que ver com o que se faz delas e não com elas mesmas. É um pouco como o argumento dos defensores das armas nos EUA que dizem que o problema não são as armas mas os homens. Não é verdade. O problema são os homens com armas, como aqui são os homens, os grupos de homens, as empresas dedicadas à manipulação profissional (e não são só as fábricas de trolls, ou a Cambridge Analytics e as suas serviços secretos e os mil e um envenenadores anónimos que sabem como usar as virtualidades congéneres, são as agências “de comunicação”, de marketing, etc.), os das redes para obterem resultados comerciais, culturais, sociais, políticos e outros. Mas para isso precisam dos instrumentos que fazem de uma maçã uma banana e precisam de uma cultura que não olhe para uma maçã e uma banana e veja só aquilo que circula sobre como uma maçã é uma banana.
Quando se perde lá longe na cadeia de comentários, tweets, páginas, blogues o facto de que uma maçã não é uma banana, está ganho um combate que infelizmente é cada vez mais vitorioso. Quando, depois, jornalistas aceitam amplificar como sendo um “facto” de que afinal uma maçã é uma banana, ou que a redes sociais “fervem” com aquilo que dizem ser uma “banana” e afinal é uma maçã, perde-se uma forma fundamental de mediação da realidade por uma profissão cuja função é a de informar para nos tornar melhores cidadãos. O mesmo se passa com a sistemática desvalorização do saber profissional e técnico, com uma forma de igualitarismo que resulta numa apologia da ignorância.
Não vale a pena perder tempo sequer aqui com as mil e uma discussões sobre o que é a verdade, sobre a construção da verdade, sobre a ideologia que transforma um facto numa notícia, sobre a construção dos factos pelo jornalismo, sobre a agenda que mostra e a que oculta, as mil e uma discussões que se podem e devem ter, mas que infelizmente estão muito longe do problema com que hoje a opinião pública, essencial para uma democracia, está confrontada: a questão simples de que uma maçã não é uma banana. Até aqui andamos para trás, para o fundamental sem complicações, ou seja, estamos mais no domínio da ética do que da análise. Estamos assim reduzidos a uma questão tão simples, que tudo o resto só ajuda a complicar — porque, de facto, o problema dos nossos dias é que há mecanismos instalados, em particular a cultura tribal das redes sociais, que trivializam a afirmação de que uma maçã é uma banana e ninguém quer saber disso, porque na minha bandeira eu tenho uma banana a que chamo maçã.
A tribalização foi um elemento essencial para o sucesso da dissolução da verdade e dos factos. As redes sociais, em vez de gerarem mecanismos de enriquecimento grupal, de socialização cívica, de contactos e proximidade, de luta contra a solidão dos nossos dias, de empowerment, fizeram exactamente o contrário. Tornou-nos adeptos de um clubismo político perigoso, de tribos mais ou menos guerreiras que não ouvem nada que venha de fora e que literalmente são onanistas. O discurso que divide e o discurso das fronteiras têm aqui o seu apogeu. Como Trump quer fazer o “belo” muro para separar os EUA do México, ou seja, o bem do mal, as redes sociais vivem de fazer muros nos quais não passa nenhuma voz alheia à tribo, onde tudo vive sob a forma de cânticos e urros.
O outro mecanismo é que sem mediação a contradição entre a verdade e a mentira primeiro esbate-se e depois apaga-se. Trump já disse nos seus tweets e em várias declarações mais de 800 mentiras, inverdades, omissões da verdade, puras falsificações, mas isso não lhe importa e pouca importa aos “seus”. O tribalismo das redes funciona para desvalorizar e ignorar esta realidade. Trump percebeu isso e usa o Twitter para comunicar “directamente” com a sua “base” sem intermediação. Ele sabe intuitivamente que a sua “base” tem um comportamento tribal, portanto lê o que gosta de ler. E, se Trump lhe diz que uma maçã é uma banana, pensa que os que dizem que uma maçã é uma maçã estão a conspirar contra Trump e divulgam “fake news”. Ele sabe também que ninguém vai verificar, porque a mentira é satisfatória e funciona como recompensa e gratificação.
É como no cão de Pavlov — ele saliva, quando sente que a comida se aproxima e quando ouve os passos do dono, mesmo que não tenha a comida em frente. É de facto um mundo-cão.


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